Ida e Lúcia eram duas irmãs que nasceram na região central da capital paulista, transitavam pelo bairro de moradia – Higienópolis – e pelo bairro alternativo de Santa Cecília.

Cresceram em meio às artes, os pais sempre incentivaram as filhas a estarem nesse meio, na infância e na adolescência, as duas percorrem várias vezes os corredores do MASP e da Pinacoteca paulista, as viagens também tinham como finalidade a visita a museus, a exposições e a concertos de música.

As personalidades das irmãs eram completamente diferentes, mas, como uma peça de quebra-cabeça, encaixavam-se perfeitamente. Ida se concentrava nas artes modernas, enquanto Lúcia se identificava com o clássico. As trocas entre saberes e opiniões artísticas eram contínuas e orgulhava os pais.

Nascidas numa família de classe média alta, estudaram em escolas particulares, perderam os pais na fase adulta jovem e, com parte da herança, Ida resolveu investir em um galpão no bairro de Santa Cecília e em um bar próximo à Paulista. Lúcia pegou parte do dinheiro e foi fazer curadoria pelo Velho Continente e, depois, especialização nos EUA e, lá, conheceu seu grande amor.

A pequena família tinha laços fortes, Sofia era uma filha e uma sobrinha amada demais, cresceu entre um amor selvagem e moderno da Tia Ida e um amor calmo e clássico dos pais.

Tinha em sua tia mais velha a personificação da força, da mulher de negócios, da inteligência, da arte crua, do tino para a multiplicação de valores e do amor pelos amigos. Ida era singular e plural ao mesmo tempo, a sobrinha nunca esquecera a primeira viagem das duas. 

Foram visitar San Sebastián, a capital do país Basco, a tia iria fazer uma imersão sobre a culinária clássica e moderna, o encontro de sabores e ingredientes tradicionais propiciava descobertas culinárias incríveis, foi dessa viagem que Ida teve a ideia de incluir no cardápio do Aquarela os pintxos (grafia a origem basca), Sofia aprendeu que pinchos é em castellano, como forma de respeito à cultura, a tia optou por usar no bar a forma tradicional basca.

É em San Sebastián que se encontra também a maior concentração de restaurantes premiados com as estrelas do Guia Michelin, ou seja, andar pelas ruas da cidade com a tia foi um presente de 15 anos inesquecível.

A viagem durou um mês inteiro, justamente o período de férias escolares de Sofia, andar pela pérola da costa cantábrica não era para qualquer um ou uma ainda mais para uma adolescente de 15 anos, a percepção de mundo se ampliaria, conhecer novos mundos, novas pessoas e uma gastronomia cinco estrelas era privilégio de poucos.

Sofia lembra praticamente da viagem inteira, dos aromas cheios de salinação, do cheiro de marisco e de queijos dos mercados que visitava com a tia e até dos vinhos, mesmo sendo proibida de consumi-los, teve várias aulas sobre cor, textura, preço, origem, combinações.

Foi nessa viagem que a adolescente percebeu que a tia gostava de mulheres e não de homens. Falar sobre sexualidade ou sobre sexo nunca foi um tabu em casa, mas os desejos sexuais da tia não eram  discutidos à mesa, Robson, primo das irmãs, era assíduo na casa de Ida, tinha um namorado e foi com ele, sentado num café à beira da praia de San Sebastián, que Sofia soube do grande amor de Ida: Flora.

O tio, como Sofia o chamava, segurando uma taça de champanhe enquanto olhava um horizonte azul cheio de possibilidades, contou a história de amor de sua segunda mãe. Narrou o amor tórrido e avassalador entre as duas, na época, casais homoafetivos não eram bem-vistos pela sociedade, não que hoje isso tenha mudado drasticamente, mas as duas vinham de famílias tradicionais, de classe média alta, conheceram-se ainda no ensino médio.

Entraram na universidade juntas, na USP, Ida para o curso de Administração, Flora para o curso de Direito. Duas mulheres fortes, com infinitas possibilidades. Ida tinha o pleno apoio dos pais e da irmã, já Flora, não.

O início do romance deu-se no final do ensino médio, numa viagem para o litoral paulista, e o beijo foi o mais doce e feroz que Ida já tivera. Quando Robson resolveu contar a história de amor de Ida, decidiu que seria um presente para Sofia, ele foi companhia das duas nos últimos dez dias de viagem.

Enquanto Ida estava em um curso de administração culinária, o tio foi companhia para Sofia, ele era engraçado, culto, competente, adorava encenar momentos de cinema e narrar este amor, para ele, era como descrever uma novela em tempo real, em que ele mesmo era personagem, não principal, mas que contribuiu e ajudou a mocinha em algum momento.

O romance durou quatro anos, chegaram a dividir um apartamento próximo à universidade e viveram um conto de fadas, até que o pai de Flora chegou de surpresa ao apartamento, sentiu um clima diferente entre as duas e foi direto falar com os pais de Ida, que foi acusada de transviar Flora.

O romance gerou uma grande especulação no meio em que frequentavam, na tentativa de sanar qualquer suposição, o pai de Flora arranjou um noivado rapidamente, casou a filha e a mandou junto com o genro para Paris, os negócios da família Holanda estavam em expansão, nada mais justo do que mandar a herdeira e seu marido para comandarem e alicerçarem o negócio.

Ida, segundo Robson, nunca se recuperou, havia em si, uma revolta latente e um amargor noturno que Sofia nunca entendera bem, segundo o tio, Ida chamou Flora de covarde, elas não precisavam do dinheiro da família Holanda para sobreviver, tudo era uma questão de tempo até as coisas se acalmarem, um novo governo se anunciava, a democracia estava chegando, uma revolução sexual explodia pelo globo, mas Flora deixou-se guiar pela astúcia do preconceito e cedeu aos apelos da mãe e à mão pesada do pai junto ao rigor das más-línguas.

Sofia viu no rosto do tio o lamento enfrentado pela tia, a solidão de anos e o mergulho no trabalho e na devoção pela sobrinha. Sofia sentia tudo isso e passou a compreender melhor alguns comportamentos da tia adorada.

Anos se passarem sem que Ida tivesse notícia de Flora, ao retornar de Paris 15 anos depois, ela permanecia casada e com quatro filhos, aparentemente, segundo Robson e as colunas de jornais, o casal seguia pleno e feliz.

O reencontro das duas foi na inauguração do galpão de artes de Ida em Santa Cecília, Flora não sabia que a dona era ela, naquela noite, a entrada estava repleta de jornalistas e a chegada de apreciadores de arte ou não era vislumbrada por um novo período que se anunciava no bairro. O artista era promessa e um investimento considerável foi feito, Ida estava radiante.

Os convites foram distribuídos para poucas pessoas, mas a porta estaria aberta para quem quisesse, geralmente, era assim que os galpões modernos funcionavam. Os críticos e a imprensa eram oficialmente convidados, mas as demais pessoas também eram bem-vindas.

Foi assim que, numa noite um pouco fria de outono na capital paulista, Ida e Flora se viram depois de quase vinte anos. 

Ida estava perfeita, muito bem-vestida, ainda aparentava o espírito selvagem da adolescência, tinha um sorriso largo e cativante, quando Flora a viu, sentiu o corpo todo se arrepiar e aquele sentimento de frio no estômago voltou automaticamente.

Os olhares se cruzaram e o encanto deve ter durado um minuto inteiro, até Ida ser puxada por alguém que trabalhava para ela para tirar fotos. Robson observou tudo de longe e, no dia, resolveu falar com Flora.

Acompanhou a jovem senhora para um drink, conversaram um pouco, Flora se desculpou, perguntou por Ida e ele lembra ainda hoje o que dissera:

– Qualquer coisa que queira saber de minha prima, você deve perguntar a ela.

Naquela noite, Flora deixou o galpão com um aperto no peito, dias depois de ter vasculhado a vida de Ida, resolveu voltar ao galpão, sabia que pelas manhãs ela estaria lá.

– Bom dia, gostaria de falar com a Ida. Foi isso que Flora disse para a secretária dela, uma frase simples sem delongas e despretensiosa.

– A senhora tem horário marcado?

– Não, mas gostaria de falar sobre algumas obras em específico, é necessário agendar horário?

– D. Ida está na oficina, se a senhora aguardar, ela deve subir em no máximo vinte minutos. Flora resolveu esperar. Aceitou o café e a água, quarenta e cinco minutos depois, viu Ida entrando pela sala sem perceber sua presença.

– D. Ida, a senhora Flora está à sua espera há um tempo, ela gostaria de lhe falar sobre algumas obras.

Ida virou e viu o grande amor da sua vida, sentada, com um olhar confuso e cheio de medo, ficou parada alguns segundos e resolveu convidá-la para entrar.

Ida nunca revelou a Robson o teor da conversa das duas, por isso, ele não poderia revelar a sobrinha sobre o que as duas conversaram, aquela história de amor, morria ali, dentro de uma sala de um balão que exalava arte, mas também sofrimento, pelo menos naquela manhã. O que ele sabe é que Flora acabou comprando as obras, três num total, mas que as duas não voltaram a se falar novamente. 

Sofia chorou como se ela própria tivesse sido abandonada pelo seu grande amor, se já amava a tia, passou a idolatrá-la, lamentou a tia não ter se envolvida de forma consistente com mais ninguém, sabia que ela tinha encontros amorosos com algumas mulheres, mas nada passava de satisfação sexual, apenas isso, o coração de Ida sempre fora de Flora, depois disso, Sofia ouviu esse nome de novo quando Ida ficou doente.

Quando adoeceu, sua irmã Lúcia – mãe de Sofia – viera de Malibu – nos Estados Unidos – para cuidar da irmã. A doença de Ida fora devastadora, ao descobrir o câncer, o médico relatou que o tratamento seria paliativo, pois a doença já se enraizara nos ossos. A irmã e a sobrinha deram à Ida, na medida do possível, a morte mais amorosa, as três eram um conjunto humano de criaturas que se amavam incondicionalmente, mesmo que, às vezes, a tristeza se tornasse uma companheira também. 

Foi depois do diagnóstico que Flora reapareceu, tentou alguns telefonemas, mas Ida sempre dizia que não queria atender, para que ninguém insistisse. As duas nunca se viram novamente.

Depois de oito meses de tratamento e de uma rápida viagem das três a Buenos Aires, onde dançaram tango, beberam vinho e foram a cafés, Ida faleceu em casa olhando para rostos carinhosos e flores que perfumavam e enfeitavam seu quarto.

Era uma mulher perseverante e vira na sobrinha sua imagem e semelhança, por isso, o Aquarela ficaria em ótimas mãos, depois da morte da tia, Sofia foi com a mãe passar uma temporada com o pai em Malibu, somente depois de três meses voltou ao Brasil, soubera que herdara da tia o bar, um apartamento no bairro de Higienópolis, o jipe Land Rover, algumas joias. Sofia ficou impressionada com as últimas declarações da tia, tocada e confiante, aceitou o apartamento, o bar e o carro, nas joias, ela não mexera, via nos cordões e brincos a personificação da tia e ainda não estava preparada para fazer uso dessas lembranças de forma harmoniosa e não tão dolorosa.

Sofia era noiva de Rodrigo há dois anos, o relacionamento dos dois estremeceu bastante com a doença da tia, Ida achava que Rodrigo era fraco e subserviente, não gostava de pessoas que ao conversar não olhavam nos olhos, imaginava que Rodrigo não aparentava ser o que era. Algumas vezes, viu-o agarrando o braço de Sofia com força, geralmente, isso ocorria nos fins de noite no bar, quando já havia ingerido bastante bebida alcoólica, agarrava o braço de Sofia com força e a puxava, alegando que outros homens estavam de olho nela, Carlão, várias vezes, chegou perto e encarou Rodrigo, ele de pronto soltava o braço de Sofia, que tinha lágrimas nos olhos. 

No início do relacionamento, Sofia era muito apaixonada por Rodrigo, conheceu-o através de amigos em comum, o engenheiro mostrava-se amoroso, respeitador e calmo, comportamento bastante diferente dos últimos meses. Depois de várias conversas e promessas, Rodrigo não mudou, quando Ida morreu, antes de viajar, Sofia deu o veredito final e terminou o relacionamento de quatro anos.

Liberta dos resquícios e machucados do passado, Sofia retorna ao Brasil para assumir o bar de sua tia.

 

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