CONTOS DE FADA NADA INFANTIS

Rapunzel, corte suas tranças

A princesa desfalecida sobre o colchão macio; e sua mãe a olhava com pena e vergonha.  Será que nunca conseguiria que ela entendesse a posição que tinha no reino? Teria que deixá-la trancada para sempre naquela torre? Se essa fosse a única forma de afastá-la da camponesa repugnante… 

Rapunzel não era somente a princesa. Ela herdara o trono de seu pai após a morte prematura dele, todavia não podia assumir até completar a maioridade. A mãe era a tutora legal e ficaria no trono até que ela pudesse governar. Os anos sem o marido a tornaram uma rainha arrogante, amarga e extremamente beligerante. 

Quando o rei morreu em uma invasão de um reino vizinho, ela assumiu para si a responsabilidade de vingá-lo, porém, não parou por aí. O ódio tomou o coração dolorido da rainha Arianna, fazendo com que se voltasse para a conquista de diversos reinos. 

Os anos foram se passando. A rainha decidira que não deixaria a filha assumir. O povo não suportava mais tantas batalhas e pobreza. Todos os recursos do reino eram alocados na máquina de guerra da rainha.

Os habitantes do reino começaram a se insurgir e muitos camponeses escondiam seus filhos em idade de ingressar no exército da rainha. Mandavam que eles fugissem para os núcleos da resistência, liderados pela guerreira Elíade que, há anos, convocava os revoltosos para uma rebelião. 

A princesa Rapunzel era a esperança do povo. Todos lembravam da sua doçura de alma e coração aguerrido. Um contraste interessante para uma liderança equilibrada. 

Um dia, a mãe de Rapunzel a visitou na torre onde a mantinha isolada, como fazia todas as manhãs e a princesa se encontrava particularmente triste e desanimada. A rainha mandou que seus mais valorosos soldados entrassem na frente para acalmar a filha, visto que sempre que escutava passos, ela tentava alguma artimanha para fugir. Contudo, ela se encontrava prostrada sobre a cama.

Ela não estava arrumada como convinha a uma princesa. Não faltavam servas para auxiliá-la e tão pouco educação de qualidade, ou até mesmo, uma guerreira para treiná-la todos os dias para que seus músculos não enfraquecessem com a prisão. A torre tinha uma varanda ampla para que pegasse sol todas as manhãs e pudesse apreciar a brisa da noite. Sua mãe a amava de uma forma torta, mas sim, a amava.   

Os soldados entraram em prontidão e se espantaram por ver que não foram atacados pela princesa rebelde. Ela estava apática, sem que as tranças estivessem ajeitadas e sem o banho matinal. 

A rainha se espantou com a figura desajeitada e completamente desleixada, mascarando a beleza brilhante da filha. 

— O que aconteceu, Rapunzel? Ninguém veio lhe atender de manhã cedo?

A rainha se virou para um dos soldados.

— Vá buscar a empregada que atenderia minha filha esta semana! – Ordenou.

— Não. Não vá buscar ninguém. A pobre coitada não tem culpa. Eu que a dispensei. Não quero sair da cama, mãe.

— Por quê? Está doente? Vou mandar chamar o curandeiro…

— … não é preciso. Não estou doente, apenas não ligo mais. 

A princesa se calou, virando-se para o lado. A memória da rainha voltou ao primeiro ano em que prendera a filha, tentando que ela voltasse à razão. Toda vez que seu coração amolecia e deixava que a filha saísse, a primeira coisa que fazia era fugir para se encontrar com a camponesa imunda. A mãe deixou de acreditar na artimanha da filha. 

— Traga a empregada que designei para essa semana.

A rainha ordenou. 

Após um ano da prisão de Rapunzel, a rainha Arianna percebeu que não poderia deixar que a filha construísse amizade com as empregadas e passou a trocá-las semanalmente. A filha sempre as convencia em algum plano para fugir e a rainha acabava punindo as coitadas e recapturava a filha na fuga. 

A empregada chegou cabisbaixa. Temia por sua segurança.

— Não vai ser punida por nada, menina. Me diga o que aconteceu esta semana com a princesa…

— Ela lhe falará tudo que ocorreu essa semana, mãe, mas me faça um favor, se tem ainda algum amor por mim.

— O que quer, filha? 

— Hoje quero ficar sozinha. Sem empregadas e sem mestres de ensino. É meu aniversário, mãe. Me dê isso de presente.

— Nem eu posso te ver mais tarde? 

— Não. Quero poder dormir o dia todo e vou ler alguma coisa à noite na varanda. Quero ficar só.

— Se esse é seu desejo… Mas tem que comer algo. Não quero que fique doente. 

— Por que se importa com a minha saúde? Vivo aqui nessa torre mesmo…

— Já discutimos isso, minha filha. Se ao menos me desse indícios de que mudou… De que aceitaria seu destino como herdeira…

— Não vamos discutir novamente, mãe. Só quero um dia para mim. Um único dia em que eu fale que decidi algo em minha vida. Pode fazer isso por mim, hoje?

Mesmo entristecida com o pedido da filha, a rainha resolveu atendê-la.

— Está bem, minha filha. Ninguém lhe incomodará hoje.

Longe da torre do castelo, um grupo que resistia à loucura da rainha, planejava um ataque ao depósito de armas do reino. Para combater os soldados, tinham que se armar com o mesmo poderio que o exército. Após todos aqueles anos, finalmente Elíade e Rapunzel conseguiriam ficar juntas.

Elíade amava a princesa mais que tudo em sua vida. Se conheceram aos doze anos e de uma amizade surgiu um grande amor, que foi rechaçado pela rainha tutora. O aprisionamento da princesa estava em vias de acabar.

Naquela noite fatídica, Rapunzel completaria vinte anos e seria a sua liberdade completa.

— O que estamos esperando, Elíade? Os soldados logo trocarão o turno. Será nossa chance de limpar o depósito de armas.

— Calma, Jin. Já, já iremos atacar.

Elíade estava ansiosa e não precisava que seu grupo a pressionasse mais ainda.

Escutaram um barulho vindo da mata e todos ficaram em prontidão. Dos arbustos uma figura imponente em vestes de couro, como uma guerreira, surgiu. Elíade foi ao encontro dela, beijando-a ardentemente. Separaram-se do abraço e a guerreira rebelde pôde observar melhor a princesa.

— Disse que se livraria das tranças. Que ela lhe atrapalhava.

— E me livrarei, mas será na frente do povo, como um símbolo para se lembrarem de minha prisão na torre.

Rapunzel falou com simplicidade. Ela amarrara o enorme cabelo em trança em torno da cintura. Por muitos anos, a mãe não permitiu que os cortasse, para dificultar a sua fuga. Quanto maior os cabelos, pior para se locomover, entretanto, quando ela conseguiu fazer uma trança longa o suficiente para amarrar em volta da cintura, os cabelos deixaram de ser um problema para ela. 

— Sua mãe desconfiou de algo?

— Fiz com que não desconfiasse. Quero que hoje tudo saia da forma como planejamos. Não só o povo deve se insurgir contra ela, mas os soldados terão que ficar do nosso lado, senão, de nada valerá. 

Sim, a princesa descobrira uma forma de sair da torre e muitas vezes se encontrou com a sua amada. Ao longo dos anos, tramaram para que Rapunzel conseguisse reaver o trono de forma pacífica com o apoio de todos.

Ficaram de tocaia até a troca da guarda no depósito de armas. Nenhuma pessoa averiguaria aquele local por, pelo menos, oito horas e seria seguro roubar as armas desejadas. O vilarejo inteiro caminharia até os portões do castelo e queriam impedir que os guardas pudessem se reabastecer das flechas ou qualquer outro tipo de armamento. 

 Velhos, jovens, pais e mães de soldados ou, daqueles que chamavam de traidores, por terem fugido das garras do serviço militar, estariam na marcha. Se a rainha quisesse reagir, os soldados hesitariam em matar seus familiares. 

Todos entrariam na cidade juntos e assim foi.

Chegaram aos portões e os soldados do castelo ficaram de prontidão, no alto do muro, com seus arcos em riste para reagirem ao comando de seus superiores. 

Aos poucos, mais e mais cidadãos do reino chegavam, engrossando a multidão. Era uma profusão de pessoas. Lavradores, comerciantes, mendigos que perderam tudo com as guerras, ex-soldados deficientes que se machucaram e que foram dispensados sem um soldo que pudessem sustentar as famílias.

A rainha chegou à muralha, mandando que atirassem para dispersar o povo. Seus soldados não atenderam, confusos e desmotivados. Aqueles que estavam lá embaixo, eram a gente deles.

— O que estão esperando?! Atirem!

— Eles não atirarão na sua própria gente, mãe.

Rapunzel saiu das sombras, passando pelas pessoas para se mostrar. Queria encarar a mãe de frente. 

— Não se espante, mãe. Essa reação de nosso povo, a senhora mesma provocou com a sua amargura. Papai nunca quis isso e eu vou restabelecer o reinado dele. 

— Mas, como?…

— Como estou aqui e não na torre em que me trancafiou todos esses anos? É simples: Você nunca conheceu seu próprio castelo. Saio todas as noites há anos e você nunca notou. 

— Rapunzel…

— … Não fale nada, mãe. A partir de hoje, eu assumo meu lugar de direito e me casarei com quem eu quero. Quem eu sempre amei.

A princesa estendeu a mão na direção da multidão e Elíade foi até ela, segurando-a firme. Elas se beijaram na frente de todos, e Rapunzel pegou uma adaga. Desfez o laço das tranças da cintura, deixando que caísse no solo, para mostrar ao povo o tempo em que foi presa. Foram anos de reclusão aos olhos da mãe, mas não do povo.

— Hoje, assumo o trono e toda a responsabilidade sobre nosso povo.

Ela cortou o cabelo na altura da nuca e segurou a trança no alto, para que vissem a sua libertação.

Os soldados se desarmaram e seguraram a rainha pelos braços, prendendo-a.

— Não façam nada a ela. Levem-na para a sala do trono e abram os portões. 

Naquela noite, o reino de Rapunzel se libertou da amargura e do coração partido da rainha Arianne.

O que aconteceu com a rainha? Nada. 

Ela perdeu o poder e o prestígio, pois sua filha sentou-se no trono naquela noite. Podia circular pelo castelo, mas vigiada constantemente para não confabular contra o trono. 

O que aconteceu com Elíade?

Casou-se com a mulher que amava. Virou a rainha consorte do reino. 

— Rainha Rapunzel, aceita Elíade do povo como sua legítima esposa para amá-la, respeitá-la…

A rainha Rapunzel não escutara mais nada na cerimônia, embevecida com o rosto da mulher que lutara por ela, desde que se declararam uma para a outra.

— Eu as declaro casadas.

Elíade se apossou da cintura de sua esposa e de seus lábios, diante da aclamação de toda a população do reino. Preferia morrer naquele ínfimo momento sublime, a viver sem o amor de Rapunzel.

Fim. 



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2022 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.