Distâncias

Distâncias – Segunda Parte

Parte Dois

Na porta da sala, estava uma mulher alta, esguia, cabelos até os ombros, olhos negros e frios, um belo rosto que naquele momento parecia granito.

– Não sabia que estava aqui para aprisionar mulheres. É para isso que recebe, Coronel? É para isso que estudou, treinou? E os senhores que o acompanham?

Slovax interferiu. Perfilou-se e falou.

– Todos culpados, senhora.

– Tenente, cale a boca.

– Seu nome, tenente, e aqui só fala ou se cala quem eu mandar, capitão.

– Sim, senhora.

– Tenente Slovax, senhora. Esquadrão de assalto.

– Por que está com eles?

– Fui ferido em batalha e estava me recuperando, então fui colocado na administração.

– Esteve na base quatro, ultimamente?

– Estive, sim, senhora.

– Mandou uma mensagem?

– Sim, senhora. Não havia outra coisa a fazer e estava enojado demais.

– Estuprou alguma, tenente?

– Não, senhora.

– Como não? Essa aqui passou várias noites com você. – O Coronel puxou Tanid pelo braço.

– Passei várias noites com ele e ele nunca me tocou.

– Atuaram, tenente?

– Era a única forma de salvá-la, senhora.

– Sei. E então, doutor?

O médico havia coberto Nantani e a examinara com aparelhos que não tinham em Tah`plox.

– Contusões além das visíveis no rosto, três costelas fraturadas, luxações no braço esquerdo, boca com cortes internos, desidratação e desnutrição leve.

– Leve-a para a nave e dê-lhe o melhor tratamento possível.

– Senhora, posso cuidar desta? É grave. Está quase catatônica, fugindo da realidade.

– É compreensível. Prossiga. Alguém mais está machucada? Alguém mais precisa de cuidados médicos?

Foram divididas entre quem precisava do psiquiatra, do médico, curativos e as que podiam ir para suas casas.

– Capitão, tem celas lá embaixo, coloque o Coronel e sua “turminha” lá, para passar a noite. Amanhã cedo, será tudo resolvido.

– Eu sou um Coronel, comandante das tropas, eu tenho direito a …

– Você é um nada, sem direito nenhum. Cale a boca.

Os quatro foram jogados nas celas, onde haviam prendido as 8 mulheres.

– Quem é ela?

– Psiu, por favor, Tanid. – Murmurou Slovax.

– Parece que tem uma amiga aqui, tenente. Mantenha-a.

– Gostaria que assim fosse, senhora, mas depois de tudo, não sei.

– Sabe, sim. Você vale bem mais que esses quatro lixos.

– Pode dizer a ela quem sou eu. E obrigada pela mensagem. Até amanhã.

Saiu, bem como todos que a acompanhavam. As que precisavam de algum auxílio médico, já haviam sido levadas.

– Ela é uma princesa do planeta Dolgat. Lá eles utilizam o sistema de reinado e ela é uma das filhas do rei, embora seja diferente. Por exemplo, se o rei ou a rainha fazem algo errado, que afete o povo, o senado pode convocar eleições para um novo rei. Caso eles sejam bons governantes, seu filho ou filha por eles indicado, governará. Não é vitalício como vê, mas, além disso, ela é general, das melhores, é quase imbatível e este cargo foi conquistado, ela não o perderá facilmente.

– Foi pra ela que você enviou a mensagem?

– Não, enviei para a nave mais próxima, mas acho que por ter um Coronel no comando, remeteram para à comandante do setor e ela resolveu verificar pessoalmente. Eu só havia dito “Urgente presença oficial superior. Problemas morais do comando. S. Base 1”. Só que enviei da base quatro. Amanhã, com certeza vão conversar comigo.

Pela manhã, houve um comunicado de que aconteceria o julgamento dos quatro oficiais e seria transmitido para todo o planeta e para o Consórcio. Montaram uma espécie de arena, na praça central da cidade. Militares fizeram um círculo grande. A General entrou no círculo e esperou. Dali a pouco, os quatro oficiais foram trazidos e colocados no centro, fecharam o círculo.

– Senhores, o Consórcio já tem conhecimento de seu procedimento. Escolhem ser julgados lá ou pelos militares?

– Escolhemos nossos pares para nos julgar.

– Que todos saibam que eles escolheram. Eu, Gail, juíza deste julgamento, devo concluí-lo.

– Mas não somos do seu planeta. Exigimos um igual.

– São do exército do Consórcio, que me designou como juíza. Vocês não têm pares, nem iguais. Estão abaixo disto. Olhem em volta e verifiquem. Eu faço questão de encerrar este assunto. Alguma arma?

Os quatro olharam em volta e observaram os olhares dos seus subalternos. Qualquer um teria prazer em cortar-lhes a garganta.

– Quem mais ficará com os outros?

– Coronel! Eu sou a única juíza aqui. Queria saber para escolher as armas adequadas? Pois já sabem, podem escolher.

– Contra os quatro?

– Um por um, ou todos juntos, se quiserem.

Tirou o casaco, ficando com uma roupa que parecia para treino. A população estava intrigada. Que tipo de julgamento seria aquele? Por que os quatro pareciam amedrontados? Ela parecia uma gata à espera de ratos. Os quatro entreolharam-se, depois olharam as armas. Nenhuma de disparo à distância, é claro, apenas bastões, lanças, armas brancas.

O Coronel respondeu:

– Nenhuma.

Ela estava parada. Parecia serena, até mesmo divertindo-se. Eles começaram a deslocar-se, devagar, tirando as túnicas e jogando-as para o lado, sem tirar os olhos dela. O major, de repente, gritou e correu para atacá-la. Da forma que chegou, foi jogado pra cima e para o lado, caindo no chão estatelado. Os dois capitães atacaram lado a lado, parecia que ela ficaria entre os dois que a golpeariam simultaneamente, no entanto, quando estavam próximos, ela deslocou-se com enorme rapidez para o lado, apanhando o braço do que estava à sua esquerda, girando para detrás dele e continuando o giro, arremessou-o contra o outro. Enquanto se desvencilhava do parceiro e levantava-se, viu que o braço dele estava partido. Apavorado, procurou e encontrou-a, ou melhor, foi encontrado por um golpe no peito, sentindo a caixa torácica partir-se. O major estava de pé e avançou novamente. Ela deu um giro e seu pé acertou o pescoço dele, quebrando a traqueia. Voltou-se então para o Coronel que ainda não se movera e abriu os braços. Os outros três foram retirados para atendimento médico. Caso sobrevivessem, tinham sido julgados culpados e passariam o resto de suas miseráveis vidas, presos.

O Coronel começou a se mover com agilidade, parecia um pugilista; ela esperava. Ele atacou, querendo terminar rápido com a luta, tentando pegar o pescoço dela. Sentiu seus braços empurrados e desequilibrou-se. Ela se abaixou, golpeou e saiu do campo de visão dele, que caiu com o rosto no chão.

– Levante-se, Coronel, foram só suas costelas. Ainda falta muito, ela aguentou bem mais, não foi?

Então era isso. Ela queria lhe impor os ferimentos que ele causara àquela desaforada, pois ia mostrar à ela. Ia pegá-la e fazê-la pagar a prepotência. A raiva crescera. Levantou-se e atacou outra vez. Ela sumiu de sua frente.

– Está com raiva, Coronel? Está muito lento. Será por causa das costelinhas? – Gail zombou.

Ela estava humilhando-o, não podia deixar isso acontecer. Só ouvira falar de como o povo de Dolgat tinha uma tribo guerreira, com treinamento especial, que eram mais fortes e mais rápidos e que os comandantes de seus exércitos, eram sempre daquela tribo. Tinha que fazer algo e rápido. Foi se aproximando devagar, só precisava segurá-la. Tinha certeza de ser mais forte, ela não tinha músculos bem desenvolvidos, era esguia, era normal. Quando colocou a mão próxima ao pescoço, ela agiu, com um braço empurrou os dele e acertou-lhe um soco no rosto, rapidamente.

– Levante-se, Coronel. Está me vendo? Parece que seu olho está dolorido.

A cabeça doía, latejava, enxergava quase nada com o olho esquerdo, o mesmo lado que acertara Nantani. Não conseguia pensar, todo seu corpo doía.

– Estou aqui ainda, Coronel. Vai demorar?

Tentou socá-la, sentiu o puxão e ouviu o estalo. Olhou para seu braço e viu sangue e osso. Caiu de joelhos, queria deitar e dormir, não se lembrava o que fazia ali. Levantou a cabeça e olhou a mulher à sua frente.

– Hum – fez Gail, num tom de descrédito, quase um murmúrio. – Tirem-no daqui.

Arrastaram-no com desprezo, para ser atendido pelo médico. O povo ficou pasmo. Será que, em algum momento, ele tivera alguma chance de sair-se bem? Achavam que não. Nantani vira tudo, pela tela na enfermaria da nave.

– Doutor, é sempre assim que resolvem as coisas?

– Ele ofendeu todos os militares com sua atitude; então eles o julgam. Foi um crime considerado gravíssimo.

– Não acha que é muita violência?

– Ela fez a ele algo que ele não fez a você?

– Não. É justiça rápida?

– Não, a justiça ele terá pelo resto da vida, permanecendo preso. Era pra ele sentir a dor e a humilhação que causou a alguém que nada fizera contra ele. E eles podiam se defender, ou recusar a lutar e ir para um julgamento normal no Consórcio.

– Então, por que escolheram este modo?

– Se vencessem, mostrariam que tinham honra, que não eram tão culpados assim. Principalmente, porque não sabiam que seria contra ela, acharam que seria contra os da mesma raça.

– Pareciam ter um pouco de medo. Não o Coronel; os outros.

– Quando souberam que seria ela quem os “julgaria”, tiveram mesmo medo. Conhecem a fama de sua tribo como guerreiros, mas nunca lutaram com eles, então não sabiam se tinham alguma chance.

– Por que não escolheram arma?

– Pensaram que estando em quatro, levariam vantagem em força bruta.

– E se tivessem escolhido alguma arma?

– Estariam todos mortos.

Nantani não conseguia entender as bases de tal violência, a dualidade entre justiça e vingança daquele povo.

***

Mais tarde, Gail entrou na enfermaria.

– Então, doutor, como elas estão?

– Com exceção de Nantani, todas as outras já estão em casa. O psiquiatra está no planeta para ajudar a quem necessitar. Esta precisará de alguns dias, embora já tenhamos reparado as fraturas.

Gail parou ao lado da cama de Nantani e ficou esperando que ela a olhasse. Nantani, que lia um livro pelo computador, ouvira-a conversando com o médico, mas não pensara que viria conversar com ela. Ao percebê-la ao lado, de imediato voltou-se para ela. Não parecia a mesma pessoa que vira quando prisioneira, ou a que lutara com seus algozes. Parecia calma, trazia suavidade no rosto.

– Bom que já consiga se sentar para tomar conhecimento de nossa literatura, sem que a dor causada pelos ferimentos prejudique. – Gail sorriu.

– Estou bem. – Nantani respondeu. – Já disse ao doutor que posso ir pra casa, mas parece que ele não vai deixar; por uns dias, pelo menos.

– Você nos é importante. Foi a mais atingida pela violência e incoerência de um representante nosso; qualquer falha seria imperdoável. Será levada para casa, assim que tivermos certeza de que não haverá nenhum contratempo com sua saúde. Até lá, desfrute nossa hospitalidade, indo onde quiser, pedindo o que precisar.

– Eu que pensei que fosse pelos meus belos olhos, ou pela minha sensacional conversa.

– Desculpe se fui franca e desagradei você, mas ainda não a conheço para saber o quão sensacional possa ser sua conversa. Prometo que tentarei descobrir. Com licença, até mais tarde.

Nantani percebera que fora extremamente cínica e mal educada com sua anfitriã, mas não gostara do que ela falara.

– Doutor, por acaso sou prisioneira na nave? E se eu quiser ir embora?

– Você não é prisioneira. Se quiser ir embora, indique um médico que irá se responsabilizar pela sua saúde. Ele será trazido aqui, vai examiná-la e, se disser que você pode ir, estará liberada.

– Sem um médico?

– Ela não permitirá.

– Ela é sempre assim, formal?

– Só com pessoas que não conhece, estejam sob sua responsabilidade e a tratam com frieza.

– Não fui gentil, não é?

– Não, não foi. Vou desligar o tradutor, apagar tudo. Hora de dormir.

– Não desligue o tradutor nunca, doutor.

– Ficará ligado. Boa noite.

Nantani demorou a dormir, pensando naquela civilização tão diferente da sua, tentando entender a união de três planetas, cheio de pessoas, tradições, crenças diferentes entre si, unidas por interesse comum e conseguirem manter e trabalhar com as divergências, sem brigarem. Pela manhã, após sua higiene e um bom banho, pensando na fome que começava a sentir, depois de dias vestida com roupa de tripulante, assustou-se ao sair do banheiro.

A senhora “formal”, estava esperando-a na enfermaria, impecavelmente fardada, como sempre.

– Bom dia! Desculpe, se a assustei.

– É que não fez nenhum barulho.

– Quando entrei, não sabia se estaria dormindo. Está suficientemente bem para ir tomar café no refeitório?

– Claro.

– Não que esta roupa não lhe fique bem, mas quer que mande buscar alguma sua?

– Não, obrigada.

– O que faz na vida?

– Sou professora. Leciono literatura na faculdade.

– Então, deve ser boa conhecedora de poesia?

– O suficiente. Não sabia que um General poderia se interessar por literatura ou poesia.

– Conheço algumas culturas e, em todas, existem alguns pontos em comum. Escrevem sobre seus heróis, suas leis, suas histórias e estórias, seus sonhos, suas esperanças e suas tecnologias.

– Não falou sobre família, amor e natureza.

– Não são pontos comuns a todos. Existem civilizações tão voltadas à ciência e tecnologia, que só olham para o céu para ver se as naves não se acidentaram; outras, seus seres são criados pela ciência, sem contato físico para tal e nessas formas, imagine se sabem, ou melhor, se lembram do que seja natureza. Nas que têm esses pontos que você mencionou, esses fazem poesias e músicas.

– General! – Nantani exclamou. – Está me surpreendendo.

– Quais autores mais conhecidos em seu planeta e o tipo de coisas que escrevem? E quais os seus favoritos?

Conversaram sobre esses assuntos por um longo tempo. Saíram do refeitório e foram para um local que parecia um jardim de uma cidade e Nantani se empolgou em falar sobre a história de seu povo, até ser interrompida.

– Desculpe, mas tenho que deixá-la agora. – Gail falou. – Mais tarde continuaremos nossa conversa, agora deve descansar e medicar-se. Sabe voltar sozinha?

– Acho que não.

– Venha.

Saíram do jardim e Gail chamou alguém.

– Esta é a tenente Drisa, vai levá-la até a enfermaria. E se quiser andar um pouco depois e companhia, é só chamá-la; senão pode ir só e perguntar ao pessoal. Com licença.

De volta à enfermaria, foi medicada e examinada.

– Doutor, a cada meia hora me examina, todos são extremamente gentis comigo e a General ontem me disse o por quê, mas dá pra me tratar normalmente um pouco?

– Está se irritando? Que foi?

– Estive conversando com seu General. Depois que a deixei, estive pensando. Ela puxou um assunto em que me empolguei e falei como se estivesse dando aula, mas com alguém muito inteligente e perspicaz. Ela estava me analisando, não estava?

– Pergunte a ela, eu não a conheço tão bem assim, ela não é uma pessoa muita aberta. Tem alguns amigos aqui que a conhecem bem, mas duvido que também digam algo.

– Pois eu vou perguntar, quando ela vier conversar de novo.

– Ela virá?

– Disse que conversaríamos mais tarde.

– Então, virá.

Nantani leu, relaxou, descansou e resolveu andar um pouco. Saiu da enfermaria e o doutor só acenou. Bom, realmente podia sair. Ninguém prestou atenção a ela, a não ser quando falava com as pessoas, aí sim, paravam, falavam, sem nenhum problema. Subiu, desceu, conversou, até se cansar. Aí descobriu que não tinha a mínima ideia de onde estava. Aquilo era enorme. Pelas vigias que passara, vira naves atracando ou saindo. Aquilo era uma nave-mãe. Parou um tripulante e perguntou-lhe como poderia encontrar a tenente Drisa. Ele falou num pequeno relógio, cheio de coisas, no pulso e a tenente respondeu que estava a caminho. Chegou logo em seguida.

– A senhorita andou muito; ainda não está totalmente curada. Precisa ir mais devagar.

– Tá bom. – Nantani sorriu. – Pode me levar de volta? Cadê a General?

– Está em seu planeta.

Voltou conversando, perguntando tudo que podia, pois descobriu que ninguém se preocupava em esconder alguma coisa. Perguntou sobre Gail e soube que era admirada e respeitada; e fechada.

O doutor estava preocupado:

– Faz tempo que saiu. Como está?

– Com fome.

– Ah, sim! Hora de almoçar.

***



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