A paisagem era tão bonita quanto desoladora. Elas queriam se desligar de tudo e desaparecer da face da terra e, conseguiram.
— Três anos, Isa. Já tô de saco cheio. Nunca pensei que na minha aposentadoria viveria num lugar em que vejo só gelo a maior parte do ano.
— Pense que temos muita grana e que ganhamos o suficiente para ficar longe dos radares, Helena. Estamos mortas e é assim que queremos.
— É. Sem tecnologia, sem informação e sem conhecimento. Esse último que me mata.
— Vou liberar a internet da cabana hoje. Já estou com meu novo nome. Você tem que escolher o seu.
— Eu gosto de Helena. Que tal só mudar o sobrenome?
— Sabe que não é prudente. Três anos para nós é muito, mas para o mundo tecnológico não é nada.
— Ok. Ok! – Coloque Marina da Silva Santos no ID que fará para mim.
Isadora gargalhou.
— Então seremos cunhadas, viúvas de uma tragédia familiar ou só esposas?
— Por quê?
— Fiz meu ID com o nome Martina Nascimento Santos.
— Nós duas seremos brasileiras numa ilha tropical qualquer?
— Ainda temos que achar a ilha em que viveremos, Marina.
Helena gargalhou com gosto.
— Não vou ser uma cunhada de tragédia familiar. Vamos escolher um lugar que tenha casamento homoafetivo.
— Só o casamento, não. Quero um lugar em que seja natural duas mulheres se casarem.
— Ih! Então, danou-se tudo, Martina.
Helena riu novamente, contudo precisavam se acostumar com os novos nomes. Saiu da varanda da cabana, onde o branco da neve se estendia até o olhar se perder. Entrou, esperando a esposa a acompanhar.
— Alguém do seu lado sabe que sobrevivemos?
— Do meu, não. Nem mesmo Margot. E não me pergunte se alguém descobriu, porque apesar de estar controlando o dia de nos reconectar só fiz hoje, na data programada por nós.
— Então, faz logo a minha identidade. Uma coisa tenho certeza; Annan vai saber e isso tenho medo, Isa.
— A gente sabia que não podia se esconder de tudo. Não confio, mas pelo menos fomos nós a habilitá-la.
— Certo. Mas, antes de sair da “toca”, quero ver a repercussão do que passamos naquela ilha. Quero ver se descobriram que a gente armou a nossa morte.
— Não mesmo. Já conversamos sobre isso. Se descobriram, vão nos procurar, seja quem for. Se a gente começar a cutucar na rede sobre o assunto, irão nos achar com maior facilidade. Quero viver em paz. Se nos acharem daqui a dez… vinte anos, é melhor do que acharem agora.
— Tá bem! Tá bem! – Helena bufou. – Vamos escolher logo nosso lar. – Sorriu. – O que seremos na nova casa?
— Aposentadas, ué? Helena, quer melhor do que isso? Vamos ter dinheiro, uma casa e mar na nossa frente. A gente não pode ter negócio. Não vou facilitar ninguém a me rastrear, ok?
— Mas aposentadas de que? Temos que construir um passado.
— Serviço público. Assistente administrativo em algum país em desenvolvimento. Nossos nomes se perderão na estrutura.
— Nossa! Radical isso, não?
— Radical? Como assim? A gente recebia tiro no lombo, Helena.
— Por isso que falo que é radical. Já imaginou o tanto de dor de cabeça que essa gente passa com chefe em cima, gente te xingando e a porcaria do serviço não andar, pois a estrutura é uma merda? A gente tinha adrenalina injetada na veia. Eles só aguentam, coitados, nem adrenalina têm.
Isadora fitou a esposa incrédula.
— Você é doida.
Riu.
Na varanda de sua casa, Martina olhava o mar translúcido e sentia a brisa batendo em seu rosto. Inspirou fundo para sentir o ar fresco da manhã a encher seus pulmões. Não lembrava quando em sua vida esteve tão serena e feliz. Era bem verdade que sentia falta da adrenalina das missões, contudo compensava com mergulhos em profundidade, escaladas nas montanhas e, às vezes, saltava de parapente.
Para não enferrujar o corpo nem a mente, nunca deixou o treinamento de lado. Um dia poderia ter que lançar mão de suas habilidades pregressas para se proteger e a sua esposa. Entretanto, não era algo que a consumisse em preocupação até a noite anterior…
Sentiu a cintura ser enlaçada pelos braços de Helena e o corpo dela se colar ao seu por trás. A ex-agente e chefe pousou o queixo sobre o ombro de Isadora ou Martina, como melhor preferissem se chamarem dentro do aconchego do lar, e emparelhou seu rosto com o dela.
— O dia está lindo.
— É. Eu acordei muito cedo e quis ver o sol nascer. Tem café?
— Tem sim. Acabei de fazer. Espera, vou pegar para a gente.
Helena desalojou o corpo e foi para dentro da casa. Demorou um pouco mais que um minuto e retornou com duas xícaras na mão. Deu uma delas para Isadora e deu um gole na sua, ficando ao lado dela, apreciando a paisagem também.
— Você está preocupada. O que foi?
Isadora inspirou, antes de contar o que havia descoberto no dia anterior.
— Um grupo da Alpha Dìon está acompanhando um diplomata francês em sua visita ao continente. Chegaram ontem à noite.
— Bem, já faz sete anos desde que nos deram como mortas. Talvez não seja nada. Estão cumprindo mais uma missão.
— É. Talvez…
Helena largou a xícara de café sobre a mesinha e se sentou no guarda-corpo da varanda, ficando de frente para Isadora.
— Vem cá, vem.
Puxou a esposa pela cintura e a acomodou entre as coxas, enlaçando-a. Fitou-a por segundos e beijou seus lábios de leve, afastando-se logo após.
— Nós sabíamos que situações como essa poderiam acontecer. Não temos que fazer nada. Não temos que ir ao continente. Podemos, simplesmente, pegar nossa lancha e nos afastar por alguns dias ou, ainda, ficar aqui em casa monitorando os passos deles.
— É eu sei. Prefiro ficar aqui e monitorar.
— Tudo bem. Faremos isso.
Helena a beijou novamente, tentando tranquilizá-la, no entanto, ela não estava tão calma quanto fazia crer. Preocupou-se também.
— Conhece quem está nessa missão? Depois de tanto tempo, deve ter gente nova atuando na Agência. – Perguntou serenamente, fazendo Isadora sorrir diante da pergunta. – O que foi?
— Estou rindo de você. Conseguiu me enganar direitinho. – Riu outra vez. – Me desculpe se a preocupei. Realmente pode não ser nada, mas estranhei que as agentes que vieram são um híbrido entre a minha equipe e a sua, além de ter Ária à frente da missão.
— Mmm… É bizarro mesmo. E sabe o que é mais bizarro?
— Não, o quê?
— Que você saiba de tudo isso só monitorando as câmeras públicas de tráfego.
— Não foi só por monitorar as câmeras de tráfego. Eu soube da chegada vendo o jornal local. O primeiro rosto que vi foi de Jackie e, aí, prestei mais atenção. Logo atrás vinham Urze, Ária, Margot e Lavínia.
— Putz! Até Liv está nessa? Que merda!
— E depois disso, eu me remoí e remoí…
Isadora parou de falar e a expressão de seu rosto mudou da preocupação para o constrangimento.
— Não me diz que você fez o que estou pensando que fez? Ou melhor, me fala sim. O que você fez, Isa?
— Não briga comigo. A gente não briga há muito tempo…
— Ah, não! Você realmente fez. Droga, Isa! A gente tinha combinado!
— Não briga comigo. Eu fiquei agoniada.
— Tem noção de que entrar em contato com Annan pode ter sinalizado para a Agência?
— Nós determinamos as diretrizes dela quando Margot nos colocou como administradoras sêniores. Ela não pode nos delatar ou alertar a Agência.
— Não esqueça de quem fez o primeiro acesso. Margot é uma hacker experiente e extraordinariamente habilidosa. Você mesma me contou sobre ela. E depois, faz sete anos; quem garante que eles não tenham uma IA mais atualizada que Annan?
— Me desculpa. Eu errei pela ansiedade. Acho que estou enferrujada e não me controlei.
— Tudo bem… Tudo bem. Vamos nos acalmar e pensar no que fazer.
— Eu tenho uma ideia.
— Então fala logo, Isa.
— Se elas estão aqui por nós, vamos deixar que venham…
Helena enrugou o cenho, refletindo sobre a proposta. Sorriu levemente.
— É. Vamos deixar que venham — compreendeu o que Isadora propunha. Elas já tinham conversado muito sobre o que fariam se fossem pegas pela Agência e como agiriam.
O diplomata francês tinha ido embora há três dias e a casa de praia estava aberta, como sempre fizeram. Elas nunca deixavam as portas e janelas fechadas quando estavam em casa em dias ensolarados. O terreno era situado na beira da areia e a casa pequena, com uma varanda na frente e portas de correr no quarto e sala, davam uma visão paradisíaca. Havia mais dois quartos na parte de trás e uma cozinha ampla.
Cultivavam legumes, hortaliças e frutas no restante do terreno, suprindo parte de seus alimentos básicos. Não tinham luxos. A casa era melhor do que a dos pescadores locais, porém viviam na simplicidade. Nadavam no mar, se lavavam da água salgada em um chuveiro externo. Tinham uma lancha pequena que ficava atracada no trapiche que fizeram. Também tinham uma lancha maior com quarto, banheiro, sala e cozinha que ficava no iate club local. Só a utilizavam quando queriam fazer mergulho de profundidade ou pesca submarina.
O que era importante na vida delas nos últimos anos estava prestes a desaparecer. Um grupo de mulheres se aproximou, caminhando pela areia e pararam na frente da casa.
— Tem certeza de que é aqui?
— Eu as vi com meus próprios olhos ontem à tardinha. Estavam sentadas juntinhas bem naquele sofá da varanda. – Jacqueline apontou, mostrando o sofá, a poltrona de vime e a mesinha. – São elas.
— Está bem. Acredito em você.
Margot respondeu, diante da firmeza da agente amiga.
— Então, o que faremos? Vamos chamá-las?
— Acho que não, Ária. Iremos assustá-las e cairão de bala sobre nós. Pelo menos, seria o que eu faria.
— Você, certamente faria isso, Jackie – Margot debochou. – Disso, todas nós temos certeza.
Nos últimos anos, trabalhando com as agentes da equipe de Helena, a especialista em TI constatou que Jackie era a mais bélica de todas.
— O que faremos, afinal? Vocês a conhecem mais do que eu.
As quatro mulheres se entreolharam, analisando a pergunta que Ária jogou sobre o grupo.
— Não tem jeito. Vamos chamar, mas se preparem para alguma reação. Afastem-se umas das outras. – Elas obedeceram ao comando de Margot. Era a mais sensata do grupo. – Fiquem atentas para alguma retaliação.
Na medida que começaram a avançar na direção da casa, se distanciavam entre si. Alguém pisou em algo que fez um estalido. Elas tentaram correr para longe da casa na direção da água, todavia a maré estava baixa e a água distante. Foram pegas pela armadilha acionada. O dispositivo lançou sobre elas redes de pesca, imobilizando-as.
Helena e Isadora montaram armadilhas circundando toda a casa. As duas ex-chefes apareceram na varanda, empunhando submetralhadoras.
— Foi fácil demais… – Helena comentou.
— Ou não as treinamos bem ou elas estão desarmadas mesmo e vieram na paz.
O casal escutou um barulho vindo de dentro da casa. Tiveram segundos para se atirarem no chão e alguém foi atingido por um pêndulo feito de corda com cocos presos na ponta. Vird caiu como um peso morto sobre elas. Empurraram a agente de lado para se livrarem.
— Ela morreu?
— Espero que não, Helena. Não era para isso, eu juro.
Helena se colocou sobre a agente, tentando ver se ela estava viva. Mediu o pulso e estava forte.
— Ela tá viva. Vai ficar bem.
— Ótimo. Agora pega a arma e me ajuda aqui com essas. Já estão conseguindo sair das redes.
Imediatamente, Helena pegou a submetralhadora e se posicionou ao lado de Isadora, esperando que as agentes se desvencilhassem da armadilha.
— É sério isso, Isa?! – Margot reclamou. – Uma rede de pesca?
— Ué? Por acaso nunca ensinei a vocês fazerem armadilhas com o que tinham em mãos? Eu tinha rede de pesca, oras!
Vird começou a acordar e Helena apontou a metralhadora para ela.
— Você está bem? – Perguntou.
— Ainda não sei. Espera só um pouquinho. Esses cocos me pegaram de surpresa mesmo.
— Caramba, Vird. Tem que treinar mais a velocidade de reação. Escutou o click da armadilha?
Isadora olhou para a esposa com o cenho enrugado.
— É sério que você está dando dicas para sua ex-agente? Elas podem estar aqui para nos matar, sabia?
— Ah! Até parece que se acontecesse o mesmo com Margot, você não ficaria preocupada!
— Que tal a gente se acalmar? – Margot perguntou, espanando a areia do corpo. – Eu sei que é assustador para vocês, Isa, mas estamos aqui sem a Agência saber. Não viemos pela Agência. Só queríamos saber se estavam mesmo vivas e ver vocês.
Helena e Isadora se entreolharam. Ambas estavam propensas a acreditar, entretanto, não tinham certeza de que poderiam fazê-lo.
— Ok. – Helena se pronunciou primeiro. – Trouxeram alguma arma com vocês?
As agentes e ex-aprendizes balançaram as cabeças em sinal negativo, entretanto, Helena fitou Jackeline espremendo os olhos.
— Tá bom! Só trouxe uma faca, Helena. Mas se eu quisesse te matar, você me derrubaria com certeza!
A agente retirou uma faca minúscula de dentro do short.
— Jackie! – Helena ralhou. – Como você espera matar alguém com a faca praticamente dentro das entranhas? – Todas as agentes se olharam e riram em seguida – É eu acho que a frase não saiu como pensei. Ficou estranho, né?
Helena perguntou ligeiramente envergonhada para a esposa.
— Jackie é uma agente bonita. Talvez ela pudesse matar alguém com uma faca nas entranhas, amor. – As agentes riram outra vez.
– Tá bom, tá bom! Vamos parar com as brincadeiras. Isso é sério. – Isadora se imbuiu do ar severo novamente. – Se vocês entendem da gravidade da situação, sabem que não podemos facilitar. Entrem no mar até a água cobrir seus corpos por completo.
— Fiquem dois minutos lá dentro. Nós as teremos sob a mira de nossas armas. – Helena continuou as instruções que Isadora tinha começado. – Depois saiam, retirem as roupas e se banhem no chuveiro ali. – Isadora apontou o chuveiro da área externa. – Tem um sabonete especial para retirar qualquer tipo de rastreador em spray.
— Se enxuguem com as toalhas que dispusemos e daremos a vocês novas roupas. – Isadora retomou a fala. – Façam isso em fila. As roupas de vocês serão queimadas.
— Se tivéssemos rastreadores, a Agência já saberia onde estamos.
— A Agência não tem conhecimento ainda, Margot. Se veio na paz, faça o que pedimos e não se preocupe com isso. Deixe essa preocupação por nossa conta.
As agentes não contestaram mais. Foram até a água e se banharam no mar, como as ex-chefes haviam pedido e logo a seguir, se desfizeram das roupas que foram colocadas num braseiro que ardia mais atrás. Tomaram banho e receberam roupas novas, sempre sob a mira das submetralhadoras.
Helena e Isadora haviam preparado tudo com antecedência. Desde que conversaram há uma semana sobre o que estava acontecendo, vigiaram as agentes com auxílio de Annan. A conversa entre elas e as agentes não seria fácil, todavia, certamente seria longa.
Melhoras Carol!!
É maravilhoso lê um novo capítulo, é qndo a história é boa sempre queremos mais e mais.
Beijos e uma ótima semana pra vc e sua família 😘
Oi, Blackrose!
Amanhã de manhã vai entrar capítulo novo. A gente já está na reta final e só faltam mais dois. Espero que goste. rs
Valeu, Blackrose!
Um beijão pra você e sua família