Sempre usando estradas de terra e de pouco tráfego, Rafael dirigiu por algumas horas sem parar para nada. O silêncio reinava no carro e ele viu pelo espelho retrovisor que Camila dormia com a cabeça apoiada no ombro de Eva. A espiã mantinha os olhos fixos na estrada ele admirou sua beleza, pois não podia deixar de notar a pele bronzeada que formava um belo contraste com os cabelos e olhos castanhos claros. Os lábios eram grossos e vermelhos e ela tinha uma pinta próximo ao olho direito que lhe atribuía um ar charmoso.
Agora, depois de ouvir toda a conversa entre ela e Camila, se sentia mais tranqüilo quanto a sua presença, pois, pelo que entendera ela fazia parte do passado de Camila de forma muito significativa para esta.
Os olhos castanhos focalizaram os dele no espelho retrovisor e ele sentiu o rubor surgindo em sua face.
– Se você não prestar atenção na estrada iremos bater em uma árvore! – ela o alertou.
Pigarreou um pouco e voltou a se concentrar na estrada, mas não demorou muito para que deixasse que a curiosidade falasse mais alto.
– Desculpe, não pude deixar de ouvir sua conversa com Cami.
Ela mantinha sua atenção fixa na estrada quando respondeu, simplesmente:
– Hum.
Ele pigarreou mais uma vez antes de falar, para dar firmeza a voz.
– Então, vocês se conhecem desde a infância…
Ela dirigiu o olhar castanho para o espelho, interrompendo-o.
– Pare de fazer rodeios e pergunte de uma vez o que quer saber.
Mais uma vez, ele sentiu seu rosto corar.
– Está bem.
Ele parou o carro e virou-se para olhá-la.
– Quem é você na realidade?
Ela deixou um meio sorriso vir aos lábios vermelhos. Seu olhar afiado como o de um felino.
– Como disse antes, não é de sua conta, mas acho que você não é burro e deve ter percebido por tudo que viu e ouviu quem sou ou, pelo menos, suspeita.
Ele sorriu, satisfeito.
– Sim, tenho uma teoria.
Ele voltou a ligar o carro e pô-lo em movimento.
– Fale-me sobre sua teoria – ela pediu com interesse.
– Bem, isso é tudo que sei a seu respeito: você pertence as FL, espiona o exército para nós e possui um cargo importante na Agência. Isso ficou claro para mim quando nos trouxe os uniformes militares e facilitou nossa entrada no prédio. Mas, não imaginava que seu cargo fosse tão importante. Depois teve aquela briga entre você e Cami hoje cedo e a conversa que tiveram quando pegamos a estrada. Diante de tudo que ouvi, só posso supor que são amigas de infância ou parentes. Estou certo?
Ela sorriu ironicamente.
– Se sabe que está, por que faz uma pergunta tão idiota?
Ele sorriu satisfeito.
– Apenas para ter certeza.
– Entendo – ela sacou a arma que se encontrava em sua cintura e encostou na cabeça dele.
Camila escorregou um pouco para o lado, mas não despertou. Temeroso, ele parou o carro.
– O que está fazendo?!
– Nada de mais – ampliou o sorriso.
Ao seu lado, Camila deixou um suspiro escapar.
– Quero apenas lhe fazer uma pergunta.
– Precisa me apontar uma arma para isso?
– Apenas um detalhe – deu de ombros como se o que estava fazendo não fosse nada de mais.
Ele engoliu em seco, sentindo o metal frio em sua nuca.
– Sabe por que estou viva até hoje?
Ele retirou as mãos do volante em um movimento rápido e ela forçou ainda mais o cano da arma contra sua cabeça.
– Mantenha as mãos no volante – ordenou e ele obedeceu. – Agora responda à pergunta.
– Não, não sei.
– A reposta é fácil – ela falava pausadamente, quase sussurrando. – Ainda estou respirando porque ninguém suspeita de que sou sobrinha do General Herrera e foi isso que manteve Camila viva até o momento do resgate. Espero que esta informação não saia deste carro, pois se acontecer saberei que foi você e nada irá me impedir de pôr uma bala na sua cabeça. Entendeu?
Forçou a arma contra a cabeça dele, outra vez.
– Entendeu?
– Sim! Sim, eu entendi.
– Ótimo. Agora dirija.
Ela voltou a guardar a arma e Rafael pôde soltar o ar de seus pulmões com evidente alívio. Estava na presença de uma mulher forte e decidida, mesmo temendo-a não podia deixar de admirá-la. Virou a chave na ignição e pôs o veículo em movimento novamente.
– Pelo menos posso saber seu nome? – perguntou depois de algum tempo.
– Eva.
Ele sorriu. O nome era perfeito para ela.

***

Começava a chover quando ele estacionou o carro em baixo do alpendre de uma velha cabana afastada da estrada. Estavam perto do território rebelde, mesmo assim, não podiam se dar ao lucho de acharem que estavam seguros.
Camila já estava acordada havia um bom tempo, mas, assim como na maior parte da viagem, mantinha-se em silêncio e só falou quando percebeu que haviam estacionado.
– Onde estamos? – perguntou olhando a cabana com desconfiança. A construção era apenas um amontoado de madeira apodrecida e alguns tijolos.
– Ficaremos um tempo aqui – informou Eva, pegando a mochila que estava no banco do passageiro ao lado de Rafael. – A fronteira que delimita o território das FL está a três horas de viagem daqui. Com certeza, todas as rotas de acesso estão sendo patrulhadas, então ficaremos aqui esta noite e parte do dia de amanhã. A cabana fica no meio da floresta e não há perigo de sermos encontrados. Além disso, precisamos descansar. Não sei vocês, mas não durmo há dois dias.
A madeira do assoalho estalou sob seus pés quando elas entraram na cabana cujo interior estava escuro graças as cortinas maltrapilhas nas janelas. Rafael havia ficado para trás a fim de pegar parte da lenha que estava debaixo do alpendre para acender o fogo da lareira.
Na penumbra, Camila divisou uma mesa no meio do que seria a sala e algumas cadeiras, eram todos os móveis a vista. No canto, uma lareira que Rafael acendeu assim que entrou com a lenha. Quando o fogo iluminou o ambiente, algumas prateleiras e um velho sofá próximo a janela puderam ser visualizados. Eva abriu as cortinas e poeira se espalhou pelo ar, atirou sobre a mesa a mochila que carregava e dela retirou alguns pacotes e latas de alimentos. Rafael pegou algumas latas e levou para a lareira para o cozimento.
Camila não tirava os olhos de Eva, enquanto comiam uma hora mais tarde, a observava fixamente.
– O quê? – Eva perguntou largando a colher e olhando para ela interrogativamente.
– O que o quê?
Eva fungou um pouco e afastou uma mecha do cabelo longo e castanho que lhe caía sobre os olhos.
– Você sabe muito bem – respondeu.
– Não sei, não – Camila respondeu, divertida.
– Ah, fala sério! Quantos anos você tem? Vinte e quatro, vinte e cinco?
– Vinte e Seis.
– Vinte e seis anos e ainda não perdeu essa mania chata?
– Que mania? – a moça se fez de desentendida.
– Não se faça de boba, sabe muito bem do que estou falando. Essa sua mania de me encarar quando estou comendo.
Camila começou a rir da cara irritada que Eva fez.
– Quer parar?
– Ai, ai, tantos anos e você ainda se irrita com isso.
Camila sorriu saudosa dos seus tempos de infância e Eva não pôde conter o riso também. A prima sempre a irritou com o hábito de observá-la intensamente durante as refeições, mas sempre soube que ela fazia isso apenas para chateá-la e, naquele momento, sentiu um aperto no peito, um aperto cheio de saudades de uma época em que havia sido muito feliz e que não voltaria mais.
Ao lado da lareira, Rafael estendeu dois colchonetes e já estava saindo da cabana quando Camila perguntou:
– Onde vai?
– Vou dormir no carro.
– Por quê? Assim você não descansará direito.
– Mas, poderei ficar de olho em tudo que acontecer na mata. Não se preocupe. Além disso, você sabe que tenho o sono leve e me sentirei mais tranqüilo lá fora onde poderei retardar a aproximação de alguém se isso acontecer – deu uma tapinha na metralhadora que trazia sobre o ombro.
– Está bem, você tem razão. Poderá descansar durante a madrugada já que não sairemos antes do amanhecer.
Ele sorriu-lhe e saiu desejando boa noite às duas.
Mais uma vez, o silêncio reinava no ambiente. Eva ajeitou-se em seu colchonete e Camila a imitou. Deitadas, lado a lado, Eva observava o teto e Camila o fogo, cada uma perdida em suas divagações e preocupações.
Foi Camila que quebrou o silêncio.
– O que aconteceu?
– Com o quê? – Eva perguntou em resposta.
– O que aconteceu com você? Foi embora com sua mãe e três anos depois recebo a notícia de que tinha morrido em um acidente de avião com toda a sua família, mas você está aqui, do meu lado – Camila virou-se para fitá-la.
Sentindo os olhos de Camila sobre si, Eva respondeu em um sussurro:
– Eu morri naquele dia.
Como Camila não fez qualquer comentário ela continuou.
– Apesar de tudo, minha mãe era uma boa mulher. Minha avó e padrasto é que eram os “vilões” da história – sorriu triste.
Camila afastou uma mecha do cabelo dela e apoiou a cabeça sobre o braço bom para vê-la melhor.
– Enquanto ela me mimava e tentava, a todo o momento, se redimir por ter me abandonado, eles faziam de tudo para me mostrar que não passava de uma intrusa naquela casa. Tantas foram as vezes em que arrumei minha mochila e ensaiei uma fuga, mas sempre desistia, por ela. Minha avó recebeu um convite para o aniversário de algum Conde amigo dela e fez com que todos nós a acompanhássemos. Implorei a minha mãe para ficarmos, mas o poder que a velha exercia sobre ela era demais. Acordei no hospital três dias depois. Até hoje não lembro o que aconteceu e não sei se quero mesmo lembrar. Fui a única sobrevivente.
– Sinto muito – disse Camila enxugando a lágrima que veio aos olhos de Eva, antes que escorregasse por seu rosto.
– E como você entrou no meio dessa guerra? Como veio participar de tudo isso?
– Assim que me senti bem o suficiente peguei minha mochila e vim para cá. Nunca quis o dinheiro de minha mãe, muito menos o de minha avó, então não pensei duas vezes antes de subir em um navio. Não imaginava que fosse tão difícil encontrar o paradeiro do tio Silas. Quando soube em que pé estava a situação no país, parei de fazer perguntas sobre ele e comecei a investigar o paradeiro de seus amigos até que encontrei Antônio Hernandes. Ele me levou até o tio Silas, fiquei tão indignada com tudo que vi durante o tempo em que estive à procura de vocês que pedi a ele para ajudar. Ele tentou argumentar, mas logo se deu por vencido. Antônio foi mais insistente ao ser contra minha participação, mas logo desistiu também. Foi complicado, mas consegui ao longo dos anos ganhar a confiança de muita gente no governo e com Antônio mexendo seus pauzinhos na surdina acabei conquistando um cargo de grande importância na Agência de Inteligência. Foi graças a isso que consegui tirar você e os outros de lá.
– Falando nisso, como conseguiu?
– Quando o tio Silas soube da sua captura, me procurou. Juntos, ele, Antônio, Pietro e eu montamos um plano de resgate. Como ninguém sabia sobre mim nas FL além do General, ele preferiu me enviar sua equipe de segurança para ajudar no plano. São todos de sua total confiança e foram treinados por você, então não haveria questionamentos e poderia contar com sua total cooperação. A outra parte do plano ficou por conta de Antônio, ele providenciou para que houvesse uma manifestação contra o governo acontecendo no exato momento da fuga e que os ânimos estivessem bastante exaltados para distrair os soldados. Também imaginei que a presença do Coronel Castilho na sala de interrogatório no momento do resgate seria inevitável. Como havia favorecido você muitas vezes desde sua captura, criei um documento para despistá-lo. Infelizmente, tive de usar algumas informações verdadeiras. Fiz com que o Coronel e o Tenente também fossem sequestrados para afastar qualquer suspeita que possam ter sobre minha participação na fuga. Por isso, foram separados.
Camila ponderou sobre o que ela lhe disse por algum tempo.
– Entendo o que fez e a razão de tê-lo feito, mas eles estão conosco agora. Cedo ou tarde irão nos encontrar de novo e…
– Isso já foi providenciado. Em algumas horas uma patrulha do exército irá suspeitar de um carro e seus ocupantes, haverá um tiroteio, os rebeldes irão fugir deixando para trás um refém. Situação semelhante irá acontecer com o Tenente Morales daqui alguns dias. Obviamente, os membros dessas patrulhas do exército também fazem parte das FL, e dentro de alguns dias serei encontrada em uma vila qualquer ferida e com sintomas de amnésia.
– Uau! Isso dá um livro. Muito engenhoso. Mas, e se o seu plano falhar? E se eles não acreditarem que você é apenas mais uma vítima disso tudo? – a perspectiva disso fez com que um calafrio percorresse sua espinha.
– Se isso acontecer, quero que saiba que foi muito bom rever você. – Eva a fitou intensamente, o coração batendo loucamente por estar tão próxima dela.
Camila ficou séria de repente.
– Por que não me contaram a verdade? Por que me esconderam que estava viva?
Eva suspirou e afastou o olhar dela para o teto.
– Seu pai achou que seria o melhor para todos. Afinal, todo mundo pensava que eu tinha morrido e caso viesse a ser capturada e morta não haveria mais sofrimento e – fez uma pausa e voltou a focalizar o olhar dela – não haveria o desejo de vingança de sua parte.
– Vingança? Não acredito que…
Eva ergueu a mão e tocou o rosto dela em uma carícia rápida.
– Te conheço, pelo menos acho que ainda conheço, bem demais. Sempre fomos muito parecidas, Cami. Você sabe, perfeitamente, que se algo viesse a acontecer a você ou ao tio Silas eu moveria céus e terras até conseguir vingança. Você e eu somos iguais.
Camila apenas a observava intensamente.
– Por acaso estou enganada, Cami?
Ela sorriu, contrariada.
– Não. Você está correta. Mas, ainda não acho justo vocês terem mentido para mim.
– Há tantas coisas que não vale a pena mencionar. Coisas que influenciaram nas decisões que tomamos e que nos trouxeram até este momento.
– Gostaria…
– De saber. Sei que sim, mas não é a hora, não é o lugar e não há mais razão para isso. Um dia, talvez, eu possa te falar sobre tudo na esperança de que você entenda e perdoe.
Apenas o som do fogo crepitando na lareira interrompia o silêncio que se instalou entre elas. Eva perdia-se em pensamentos e lembranças, estava cansada, seu corpo pedia descanso, mas sua mente não parava de trabalhar e não conseguia parar de fitar os lábios de Camila, então se virou para a parede na esperança de que o sono, finalmente, viesse.
– Eva – Camila a chamou depois de um tempo.
– Sim – respondeu saindo da sua distração, o sono não a tinha procurado como desejava.
– Sempre quis te perguntar algo.
– O que é? – perguntou, voltando-se para ela.
Camila fez silêncio por algum tempo e Eva esperou pacientemente que ela falasse. A pergunta veio quase como um sussurro:
– No dia em que você foi embora, por que me beijou?



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