— Corta! O que vocês estão imaginando? Que é filme pornô?
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Essa era Donna, minha querida amiga. Ela havia conseguido recursos para fazer um filme. Estava empolgadíssima, mas andava meio estressada com o “cast”. Quando fez faculdade de cinema, era o que sonhava em realizar na sua profissão, porém a vida a empurrou para a “tv” e lá fez seu nome. Agora realizava a etapa da vida que almejava. Eu estava muito feliz por ela; no entanto, ela andou me rondando muito tempo, por conta desse filme. Vou contar a vocês.
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Donna levantou de sua cadeira situada atrás das câmeras, de frente para um cenário e caminhou, desanimada, em direção ao centro do set de filmagem. Duas atrizes estavam posicionadas, uma de frente para a outra. Uma delas se encontrava apoiada nas costas do espaldar de uma poltrona e a outra, segurava a cintura da companheira de cena com uma das mãos, enquanto a outra mão firmava a perna em seu próprio quadril.
— Você falou para trazer o quadril dela de encontro ao meu, enquanto eu falava em seu ouvido!
— É. E disse para que eu movesse minha pelve enquanto ela me puxava.
As duas atrizes falavam indignadas.
— Isso não quer dizer, que você tivesse que rebolar igual a uma batedeira e que ela, — apontou para a outra atriz. — falasse com tom de cafajeste, como se tivesse pegado uma prostituta na esquina da Avenida Atlântica com a Rua Duvivier de madrugada!
Olhos atentos à cena estreitaram e lábios abriram em um sorriso aberto.
— Chega! São quatro horas da manhã e já repetimos esta cena mais de quinze vezes. Não vai sair hoje. Vamos embora, mas quero todo mundo aqui às dez da manhã! Estamos atrasados no cronograma e espero que, amanhã, vocês consigam distinguir uma cena sensual e romântica de uma “trepada”, entenderam?!
Donna saiu do cenário, pegando sua bolsa pendurada no encosto da cadeira e se dirigiu a morena alta que a esperava. Deu um beijo nos lábios de Beth e suspirou. A detetive passou um de seus braços pela cintura da diretora e começou a caminhar com ela para fora do estúdio.
— Calma, Donna. Elas são “caretas”!
— Elas são atrizes, não interessa a sexualidade. Tenho pena das prostitutas, se tiverem que aturar clientes deste jeito… Merda! Elas foram tão bem nos testes, mas nas cenas de romance…
Donna parou um momento para se aprumar.
— Ok. Tá todo mundo cansado e estamos num “batidão”. Essa coisa de apoio governamental é ótimo para o cinema, mas os patrocinadores particulares são um saco! O cronograma é apertado, só que essa é minha oportunidade de deslanchar fazendo o que gosto.
— E vai fazer. Vai ser um grande filme, vai ver. As pessoas gostam de romance, principalmente os que terminam bem e nada melhor do que uma história que a gente sabe que é linda!
— Gostam de romance hetero, Beth. Embora eu quisesse muito acreditar, meu filme não vai primeiro para o grande público. Se eu conseguir emplaca-lo bem no circuito alternativo, vai ser uma vitória.
— Não sei como convenceu a Cléo e a Sophia…
— Com várias restrições, você sabe. Não posso relacionar nada a elas. Não querem sua história exposta. Tive que mudar o tipo de empresa, as dificuldades relacionadas… como o sequestro da Sophia, por exemplo.
— Como fez isso?
Perguntou Beth, sem entender como o processo se deu.
— Ah, no sequestro? Reescrevi como se a protagonista fosse enviada para negociação num país em conflito e ficasse presa por um grupo extremista, sendo feita a negociação de soltura através do governo.
— E o que você fez com o Cássio? Afinal, foi por conta do sequestro que Sophia se separou dele.
— Fiz dele um marido canalha, que não ligava para ela e que nem se colocou à disposição para as negociações. Não importa a dificuldade, Beth. Na verdade, o roteiro se transformou tanto com as restrições delas, que é praticamente outra história. O importante mesmo, é o que permeou a história intrínseca delas duas. A descoberta, os conflitos internos de cada uma, o amor que cresceu. Isso foi o motor.
— Mmm. E a família dela, o que fez? Certamente uma família riquíssima e poderosa no Brasil…
— Eles, no meu roteiro, eram pobres, mas cheios de preconceitos pela religiosidade. Ela lutou para se formar e entrou para uma empresa multinacional de extração de minério. Galgou espaços na empresa e se casou com um acionista de rede de hotéis. Namorou o cara e como engravidou, mesmo sem gostar, casou para não dar “desgosto” aos pais religiosos. Era oprimida desde a infância e mesmo depois, com grana, ainda “batia cabeça” para os pais, pela carga opressiva. Como disse Beth, não importa a dificuldade, contanto que eu mantenha a linha que permeou o amor das duas.
— Bom, só sei que amanhã a Cléo vai matar você, por não ir ao almoço de aniversário da Sophia. Sabe a situação que estão e como a Sophia anda mal.
— Ah, mas eu vou! Nem que eu tenha que fazer essas duas transarem de verdade naquele tapete do cenário, para me livrar dessa cena até ao meio dia!
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Entrei preocupada no quarto, pois Sophia falou que viria pegar um ventilador, por estar sentindo calor na sala. Estávamos com o ar-condicionado ligado. Tá certo que, com a temperatura que fazia por esses dias, o calor até burlava a potência do aparelho, mas não hoje. Uma tempestade caíra na noite anterior e o tempo permanecia fechado com uma chuva fina. A temperatura havia caído um pouco.
— Sophia… Sophia!
— Estou aqui.
Sua voz vinha do banheiro da suíte, fraca e atropelada pela tosse, e entendi imediatamente o que ocorria. Sophia me preocupou muito durante este último mês e não sabia mais o que fazer para deixa-la confortável. Atravessei o portal e vi que ela estava debruçada sobre o vaso sanitário, vomitando incessantemente. Meu coração apertava, cada vez que via Sophia desse jeito. Era como se minha alma entrasse em suspensão.
— Meu amor, por que não me chamou?
Perguntei, inconsolada, abaixando e segurando sua cabeça.
— Para que? Para sofrer junto comigo?
Falava, enquanto elevava a cabeça. Vi seu semblante pálido e seu peito arfante.
— E acha que sofro menos, quando não me deixa participar, sabendo como está? Não me exclua, Sophia. Eu fico pior, sabendo que aceitou isto por mim.
— Deus! Eu jurava que seria um menino, pois na gravidez da Melissa, foi muito distinto!
Ela sorriu e sinceramente, não entendi. Passava mal “horrores” e, quando passava o desconforto, ficava alegre que só ela. Estava no último mês de gravidez e todos falavam que os enjoos aconteciam nos primeiros meses. Ela começou a vomitar pela manhã, havia quinze dias e estávamos há dezoito dias, da data que a ginecologista-obstetra tinha marcado a cesariana.
— Está melhor?
— O que fez para o almoço?
Eu sorri, pois desde que começaram os enjoos, não aguentava comer nada com cheiro muito forte.
— Deus, Sophia! Por que fomos fazer isto?
— Porque eu queria muito. Sabia que você não tinha essa vontade toda para ser mãe, mas…
— Você tinha essa vontade toda?
— Queria ter um filho nosso e não queria demorar muito. Estou ficando velha para essas coisas…
Sophia deu de ombros, como se fosse algo essencial a seu ser. Eu sorri e estava mais que feliz de ter meu DNA em seu ventre, mas me doía vê-la passar mal deste jeito. Inspirei e olhei para seu abdômen. Ela estava maravilhosa! Linda mesmo.
— Está melhor?
— Sim, mas quero deitar um pouco. Ainda bem que é sábado e não tenho que segurar cada sensação de náusea que sinto, perante os gerentes.
— Você podia entrar de licença e…
— … e deixar a máscara de “mulher dura” cair? Nunca!
Gargalhei. Ela não tinha jeito. “Se estragava”, mas não perdia a pose!
Deixei Sophia dormindo, enquanto coordenava as coisas na cozinha para o almoço de aniversário dela. Eram onze e meia da manhã, quando tocou a campainha e Ramon foi verificar quem chegava.
— Oi, Ramon!
Mel entrava com Alexandra nos braços e Lucy vinha logo atrás, com Gabriel a reboque.
— Cadê mamãe?
Perguntou Melissa.
— Dona Sophia está descansando e dona Cléo, na cozinha com Luiza.
— Obrigada, Ramon. A Walda vem hoje?
— Fazer o que, né? Vim um dia antes do meu turno para a “madame” aproveitar.
— Não reclama Ramon. “Me lembro” dela ter tirado escala para você, para que fosse ao show do David Guetta.
— “Me lembro” também. Por isso que estou aqui hoje, dona Melissa. Escala a gente nunca esquece, pois quando esquece, quem tirou para a gente, sempre nos lembra!
Melissa gargalhou, colocando Alexandra no chão e conduzindo a menina pela mão.
— Sei como é isso. Beth nunca deixa que eu esqueça nenhuma.
Lucy colocava também Gabriel no chão, falando solidária ao segurança.
Cheguei à sala, enxugando minha mão em um pano de prato. Coloquei o pano em cima de uma mesinha de canto e agachei para abraçar Gabriel que caminhava ondulante em minha direção.
— Vó… vó…
Olhei Mel, repreendendo-a. Ela me devolveu o olhar com satisfação e encolheu os ombros, ironicamente.
— Não tenho culpa. Ensino que minha mãe é vovó… ele associou.
— Sei…
— Cadê minha mãe?
— Descansando no quarto.
Peguei Gabriel no colo e Alexandra veio em minha direção, guiada por Lucy.
— Ela está enjoada novamente?
— Parece uma tortura da idade. Já entrou no último mês assim.
A campainha tocou novamente. Era Donna, chegando com Beth e Gia. A menina já estava com quatro anos e, se dependesse de minha amiga, se virava sozinha. Não que Donna a deixasse fazer o que quisesse, mas ela achava que a garota tinha que ser independente e tentava não mimá-la. Resistia para não a colocar no colo, cada vez que a garota pedisse.
Eu olhava o jeito que minha amiga tratava a filha e olhava a forma de Melissa educar os dela. Eu ficava num impasse. Tinha coisa que eu concordava em um casal, no jeito de educar, e tinha coisas que eu concordava no outro casal. Tinha medo de errar.
— E aí, Donna? Está indo tudo bem no filme? – Perguntei.
— Cara, ontem foi uma “lenha” gravar uma cena, mas hoje a coisa fluiu.
— Que cena?
Perguntei inocentemente. E para que? Donna gargalhou olhando para mim e disse.
— A “trepada” no escritório. Mas já mudei diversas vezes a posição, pois não tinha como! Parecia cena de filme pornô, não dá para colocar em filme comercial, aquilo!
Ruborizei. Maldita hora que fiz um laboratório com a Donna, para ela escrever esse roteiro!
— Cara, eu posso viver a minha vida inteira com você e mesmo assim me espanto com a sua sutileza…
Essa era Beth repreendendo a Donna.
— Deixa, Beth. A idiota aqui, é que devia ter senso, ao aceitar a proposta dessa maluca, só por que é minha amiga de infância.
— Mas rolou mesmo daquele jeito que está no roteiro original?
A Beth perguntou com a cara mais safada do mundo e eu odiei a Donna por ter mostrado a ela.
— Mentira dela, Cléo. Eu não mostrei os meus “iniciais” para ela e nem como ficou o roteiro final. Ela tá te sacaneando!
— Que trepada?
Melissa perguntou, sem saber o que estava rolando, pois na verdade, ninguém sabia que a Donna estava gravando um filme adaptado de minha “descoberta” com a Sophia.
— “Esquece”!
Falamos eu, Donna e Beth ao mesmo tempo. Melissa nos olhou intrigada, mas para meu alívio, a Sophia chegava à sala distraindo a atenção da filha.
— Mãe!
— Oi, filha.
— Vó.
— Vó.
— Tia Sofi.
As crianças foram de encontro a Sophia agarrando suas pernas. Sophia andava bem sensível estes últimos dias e agachou abraçando as três crianças ao mesmo tempo, mesmo com o barrigão na boca.
— Mmm… que gostoso! Dá beijo aqui.
Pediu minha esposa para as crianças. Para levantar, fui ajuda-la. Não que ela não conseguisse, ou algo assim, mas eu ficava espantada como alguém conseguia ter desenvoltura com uma barriga de oito meses.
Havia feito carne assada no forno, com batatas e saladas diversas. Nesta fase, não sabia o que Sophia suportava comer. Como disse, ela enjoava com cheiros fortes e não quis arriscar em nada. Fiquei feliz ao vê-la comer bem e interagir com todos, sem que algum desconforto a acometesse.
Passamos um dia ótimo com Mel e Lucy, Donna e Beth, Dago e Erick e Walda e Anabel. Esta última era a esposa de Walda. Ah! Com as crianças também. Bom, o fato é que as minhas preocupações estavam só começando.
****
— Não “tô” acreditando que você aceitou ir nessa reunião, no estado que está!
— Cléo, ninguém considera gravidez doença. Por que está tão contrariada? Não posso falar que não vou, por estar enjoando.
Cada vez me irritava mais. Será que Sophia não via a razão? Inspirei fundo, cerrando os olhos, tentando pensar em algo que realmente a fizesse ver, o motivo real de minha preocupação.
— Sophia, presta a atenção. Você está com 45 anos e grávida de oito meses… oito não, está partindo para a trigésima sexta semana. Está tendo uma gravidez boa, mas controlada. Você já deveria estar de licença, mas é teimosa e “workaholic”. Para mim, que se dane que o mercado está instável, que se dane que o barril de petróleo caiu de preço. Quero que os poços de petróleo do mundo todo explodam, mas não quero que vá a Oslo “porra” nenhuma, entendeu?!
Descontrolei.
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Lá estava, a caminho de Oslo, acompanhando Sophia, com um barrigão danado e apoiando a cabeça dela enquanto vomitava no minúsculo banheiro do jato. Pelo menos, tirei da cabeça dela ir num voo comercial. Brigamos feio e acabei falando com o Bartolomeu para alugar um jato com cabine para dormir. Ela fechou a cara, mas não me intimidei. Ela estava pensando o quê? Que ia para o outro lado do mundo, carregando nossa filha, e prestes a parir, sem mais nem menos?
Hospedamo-nos e, no dia seguinte, ela estava indo para a sede da Grasoil. Eu fui ao shopping, mas estava inquieta. Voltei ao hotel por volta das treze horas da tarde e quando chegou próximo às dezessete horas, andava de um lado para outro no quarto, quando a porta abriu e Sophia entrou com o rosto abatido.
— Pronto. Tudo resolvido e podemos voltar amanhã.
Ela falou resoluta. Abracei-a, pois estava agoniada sentindo a sua falta.
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No voo de volta, fiz Sophia ir para a cabine dormir, mas ela estava inquieta. Levantava a cada quinze minutos e andava pelo jato. Depois voltava, pois começava a sentir enjoos e ia direto para o banheiro. Eu perguntava o que estava havendo e ela dizia que: nada diferente, só enjoos. Faltava uma hora e vinte minutos para pousarmos no Galeão. O jato sobrevoava o norte do Espirito Santo, quando escutei um barulho vindo do pequeno banheiro. Levantei correndo da poltrona e quando tentei abrir a porta, não consegui.
— Sophia! O que está acontecendo, Sophia? Abra a porta!
Diante de meus gritos, Ramon e Walda vieram ao meu encontro.
— Aconteceu alguma coisa, dona Cléo?
Eu estava desesperada.
— A Sophia… não consigo abrir… ouvi um barulho… Abre, Ramon, por favor!
Ramon e Walda começaram a forçar a porta sanfonada e conseguiram abri-la parcialmente. Meu desespero aumentou, ao ver Sophia desacordada sobre o vaso. Suas pernas estavam encolhidas e travavam a abertura completa da porta. A custo e com jeito, Walda conseguiu enfiar sua mão pelo vão aberto e puxar suas pernas. Quando liberaram a porta, carregamos Sophia para a cama da cabine.
As lágrimas desciam pelo meu rosto, incontroláveis. Ela não respondia a meu chamado. Walda foi até a cabine do piloto para avisá-lo da emergência.
— O piloto disse que foi autorizado aumentar a velocidade para diminuir o tempo de voo. Devemos pousar em quarenta e cinco minutos.
— Quarenta e cinco minutos é muito!
— Calma, Cléo. Ela está com o pulso forte.
— Walda, pegue os travesseiros das poltronas e as cobertas também. – Ordenei.
Comecei a me lembrar dos procedimentos de primeiros socorros, dos treinamentos que fazia, constantemente, para entrar em áreas de risco nos lugares que trabalhei.
— Ramon, vá ao banheiro e molhe uma toalha com água fria.
Ela começou a voltar os sentidos e quando Walda e Ramon chegaram, coloquei os travesseiros e mantas embaixo de sua perna e a toalha molhada em sua testa.
— Sophia.
— Eu estou me sentindo mal, Cléo… Dor… estou com dor. — Sua voz saía fraca. — Enjoo…
— “Me ajudem” a virá-la de lado.
Viramos, Sophia, pois se ela vomitasse, não aspiraria o próprio vômito.
— Desde quando está com dor?
Eu falava baixo, acariciando seu rosto para não a incomodar.
— Senti uma pequena cólica de madrugada…
— … e por que não me falou?
— Eu queria voltar para casa.
— Deus, Sophia! — Falei em desespero. – Aguenta um pouquinho mais, já vamos chegar.
— A bolsa estourou ainda há pouco, quando estava no banheiro.
— Jesus! – Falei, engolindo a palavras entre uma inspiração profunda. — Fica calma, vai ficar tudo bem.
Eu falava para tranquiliza-la e afagava seu rosto, mas eu estava uma pilha e com o coração apertado. Não consegui nem ficar com raiva da inconsequência dela. Minha vontade era que o avião estivesse no solo, e nós, indo para o hospital. Era só o que pensava.
Seu rosto, eventualmente, se transformava em um hirto de dor. Eu fiquei a seu lado, segurando sua mão e beijando sua testa. Parecia que o tempo não passava.
Agora, só me lembro da luz e da sirene da ambulância que nos levou, do aeroporto para a clínica. Se me perguntarem, hoje, não lembro como chegamos e pousamos.