– Onde ela está? – inquiriu Camila.
Rafael deu de ombros dizendo que não fazia ideia e o mesmo fizeram todos os outros a quem repetiu a mesma pergunta, incluindo, seu pai.
– Não sei, filha – repetiu ele coçando o queixo. Estava usando óculos de grau, pois estava lendo mensagens que chegavam dos outros acampamentos rebeldes pelo arquipélago. Parecia mais um professor que um guerreiro em meio a floresta.
– Mas onde ela se meteu? – questionou novamente, passando as mãos pelos cabelos.
Camila mal podia conter seu nervosismo e só não havia se permitido chorar ainda, porque estava na frente do pai.
– Ela não teria ido embora sem se despedir de mim, teria?
Silas a olhou carinhosamente.
– De sua prima pode-se esperar qualquer coisa. Talvez ela não quisesse encarar a dor da despedida e preferiu partir sem que ninguém a visse ou tentasse impedir.
Camila fungou, sentindo a proximidade das lágrimas.
– Mas…
– Sem “mas”, filha. Eva já é adulta e sabe bem o que faz.
– Mas, não é justo. O mínimo que tinha de fazer era me dizer que estava indo – cruzou os braços como uma criança emburrada. No rosto, uma expressão desolada. Sentia-se culpada por ter discutido com ela na noite anterior.
O General a avaliou em silêncio.
Camila estava mudada, era uma mulher diferente da menina que havia criado. Em grande parte, isso se devia a Eva. Primeiramente, a sua “morte”, depois ao seu ressurgimento e, junto com ela, todo esse amor arrasador e sem limites.
Nunca vira os olhos de sua filha brilharem tanto como quando lhe disse que amava a prima pela primeira vez.
Nunca havia julgado Eva por suas escolhas, pela sua opção ou fosse lá o nome que davam a isso, embora sempre tivesse sonhado em vê-la casada e com filhos ao fim daquela guerra. Não podia negar que se sentia decepcionado com ela. Agora, Camila também lhe revelava seu gosto pelo mesmo sexo e, o pior, era que a mulher a quem dizia amar era a própria prima.
Decepção em dose dupla. Mas quem era ele para julgar o que se passava nos corações de suas “filhas”?
Sua educação rígida e tradicional não lhe permitia ver isso com naturalidade, mas estava decidido a sempre apoiá-las e se queriam estar juntas ele não iria se opor.
Observou uma lágrima solitária deslizar pela face bronzeada da filha. Os olhos negros como a noite, que tanto lembravam os da mãe, tinham agora uma dor por ele incompreendida, mas perceptível.
O desaparecimento de Eva também o incomodava, ainda mais porque ela lhe dissera que iria se despedir dele antes de partir e sempre cumpria o que dizia. Assim que Camila saiu, mandou que chamassem Rafael e lhe ordenou que montasse um pequeno grupo para sair à procura de Eva sem que a filha soubesse.
– Acha que algo aconteceu com ela, senhor? – o rapaz perguntou, deixando uma expressão preocupada lhe vir a face.
Silas se serviu de uma dose de uísque, perguntando-se como podia questionar o vício da sobrinha, quando ele próprio tinha os seus.
– Conheço minha sobrinha bem demais para saber que ela não partiria antes de se despedir de mim, principalmente, de Camila. Mas, se ela o fez, é porque algo de grave deve ter acontecido e quero saber o que é. Vá procurá-la.
***
Camila estava deitada em sua cama. Seus pés doíam de tanto que andou pelo acampamento à procura de Eva. A maioria das pessoas não fazia ideia de a quem ela se referia. Outras, lembravam vagamente de tê-la visto em sua companhia, no dia anterior. Mas, ninguém tinha algo concreto que pudesse ajuda-la, então resolveu se recolher mais cedo para sua cabana.
Observava o teto de palha trançada, enquanto apertava, entre as mãos, o colar que Eva lhe dera na noite anterior. Perguntava-se o porquê de ter partido sem se despedir, sentindo as lágrimas aflorarem.
Passou os dedos sobre os lábios, ainda era capaz de sentir o sabor do beijo dela roubando seu ar, aumentando seus sentidos. No corpo, trazia as marcas do amor urgente, apressado, que haviam feito na noite anterior após Rafael tê-las avisado que o pai queria vê-las. Um amor com gosto de despedida, mas ainda assim, sem o ser.
A conversa que tiveram logo após sua primeira vez não lhe saía da cabeça. Queria acreditar e acreditava que todas aquelas palavras eram reais, mas tinha medo de nunca mais poder vê-la ou toca-la. Não queria que ela voltasse para a capital, o medo de perdê-la a corroía por dentro.
Fechou os olhos sentindo as lembranças invadirem sua mente. Sentiu o sabor do beijo dela, o gosto do sal em seu corpo, o calor dos seus braços a envolvendo carinhosamente.
Camila brincava com uma mecha dos cabelos castanhos de Eva, enrolava-a entre os dedos, enquanto sentia os olhos dela sobre si, o sorriso bailando nos lábios, os braços firmes puxando-a para mais perto. O calor dos corpos unidos, o cheiro dela em seu corpo, o sabor dela em seus lábios. Aconchegou-se ainda mais em seus braços e foi brindada com o sorriso mais lindo que já vira.
– Nos meus sonhos mais bonitos, mais felizes e alegres, não foi possível imaginar o quanto é maravilhoso estar em seus braços.
Camila sorriu ao ouvi-la, pois também se sentia da mesma maneira. Agora, mais do que nunca, tinha certeza de que amava Eva.
– Quando foi que começou? – perguntou, soprando os fios castanhos que tinha entre os dedos.
Eva sapecou-lhe um beijo e desenhou, com os dedos, os lábios dela.
– Acho que começou no dia em que a vi pela primeira vez, quando minha mãe foi me entregar aos cuidados do tio Silas. Lembro-me que, aos meus olhos, você pareceu ser um anjo – sorriu e acariciou sua face.
– Acho que em pouco tempo você percebeu que de anjo não tinha nada.
Riram gostosamente.
– Talvez, eu também não ficava atrás – lembrou. – Mas a beleza a que me refiro, não era só a física, mas também, a interior. A sua bondade sempre me encantou.
Camila sentiu o rosto arder diante do olhar encantado de Eva.
– Já sabia o que sentia quando me beijou no dia em que partiu?
– Não posso dizer que tinha consciência do que significava querer uma menina, mas sabia que queria estar com você de outra forma que não fosse apenas como minha prima ou amiga. Quando te beijei, apenas obedeci ao meu coração.
Eva coçou o rosto, próximo ao olho, onde tinha uma pinta. Camila sempre achou aquela pinta um charme na prima.
– E você? – ela perguntou chamando sua atenção para a conversa.
Camila acariciou o rosto dela, demorando-se ao percorrer seus lábios com as pontas dos dedos.
– Você nem faz idéia do que fez comigo, não é mesmo?
Eva a olhou curiosa e lhe dirigiu um sorriso sapeca e provocante.
– Amor, fiz amor com você, Cami.
Camila lhe sorriu carinhosamente. Desde que Eva “morrera” não havia se permitido sorrir de verdade. Por vezes, pensou que o seu sorriso tinha morrido com ela.
– Isso foi muito bom, admito.
– Bom? – Eva ergueu uma sobrancelha.
Camila riu dando um beijinho na ponta do nariz dela.
– Tudo bem, foi maravilhoso. Assim como você disse, minutos atrás, jamais imaginei o quão maravilhoso seria estar em seus braços.
– Melhorou.
– Mas eu não me referia ao que acabamos de fazer.
– Certo. E o que fiz com você, baixinha?
Camila deu-lhe um pequeno beliscão.
– Ai!
– Já disse para não me chamar assim. Temos quase a mesma altura.
Eva sorriu marota.
– Agora que estamos deitadas, é verdade – provocou.
Camila revirou os olhos, mas não deixou de sorrir.
– Onde está a toda poderosa, malvada e carrancuda agente do governo?
– Está com saudades dela, é?
– De modo algum. Prefiro você assim, com esse sorriso doce e olhar meigo. Esta é a Eva que conheci e que esteve em meu coração por todos estes anos. Você virou meu mundo de cabeça para baixo. Cansei de dormir e acordar pensando naquele beijo. E, à medida que fui crescendo, acabei percebendo a razão disso, estava apaixonada por você, mas isso sempre me pareceu errado e me neguei a acreditar. No entanto, cada carta sua, era como um novo recomeço para mim, pois sabia que você ainda pensava em mim, talvez não da mesma maneira que eu pensava em ti, mas estava lá.
– Nunca te esqueci, Cami. Bem que tentei, mas você estava sempre comigo. Pode parecer estranho, mas sempre amei você e nunca ninguém foi capaz de ocupar o espaço que você conquistou em meu coração. Amo você! Entendo se o que aconteceu há pouco tenha sido apenas reflexo de uma paixão adolescente para você, mas, para mim, foi o momento mais especial da minha vida e vou leva-lo para sempre no meu coração. Eu amo você!
Camila tomou seus lábios com os seus em um beijo terno, cheio de promessas e significados.
– Não prestou atenção a nada do que disse? Eu te amo, Eva Herrera, sempre amei!
Uma lágrima escorregou pelo rosto bronzeado de Eva e Camila interrompeu seu caminho com um beijo e ficaram por longo tempo assim, entre beijos e carícias, até que Camila afastou-se perguntando com um tom triste na voz:
– E agora?
Eva suspirou, seus lábios ainda tinham o vestígio de um sorriso.
– Agora, eu não sei – foi sincera. – Tenho de voltar para a Central, muitas vidas dependem do meu trabalho lá.
Camila temia ouvir aquilo. Agora que a tinha encontrado, não queria perde-la outra vez.
– Mas, e se o seu plano não tiver dado certo? Se eles desconfiarem de que foi você que planejou nossa fuga? Eu não quero te perder de novo.
Eva entendia, também se sentia da mesma forma. Entretanto, haviam muitas vidas envolvidas e não podia, mesmo querendo, se dar ao luxo de ser egoísta naquele momento.
– Se isso acontecer, é porque não desempenhei bem a minha missão. Também não quero ficar sem você, mas preciso voltar.
– Por favor, fique. Podemos encontrar outra forma de proteger nossos agentes.
Eva brincou com os cabelos negros dela, tentando se agarrar a sua determinação, ao que era o certo a se fazer.
– Sabe que isso não é possível, Cami. Pelo menos, não agora. Ainda tenho muito que fazer. Se eu demorar demais aqui, poderei encontrar outra pessoa em meu lugar quando voltar.
– Mas… – Eva pousou um dedo sobre seus lábios.
– Não vamos discutir sobre isso agora, certo? Vamos curtir este momento. Vamos ser felizes nesse tempinho que temos antes do amanhecer, antes das nossas responsabilidades nos arrastarem para a realidade. Por favor!
Nada mais foi dito e Camila engoliu seu medo de perde-la e qualquer argumento que tinha, aninhando-se ao corpo dela.
Nenhum um som, além de gemidos e suspiros, se propagou pelo ambiente pelo resto daquela noite de tempestade e seus corpos cansados e saciados uniram-se para se deixarem embalar em um sono doce e tranqüilo ao lado do amor de suas vidas.
Horas depois, Eva e Camila despertaram com o som estridente de uma porta batendo e se depararam com o olhar severo do General Herrera sobre elas. Os olhos castanhos dele, que sempre eram carregados de gentileza, estavam carregados de um brilho sombrio.
– Vistam-se – ele grunhiu e saiu do quartinho pisando duro.
Ainda chovia quando elas subiram a escada que levava ao galpão para armazenar lenha. O General as esperava de braços cruzados, olhos severos, respirava rápido e pesadamente, sinal claro de que estava zangado.
Elas reconheceram seu humor de imediato, mas o encararam tranquilamente de mãos dadas.
– Expliquem – ele ordenou.
Eva sorriu, debochada. Seus cabelos estavam bagunçados, mas de uma forma casual como se não tivesse tido tempo de penteá-los e tivessem secado ao vento.
– Acho que o que viu dispensa explicações, Tio. Mas se quer que transformemos os atos em palavras…
Ele comprimiu os lábios em um gesto colérico, mas ela não se deteve.
– Como lhe disse, certa vez, amo Camila. Na noite passada, descobri que esse amor é correspondido – seu sorriso debochado havia dado lugar a outro leve e apaixonado.
Ele fungou um pouco e a areia seca no chão do galpão, rangeu sob o peso das suas botas quando ele deu um passo à frente.
– Absurdo! – falou entredentes.
Camila se adiantou em direção a ele.
– Não, pai. Absurdo é negar o quanto amo Eva!
– Como pode dizer isso? Você não a via há quatorze anos. De onde tirou essa história?
Ele passou as mãos na cabeça, impaciente.
– Você não é… – olhou para Eva que arqueou uma sobrancelha divertida. – Você nunca foi… – fez uma careta incapaz de completar a frase.
– Gay? Sempre fui, pai. Você é que sempre fingiu não notar.
Camila deu outro passo à frente para fita-lo nos olhos. Era mais baixa que o pai, mas tinha tanta presença quanto ele quando queria se impor.
– Quanto ao que sinto, sempre esteve aqui – pousou a mão sobre o coração. – Nunca disse nada, pois achava que Eva estava morta, como você me fez crer. A amo, isso é fato e, você queira aceitar ou não, ficarei com ela e viverei o que sinto, o que sentimos.
– Mas vocês são primas! – ele argumentou.
– E daí? Tio, só porque você não soube conservar o amor de sua vida, não quer dizer que possa se opor ao nosso. Além disso, a vida é feita de experiências, de aprendizados, de quedas e vitórias e, se por acaso não der certo entre nós, pelo menos tentamos.
Ele mirou a sobrinha como se fosse uma estranha, então viu a menina que havia ajudado a criar. Aquela era Eva, sua Eva e não a mulher séria e fria como gelo que aquela guerra criou.
– Amo Camila desde que era uma menina. Acho que, neste momento, cabe a nós duas tentarmos viver o que sentimos e, se for nosso destino ficar juntas, assim o será e nada nem ninguém poderá impedir isso. Nem mesmo você. Por que não nos dá uma chance? Você não pode mudar o que está em nossos corações e nem quem somos ou como somos.
O General calou-se diante das palavras da sobrinha. Havia muito tempo amara uma mulher de tal forma que se viu capaz das maiores loucuras para estar ao seu lado. No entanto, o destino os separou e o amor, apesar de há muito ‘esquecido’, o acompanhava sempre na forma do ser a quem mais amava: Camila.
Eva tinha razão e sabia disso. Conhecendo bem as duas mulheres que tinha à sua frente, sabia perfeitamente que nada do que dissesse em oposição a esse romance surtiria efeito, aliás, o efeito seria exatamente o contrário.
Nada mais foi discutido sobre o assunto, pois ele lhes deu as costas e saiu cabisbaixo do galpão, indo se juntar a Rafael e Marina que o aguardavam ao lado do jipe em vieram na noite anterior.
O General calou-se e manteve-se assim durante toda a viagem para o seu acampamento em meio à floresta. Perdido em seu silêncio, ele viu a máscara de seriedade e rigidez de Eva cair para dar lugar a uma mulher carinhosa e de sorriso transparente. Viu Camila perder seu ar triste e olhar agressivo para demonstrar uma alegria incontida e um brilho de intenso amor nos olhos. Sendo assim, ele ficou quieto e resolveu fazer o que como pai sempre buscou, deixar suas filhas serem felizes.