— Vamos entrar. — Isadora convidou. — Devem estar com fome. Fizemos uma moqueca do pargo que pesquei ontem e uns petiscos de frutos do mar.
Enquanto falava, Isadora deu as costas para o grupo, subindo os três degraus da escada que levava até a porta principal. Helena, mais precavida, deixou que as agentes entrassem e as seguiu. A sala era arejada e abrigou todas com conforto.
— Podem sentar onde quiserem. Vou temperar o polvo e trazer algumas cervejas.
— Polvo vinagrete?
— Esse mesmo, Margot. O famoso “polvo vinagrete de Isa”!
Helena respondeu, vendo os olhos da antiga agente da equipe de Isadora brilharem. As ex-chefes largaram as submetralhadoras sobre o balcão do bar. Pareciam não estar mais preocupadas com a presença das agentes.
— Desculpa aí, mas todo mundo acha que tá tudo numa boa? Acho que eu sou uma idiota, então — Jacqueline esbravejou, indo até o bar.
Helena escondeu o riso para não irritá-la mais. Como se a casa fosse sua, Jackie pegou um copo e verteu duas doses de whisky puro e bebeu de um só gole, batendo o copo sobre o balcão, ao lado das armas. Encarou Helena firmemente.
— Você tem noção de quanto sofremos pela perda de vocês?
— Pode ter certeza que sim, Jackie — Helena a encarou com olhos ternos e tristes. — Se você quisesse sair da Agência naquela época, faria diferente de nós? Tudo que eu conhecia estava desmoronando e até chegar à ilha, eu sabia somente da metade da história. — Ela se virou para o restante do grupo. — Só não queria que ninguém morresse lá e tentei de tudo para que não acontecesse, tenham certeza disso.
Isadora voltou da cozinha com uma terrina de camarões fritos no alho e óleo e outra de polvo vinagrete.
— Alguém me ajuda a trazer pães, pratos e cerveja?
— Eu ajudo.
Ária se prontificou de imediato e se levantou para acompanhar a dona da casa até a cozinha. A mesa da copa estava cheia de quitutes, copos e talheres, revelando a intenção de receber as agentes pacificamente.
— Vocês sabiam que eu estava lá para matar Lewis?
— Na verdade, não. — Isadora parou o que fazia para lhe dar atenção. — Eu nem imaginava o que me esperava até chegar lá. Helena só sabia parte do plano de Lewis, que foi descoberto por Zéfiro. A verdade é que tudo se revelou com a morte de Cooper e Henrique, quando explodiram o helicóptero deles. O diretor Zéfiro foi diretamente até Hakon e o tirou da aposentadoria.
— Foi Cooper quem aceitou meu pedido para ir para a equipe de suporte. Ele era um dos mocinhos?
— Infelizmente não. Cooper me decepcionou, Ária. Era meu coordenador e foi justamente quem nos traiu. Tive pena de Henrique. Ele não sabia de nada planejado por Lewis, e ainda por cima, com apoio de Cooper. Henrique foi fiel a Alpha Dìon e a Helena.
— Como soube?
— Nem me lembre disso. Foi através de Zéfiro e Annan. O ataque já tinha começado e eu estava na sala de controle, pouco antes de sair para ir aos penhascos do oeste.
Ária deixou seus ombros relaxarem em desânimo. Fechou os olhos como se todas as lembranças viessem à sua mente. Ela se julgava inteligente, entretanto, sentia-se ingênua diante de tantas tramas da época.
— Eu fui uma idiota.
— Por que diz isso?
— Porque antes da turma da Cymorth embarcar para lá, Cooper me ligou me oferecendo a vaga na equipe. Eu simplesmente aceitei, achando que era uma grande oportunidade de acabar com Lewis. Eles estavam me testando… Me usando.
— Eles manipularam muita gente e enganaram a muitos. Como acha que eu e Helena nos sentimos?
Isadora não era uma das melhores pessoas para consolar alguém. Sentia-se tola diante da agente que mal conhecia.
— Vamos levar essa coisa para a sala e conectar todos os pontos. Acho que estamos bem agora.
— Certo.
Ária respondeu, pegando pratos e talheres, enquanto Isadora pegava os pães, guardanapos e copos. Lavínia entrou na cozinha se oferecendo para auxiliar.
— Ótimo, Liv. Pegue cervejas no freezer para todas.
— Tem cooler aí? Fica mais fácil levar.
— Tem uma bolsa atrás da porta. Leve bastante e coloque no refrigerador de bebidas que tem no bar.
— Ah, beleza!
Elas foram se acomodando pela sala e Liv deu uma garrafa de long neck para cada uma. Isadora abriu a sua e deu uma boa golada, refrescando-se. Viu seus quitutes serem atacados e as agentes pareciam se sentir íntimas como outrora.
— Por que nos esconderam a morte de vocês? — Urze ainda se sentia traída. — Sabe que nós apoiaríamos, que não falaríamos para ninguém!
— Para proteger a nós e a vocês das tramoias da Agência, o que mais poderia ser? — Isadora suspirou. — Urze, você hoje pode dizer com certeza que a Alpha Dìon está livre de todos os cretinos que armaram aquilo?
O questionamento feito de forma direta fez Urze se calar. Embora ela soubesse que a ex-chefe tivesse razão, ainda a magoava.
— Zéfiro sabia?
— Não por nós, Margot. Se ele soube, foi porque investigaram as cavernas que desabaram e não encontraram nossos corpos. As cavernas tinham ramificações que levavam até o mar na ala leste. Havia uma saída próxima a base do vulcão.
— E como saíram da ilha?
As esposas se entreolharam com um leve sorriso no rosto. Elas não falariam.
— Descubram sozinhas. Não vamos contar nossos segredos.
— Tá, tá. Essa coisa de que não devem se colocar em risco futuro… Já entendemos! — Jackie bufou.
— Gente, vamos aproveitar o momento. — Vird interrompeu as acusações e contra-acusações. — Helena e Isadora salvaram nossas carreiras, isso é um fato. Por mais que estejamos sentidas com o que fizeram, ao nos deixarem de fora, todo mundo sabe que era preciso, se elas quisessem sair.
— Desde quando se tornou uma pessoa tão sábia, Vird?
A chacota da ex-chefe fez todas rirem, fazendo Veridian ficar ligeiramente rubra. Foi como um sinal de que estava tudo bem entre elas. Todas tomaram um gole de cerveja de suas garrafas, num momento mudo de contemplação da verdade explicitada.
— E Datrea? O que aconteceu com ela e com Talíria?
A raiva que nutriu pelas agentes foi uma constante na vida de Helena por um bom tempo e, após alguns anos, se tornou uma mágoa profunda, dando espaço para a tristeza.
— Elas foram julgadas e colocadas numa prisão de segurança máxima. Ano passado Datrea morreu numa briga com outras detentas.
O clima voltou a ficar pesado. Ária não as conhecia e não tinha compaixão em relação a elas.
— E Talíria?
— Depois da morte de Datrea, ela fez um acordo para que pudesse ser transferida para uma prisão melhor.
— E o que ela delatou?
Isadora perguntou intrigada, passando os olhos por todas as amigas-agentes. Havia um ar de constrangimento entre elas. Nenhuma queria ser o mensageiro da notícia.
— Por que não falam? Digam logo!
Novamente, Ária foi quem se imbuiu da tarefa, sentindo que as outras não conseguiriam encarar as antigas chefes.
— Jada. Ela saiu incólume da trama toda e seguiu dentro da Agência como se nada tivesse acontecido. Tinha voltado a tramar junto com o diretor de compras, que também participou da primeira tentativa.
O choque tomou o rosto de Isadora. Jada costumava ser uma garota tranquila e coerente. No que havia errado para que ela se tornasse uma radical para o outro lado?
— Talíria tinha provas concretas. — Ária continuou a explanar. — Guardou tudo que foi conversado na época com os agentes da conspiração. Havia até mesmo vídeos de reuniões.
— Quantos anos essa cretina da Jada pegou?
— Pode deixar, chefe, ela nunca mais verá a luz do sol se não for através de grades ou melhor, através da “enxada”. Pegou perpétua sem direito a condicional e está numa prisão colônia. Vai ralar muito até morrer.
A resposta de Urze veio carregada de ressentimento, assim como eram as emoções da ex-chefe, que passou a mão pela cabeça, sentindo as pontas dos fios de cabelo. Isadora continuava com o corte de máquina baixa. Eram praticamente fios espetados cobrindo a cabeça.
— A Alpha Dìon não era uma agência coberta de virtudes, mas pelo menos, eram honestos quando nos recrutavam. Diziam exatamente o que faziam e para o que nos contratavam. E agora? O que sobrou da política em que ela foi fundada?
— Ela está voltando aos moldes, Helena — Margot intercedeu. — Hakon voltou à presidência e parece que a filha dele o está ajudando.
— Ela resolveu assumir os negócios familiares?
— Parece que sim.
Jackie respondeu, enquanto mexia na metralhadora que as chefes tinham deixado no balcão. Estava fascinada com a arma e parecia querer desmontá-la para ver as engrenagens. Helena não pôde deixar de sorrir.
— Vai lá, Jackie. Pode desmontar, mas depois monta de volta. É uma “sub” sueca.
— Posso memo? — A agente perguntou efusiva. — Não quero abusar…
A risada foi geral e Helena balançou a cabeça, bebendo um gole da cerveja e sorrindo.
— Essa é minha garota! Pode sim.
Jackie pegou a arma e foi para a varanda, sentou-se no chão e começou a desmontar, causando mais risadas nas amigas. Ela parecia uma criança com um brinquedo novo.
— Viram o filme de lésbicas feito na ilha?
— Vimos todos os eventos da “Virada Mundial em Prol da Diversidade”, Urze; mas, não no ano de lançamento. Ficamos afastadas das redes durante um tempo.
— Olha, Isa, foi muito legal! Penso que foi uma das coisas boas que saíram dessa merda toda.
— O que aconteceu com a ilha?
Helena estava curiosa. Ela e Isadora só viram as artes que foram criadas para o evento mundial, quando saíram do esconderijo gelado.
— Reconstruíram tudo para as filmagens. O resort ficou impecável e ainda fizeram replantio nas áreas destruídas, mas não conseguiram vender o local depois. Tudo lá está abandonado. — Margot informou com pesar. — Achavam que conseguiriam que uma rede de hotéis se interessasse, mas não aconteceu.
— É uma pena que ninguém tenha idealizado algo para a ilha, — Isadora bebeu um gole de cerveja, antes de continuar seu pensamento. — Era uma região linda. Não merecia ser marcada por esse quadro devastador.
— Eu não julgo os empresários do ramo. O mundo ficou sabendo de uma guerrilha ocorrida por lá. Só não souberam a verdade.
— Souberam, sim. — Vird contestou Margot. — Só não souberam da verdade toda. A mídia relatou que foi um confronto entre uma militância contrária às ideias progressistas, ante a segurança do grupo que fazia a filmagem para o evento. Não mentiram. Só que tinha algo mais além disso.
O grupo ficou em silêncio por segundos, até que Jackie retornou da varanda, efusiva.
— Consegui desmontar e remontar!
Ela segurava a submetralhadora para o alto e disparou tiros no teto sem querer. Todas abaixaram a cabeça por reflexo.
— Porra, Jackie! Vira essa coisa pra lá! — Urze estava indignada. — Depois diz que é uma atiradora de elite.
— Ops! Desculpa!
As amigas riram da expressão travessa que a agente fez. Terminaram a tarde entre conversas descontraídas. Na despedida, se abraçaram. Sabiam que as antigas chefes se mudariam assim que elas saíssem. Certamente, trocariam de nome e esconderiam seus rastros para não serem encontradas.
— Sei que vocês têm que sumir outra vez, mas estou aqui se precisarem. — Margot falou no ouvido de Isadora quando a abraçou. — Tome isto aqui. — Colocou um pen drive na mão da antiga chefe. — Não hesite em usar se tiverem complicações. Isso aciona um alerta escondido na programação de Annan. Ela saberá como me contatar.
Isadora sinalizou com a cabeça, anuindo discretamente.
Observaram da varanda as agentes se afastarem e quando já não podiam mais vê-las a olho nu, pegaram binóculos. Certificaram-se que as agentes estavam a uma distância segura para colocarem seus planos de fuga em ação.
— Vamos!
Helena chamou a esposa, entrando em casa. Ambas começaram a montar dispositivos nas portas. Quando estivessem a uma distância segura, elas acionariam os dispositivos remotamente e eles provocariam um incêndio controlado na parte interna. Assim, se assegurariam que suas digitais fossem destruídas com tudo que estivesse dentro da residência. Os sprinklers acionariam após a destruição e apagaria o incêndio, preservando a construção. Desta forma, não chamariam a atenção do povoado, antes de estarem longe e seguras.
Por fim, saíram pela parte de trás do terreno. Caminharam sem levar nada, pois tinham que chegar rápido até o outro lado da elevação que ficava a cinquenta metros da residência. Lá havia um atracadouro, onde tinham deixado a lancha de viagem com tudo o que necessitavam.
Zarparam, afastando-se da ilha no sentido oposto ao continente. Não retornariam mais àquele país. Teriam que se esconder do mundo mais algum tempo, isoladas e sem comunicação. Desta vez, o tempo de isolamento não excederia a um ano. Tinham planos para o futuro. Imaginaram uma forma de salvar agentes como elas, que queriam largar a profissão, dando-lhes segurança para o resto de suas vidas.
Já sentindo a tristeza do fim😞
Bjs Carol
Um excelente fim de semana pra vc