Diferentes?

Capítulo 44 – Sua música

Na parte da tarde, estava entretida com os relatórios vindos da Destor e analisando algumas mudanças no planejamento. Liguei para meu preposto na empresa e combinei de visitá-los na quinta-feira. Pegaria o avião bem cedo para não precisar passar mais que um dia afastada do Rio. Quando desliguei, minha secretária me chamou pelo ramal.

– Pode falar Renata.

– A senhora Sophia está na linha.

Eu sorri, pois pensava em ligar para ela desde a hora do almoço, mas não queria incomodá-la logo no primeiro dia. Possivelmente ela estaria atolada de trabalho.

– Alô.

– Boa tarde, senhorita Boaventura.

Meu coração disparou e eu abri um enorme sorriso. A voz e a frase juntamente com o tom que empregou, fez-me lembrar das primeiras semanas em que atendia pessoalmente à Grasoil em meu contrato.

– Boa tarde, senhora Vasto Arqueiro. Em que posso servi-la?

Sophia gargalhou do outro lado da linha e acho que entendi de imediato a razão. Ela sabia ser uma sacana mesmo e fiquei boba como meu rosto ruborizou, mesmo depois de já termos passado por essa fase.

– Éééé… Mmm… Acho que não caiu bem esse “servi-la”. O que quis perguntar era se posso ajudar em alguma coisa, sua engraçadinha?!

O riso de minha noiva foi diminuindo aos poucos enquanto falava.

– Na realidade, pode sim. Eu preciso de um relatório oficial da sua empresa, tanto nas mudanças que ocorreram no período em que o Gunda estava como diretor, os impactos no projeto e todo o planejamento anterior. Preciso de um relatório de atividades completo desde o início do contrato e…

– Fala logo o que está havendo, Sophia.

Apesar do tom amigável, porém profissional, percebi que a voz de Sophia, não estava exatamente tranquila. Eu sabia que relatórios de atividades detalhados demais, só podiam dizer uma coisa.

– Houve algum questionamento por parte da direção geral da Grasoil sobre o meu contrato?

A mudez momentânea de minha noiva me confirmou o que desconfiei. Olhei para o bina de meu telefone e vi que ela ligava de um celular, cujo número era desconhecido por mim.

– Vou te facilitar, Sophia. Eles abriram auditoria interna sobre este contrato e estão querendo saber se houve privilégio na contratação da Hermes por parte da Grasoil-Brasil. Sabe que tem a ver com o Gunda, não sabe?

– Não importa agora de quem partiu esta ação.

– Você não está na Grasoil, está?

– Na verdade ainda estou, mas estou na parte fechada do terraço da empresa.  Vou pegar o helicóptero para uma reunião na unidade de Angra.

– E que celular é esse?

– Um celular pré-pago. Acabei de comprar…

Inspirei forte e expirei logo em seguida, deixando meu corpo se afundar em minha cadeira.

– Bem, eu vou fazer esse dossiê, mas acredito que levarei pelo menos dois dias para entregar tudo que você quer.

– Tinha previsto este tempo mesmo, mas se puder adiantar, eu preciso o mais rápido possível.

– Você chegará tarde, hoje?

– Acredito que por volta das oito ou nove da noite. A reunião será rápida, e a volta leva 45 minutos de helicóptero, mas tem o trânsito da ponte Rio-Niterói.

– A gente vai ter que rever isso também. Apesar de ter gostado de lá, fica pesado para você, que tem estes horários.

– É. Depois a gente conversa sobre isso, já vou embarcar.

– Ok. Eu te amo.

Percebi um leve suspiro do outro lado.

– Também te amo.

Comecei a escutar o barulho das hélices, como se Sophia tivesse aberto alguma porta e a ligação encerrou. Coloquei o fone no gancho e fiquei olhando para fora de minha janela. Fiquei algum tempo processando as informações, perdida na vista da Baia de Guanabara e da Ilha Fiscal. Eu simplesmente não podia admitir que este cretino ferrasse a Sophia por conta desse contrato.

Peguei o telefone, disquei um número e escutei os toques se sucedendo até que ouvi a voz do outro lado.

– Alô.

– Magda, eu preciso de você antes que encerre seu contrato com a Hermes. Você pode me atender nesta última consultoria?

– Claro que posso, Cléo! Mas o Bartolomeu me disse que eu continuaria a prestar serviço para a Hermes.

– Isso é outra história que discutiremos mais adiante. Você pode dar um pulinho aqui, ainda hoje?

– Pode ser daqui à uma hora?

– Pode sim, Magda.

Desliguei e logo em seguida chamei minha secretária pelo ramal.

– Renata, vem aqui na minha sala.

……………

Cheguei em casa às dez da noite e a mesa de jantar estava posta. Sophia estava sentada com Mel e Lucy, tomando vinho na varanda. Ia colocar minha bolsa em cima do aparador da sala como sempre fiz e parei um minuto. Olhei a bolsa do laptop de Sophia pousada lá também e comecei a pensar que a gente realmente adquire hábitos da outra pessoa quando assumimos uma relação. No início, a primeira coisa que Sophia fazia quando chegava da rua, era levar a bolsa dela para o escritório, mas agora, era comum vê-la colocando a bolsa em cima do aparador. Sorri a esse ato tão simples, mas para mim, tão importante. Deixei minha bolsa e me dirigi à varanda.

– Boa noite, gente.

Sophia estava sentada e abaixei para dar um selinho nela. Depois sentei no braço da cadeira onde ela estava.

– Como é que é? Não mereço uma taça de vinho também, não?

Falei displicentemente. Já havia uma taça em cima da mesa da varanda e Sophia pegou a garrafa para derramar o líquido, me entregando em seguida. Ela passou o braço pela minha cintura apoiando sua cabeça em mim.

– Não precisava ficar até tarde, Cléo. Também não é tão desesperador assim…

– Sabe o que acho? Estou começando a não gostar tanto assim, desses seguranças. Você poderia ter me ligado para saber o que eu estava fazendo, em vez de investigar…

Franzi meu cenho e olhei-a de cima, para ver seu rosto e o que diria sobre a minha provocação. Ela me olhou, tentando segurar o riso antes de responder.

– Pois saiba que, sou uma mulher muito respeitadora dos compromissos alheios. Nunca a perturbaria na sua “nobre” atividade de trabalho. O dever ocupacional é sagrado para mim!

– Ai!

Exclamei, empurrando-a com meu corpo.

– “Essa”, foi horrorosa, Sophia! Você que me deu esse “grande dever ocupacional sagrado”!

Falei rindo, mas meu sorriso minguou, pois tinha que contar a ela a minha resolução. Todos riam, inclusive ela, porém Sophia viu meu desconforto estampado. Eu era totalmente transparente em relação a ela. Sophia franziu o cenho me olhando diretamente.

– Você quer discutir alguma coisa comigo sobre o trabalho, Cléo? Podemos ir para o escritório.

– Para, mãe! Deixa a Cléo chegar, coitada. Desse jeito, vai minar seu casamento, antes dele começar.

Olhei para Mel, carinhosamente. Achei legal ela me defender, mas ela não tinha noção de que a discussão ia além de simples questões de trabalho.

Inspirei fundo e tomei um gole do vinho. Voltei meu olhar para Mel.

– Obrigada, Mel. Só que, sua mãe está com a razão. O que a gente tem que falar, não deve passar muito de hoje. Mas prefiro falar aqui na varanda tomando um vinho, do que me trancar no escritório.

Levantei minha taça fazendo menção a um brinde. Senti o corpo de Sophia se tensionar. Ela me olhou diretamente, tentando me decifrar.

– Não me olha assim.

Falei apontando meu dedo, em que segurava a taça, forçando uma descontração para tentar relaxá-la e me relaxar.

– Já tenho a maioria do material para entregar a você. Amanhã devo reunir o restante e quando houver a auditoria, depois das análises, eu quebrarei o contrato.

– O que?!

Sophia fez menção em se levantar e eu segurei seu ombro suavemente, num pedido silente, para que voltasse a sentar.

– Sophia, me escute apenas um instante e depois você pode contestar, está bem?

Falei em aparente tranquilidade, mas na verdade, era mais uma constatação e aceitação de fatos, por minha parte. Ela calou-se, mas em seu rosto, percebia que estava contrariada. Levantei-me do braço da cadeira e me sentei na cadeira, em frente a ela.

– Apesar de termos que provar que a contratação não foi privilegiada, porque na época eu não te conhecia, sei que vão colocar à prova a relação que temos hoje. Não há como contestar isso, Sophia. Nada do que você possa fazer ou falar, vai tirar o fato de que vamos nos casar e todos sabem. Diante disso, não há argumentos que possam suprir o que é real, de que você é a diretora e eu presto serviços para Grasoil e que poderei ter informações relevantes da empresa, pela relação que temos.

– Sim, mas poderíamos deixar a sede romper o contrato. Você não sairia sem nada!

– E você sairia maculada. Você não quer aceitar, por conta de ter sido o cretino do Gunda a abrir a sindicância. Quer achar uma saída, só que sabemos que seria estratégico que eu o fizesse. Pense nisso, Sophia. E vou repetir uma coisa que me falou lá atrás, quando você pediu demissão. Não vou cair na pobreza. Tenho dois contratos e possivelmente uma retirada agora, elevaria a minha empresa em conceito dentro do mercado, pela atitude honesta em relação ao caso.

Sophia ainda estava com o semblante pesado, mas ela sabia que eu tinha razão. Ela inspirou fundo e conteve a raiva que a consumia, não pelo que falei, mas pela situação toda.

– Está bem. Eu concordo com tudo que disse, então, vamos parar de brincar de “candy crush”.

– O que?

Ela balançou fortemente a cabeça.

– Esquece. É um joguinho bobo que tenho no meu celular. O fato é que, ele quer me atingir de qualquer forma e eu vou ter que pará-lo agora. Se não for através de você, ele tentará me derrubar em outra época. Você falou com a Magda ou o Bartolomeu?

– Com a Magda.

– Amanhã, eu falo diretamente com o Bartolomeu e vamos criar uma estratégia para que você saia sem respingos e por cima. Só sinto que se romper, não terá indenização pelo contrato.

– Mas felizmente, não terei que pagar também. Está de bom tamanho.

………………………………………..

Dois meses depois…

– Você nunca deixou essa ideia de lado, não é Sophia?

– Não.

– Cléo, a Sophia tem razão quanto…

– Não, Bartolomeu! Ela me prometeu!

– Eu prometi que não tocaria mais no assunto e não, que eu não o faria. Eu quero casar com você em comunhão total de bens e a documentação está aí.

Sophia, Bartolomeu e Magda estavam sentados à minha frente, em minha sala na Hermes. Eu estranhei quando eles disseram que precisavam falar comigo e fiquei imaginando, que o rompimento do meu contrato com a Grasoil, tinha dado alguma “zica”. E qual não foi a minha surpresa quando o Bartô me estendeu o tal “acordo pré-nupcial”!

Inspirei fundo, pois neste momento, já não importava como iríamos casar. Aliás, não dava nem mais tempo para isso e Sophia sabia. Ô vontade de jogá-la pela janela!

– Dê-me isto aqui. Deixe-me ler.

– Eu já li, Cléo. Está tudo certo…

Nem deixei Magda terminar.

– E você não fala nada. Hoje você está do outro lado da mesa, Magda, e não a meu lado.

Magda levantou as mãos em sinal de rendição e eu via pela minha visão periférica, um pequeno sorriso, algo muito sutil, bordar os lábios de minha noiva. A raiva maior era saber que não tinha mais jeito. A essa altura do campeonato eu teria que assinar ou cancelar tudo, pois provavelmente os papéis da nossa certidão de casamento já estavam prontos e agendados.

…………………………..

Quatro dias depois…

– Cléo! Para, Cléo!

– Que foi, Donna?!!

Eu gritei.

– “Cê” tá insuportável, valeu! Posso me retirar do cargo de madrinha?

– Não! Porque Sophia tem a Verônica como madrinha e ela não via a mulher desde os 17 anos, e, reconheceu a importância da dita cuja. Aturei você desde sempre, então me atura, valeu?!

Donna revirou os olhos.

– Então para de falar que o cabelo saiu do lugar, a maquiagem não ficou legal, e, para de perguntar também se o vestido está bonito! Ô coisa, chata! A gente tá quase chegando e você tá careca de transar com a mulher! Se teu cabelo saiu do lugar, ela já deve conhecer como é, ou por acaso ela não desgrenha toda quando “trepa” com você?

– A gente não “trepa”, Donna! Quanta grosseria!

– Ah, tá. “Faz amor”. Que coisa mais lésbica, isso!

– Então, tá. Você “trepa” com a Beth, só que eu “faço amor” com a Sophia, tá bem?!

Falei com convicção e irritada.

– Eu não “trepo” com a Beth. Eu “faço amor”, pois tenho o direito de lésbica desde a adolescência!

Donna falou a frase que sempre usava, para justificar algo que fazia, mas sacaneava a mim. Queria esganar a Donna, por ficar me irritando, antes mesmo de chegar ao altar! Quando o iate atracou, eu tremia dos pés a cabeça. Queria muito casar com a Sophia, mas estava paralisada no lugar. Comecei a ouvir uns sons que Donna fazia com a boca e a olhei.

– O que você está fazendo, Donna?

Olhei-a desesperada.

– Estou meditando e proferindo um mantra, para que o cosmos me dê paciência. Afinal, tenho que tirar você daqui, sem te empurrar e amassar seu vestido, pois sou sua madrinha, não é mesmo?!

Olhei para Donna com os olhos marejados. Donna retribuiu o olhar com ternura, sentou a meu lado e segurou minha mão.

– Cléo, você sabe que eu te amo. Você é minha irmãzinha do coração, então, preste bem atenção. Hoje é um dia “super feliz” para você… aliás é um dia, que é feliz para muitas mulheres que chegam onde você chegou. Ter o amor que você encontrou, não é banal. Só não digo que é como acertar na loteria, pois eu, infelizmente tenho fé no destino e acredito que ele muitas vezes, mete o dedo no caminho. O destino colocou o dedinho na sua testa e na de Sophia, então, vai e só me prometa que vai fazer de tudo para ser feliz!

Ela não poderia ter dado uma “bola fora” maior. Agora, eu estava emocionada com as suas palavras e as lágrimas teimavam em descer. Ia borrar toda a minha maquiagem! Como eu amava essa garota! Eu não poderia ter melhor amiga e já falei isso inúmeras vezes, mas não canso de falar e vou continuar falando. Deixei que uma lágrima descesse sem me importar, dei um beijo em sua bochecha e levantei do sofá. Agora a missão era subir a escada até o deck do iate e andar pela rampa até o atracadouro, onde começava minha caminhada que levava até o altar.

Donna segurou minha mão e eu me virei de frente para ela, antes de subir.

– Você está linda, Cléo. Seu vestido é lindo e seu amor é lindo!

Ela me deu um beijo no rosto e me ajudou a subir ao deck.

Quando saí pela rampa do iate, meu pai me esperava no final da rampa e me estendeu o braço, para que eu o enlaçasse.

Podem falar que é brega, batido e convencional, mas com ela, eu quis muito tudo isso e desconfio que meus pais também, pois meu pai estava com os olhos cheios de água!

– Filha, você está linda!

Ele falou baixinho em meus ouvidos e de repente, comecei a ouvir a música “Your Song” ser tocada por uma orquestra com piano e cordas, acompanhada por uma voz suave feminina. Os primeiros acordes eram de piano. Vocês acham que eu sei qualquer coisa sobre meu casamento? Estão enganadas. Eu e Sophia tivemos embates terríveis sobre isso. Ela queria que eu não participasse de nada, a não ser o meu vestido, pois ela queria fazer uma grande surpresa para mim e eu protestava veemente. O tempo passava e ela só comunicava; “Aluguei a ilha”, “A florista vai entrar em contato com você para que escolha as flores”. “Teremos que falar com o designer gráfico, para que ele possa elaborar o convite, de acordo com o que falarmos para ele”. E assim se sucedeu. De meu casamento, eu só sei mesmo, a respeito de meu próprio vestido. Desta escolha ela não participou e muito menos viu. Eu sabia também que o iate chegaria diretamente no atracadouro, onde meu pai me pegaria para me conduzir ao altar.

Olhei para frente e tinha um caminho feito de um tablado branco, coberto de pétalas, conduzindo até o altar. Ele se tornava duplo quando se aproximava do altar. Quando percorri com meus olhos através do outro caminho, vi que ele começava em outro atracadouro. Lá estava ela, desembarcando de outro iate, aportado bem atrás do meu e pasmem, quem a buscava era seu pai. Eu pasmei.

Outra coisa que me deixou espantada e ao mesmo tempo, me fez rir, era sua vestimenta. Ela trajava um lindo fraque, porém cinturado e moldado a seu corpo no melhor estilo “Marlene Dietrich”! Lógico que a cor era o branco e sem a cartola, diferente da Marlene. Tudo combinado com sandálias prata de salto 20. A minha linda esposa tinha um sério problema com humor e eu amava isso. Seu humor sempre foi ácido, mas elegante. Lembrei na hora, a nossa conversa sobre quem deveria vestir vestido, mas nunca realmente me passou pela cabeça, que ela não usasse um vestido no nosso casamento. Acredito que também não passara na dela, até ela começar a idealizá-lo. Ela quis mexer comigo, mas sinceramente, não me importei, pois mesmo no fraque, ela estava maravilhosa e elegante. A maquiagem era suave, mas o tom do batom sobressaía. Era um vinho escuro, que deixavam seus lábios sensuais, mas não de uma forma erótica, era algo encantadoramente graciosa. Seus cabelos estavam presos em um arranjo e pequenas mechas caiam displicentes pelas laterais de seu rosto, emoldurando-o. O sol do fim de tarde iluminava-os e suaves brilhos reluziam deles. Ela trazia em sua mão um buquê de flores silvestres simples, apenas amarradas com um cordão delgado na cor prata. Sorri, pois apesar de não termos nos falado sobre isso, meu buquê também era de flores silvestres naturais. A única diferença era que, a amarração do meu havia sido feita com seda branca. Também não tinha véu em meus cabelos, e, o penteado era preso com uma simples fita de seda branca, na parte de trás.

Ela olhou em minha direção e sorriu suavemente. A moça ainda cantava a música e nossos pais começaram a nos conduzir através de nossos caminhos, que, em dado momento, ladeamos, até chegarmos ao altar. As pessoas estavam sentadas em cadeiras enfileiradas, nas laterais das alamedas de pétalas, e todos se levantaram para nos ver. As cadeiras eram em madeira escura, design reto, e, estofada em couro branco. As flores que ornavam eram rosas vermelhas, brancas, rosas e vinho, combinado a flores silvestres e davam os tons coloridos ao local. O altar ficava em uma ligeira elevação, onde o sol do ocaso encimava a moldura do altar. Tecidos brancos e prata, leves e transparentes dançavam ao vento, presos à moldura do altar, para que a luz do sol não incidisse diretamente sobre nós. Este arranjo permitia que pequenos raios recaíssem sobre nós, nos abençoando. Quando chegamos ao altar, a juíza de paz nos esperava com um grande sorriso e nossos pais nos entregaram uma à outra.

Eu não ouvi a maior parte do que a juíza falou e as lágrimas não deixaram de rolar em meu rosto desde a descida do cais, até a última palavra pronunciada pela juíza. Só consegui escutar a juíza pedindo as alianças para as nossas madrinhas e a engraçadinha da minha amiga começou a procurá-la na sua bolsa, fingindo que tinha perdido. Eu rosnei para ela.

– Donna, eu não acredito que você…

Ela sorriu e retirou a caixa da bolsa, me tranquilizando e fazendo com que todos, inclusive minha esposa, rissem. Donna abriu a caixinha e se prostrou a meu lado, enquanto Verônica fazia o mesmo ao lado de Sophia. A juíza de paz continuou a cerimônia.

– Sophia Vasto Arqueiro, aceita Cléo Boaventura para amá-la e honrá-la em todos os momentos, sejam eles fáceis ou não, ao longo de vossa convivência?

Sophia pegou a aliança e colocou em meu dedo, proferindo um sonoro sim e me presenteando com um sorriso aberto e radiante.

– Cléo Boaventura, aceita Sophia Vasto Arqueiro para amá-la e honrá-la em todos os momentos, sejam eles fáceis ou não, ao longo de vossa convivência?

O meu sim, foi permeado de soluços, pois recomecei a chorar, mas consegui colocar a aliança no dedo de Sophia.

– Declaro-as casadas e que a partir de hoje, sejam chamadas pelos nomes de Sophia Vasto Arqueiro Boaventura e Cléo Vasto Arqueiro Boaventura.

Ficamos paradas, olhando uma para a outra sorrindo, como duas bobas. Depois de um tempo, ouvimos uma voz masculina nos tirando da paralisia.

– Como é que é? Não vai rolar o beijo, não?

Era o Erick que havia falado. Ele estava ao lado de Donna, como meu padrinho, enquanto Dago permanecia rindo ao lado de Verônica, como padrinho de Sophia. Vamos combinar que eu estava constrangida neste momento, pois eu poderia casar, mas nunca me imaginei beijando uma mulher, na frente de meus pais. Quando Sophia segurou meu rosto, com suas suaves mãos e nossos lábios se uniram, eu me perdi como sempre acontecia quando a beijava. Não me importei mais.

– Ei, também não precisa tanto. É simbólico o beijo, sabiam?

Essa era a minha amiga. Eles estavam a fim de fazer bagunça mesmo, e, fazer todos rirem.

Separamo-nos e Sophia segurou minha mão para que voltássemos pelo caminho, sendo que ao final, havia outro caminho de pétalas que nos conduziria até a entrada do salão da casa da ilha. As pessoas estavam imbuídas no sentimento de tradição, pois começaram a jogar arroz em nós. Eu sorria e comecei a sussurrar para minha noiva.

– Sophia…

– Mmm…

– Eu sei que é tradicional, mas não acho que consigamos fazer um filhinho uma na outra, mesmo eu sendo fértil e você também. Para que o arroz?

– Coisas da sua amiga Donna. Tome apenas como símbolo de fertilidade. Quem sabe um dia…

– Ah, tá!

Chegamos ao salão da casa. Ele era devassado e cumprimentávamos todos na entrada principal. De repente na fila, vislumbrei nada mais nada menos, que a minha “sogrinha”! Continuei sorrindo e cumprimentando a todos e falei baixo, disfarçadamente entre os sorrisos.

— Como conseguiu que sua mãe e seu pai viessem, e, ele ainda a conduzisse?

— Uma pequena conversa…

Continuávamos falando baixo e entre sorrisos, cumprimentando a todos.

— Você chantageou com alguma coisa?

— Ora Cléo, que juízo você faz de mim? Só falei que não os veria mais, tiraria o nome da família e rejeitaria ser herdeira deles. Minha mãe odeia meus primos…

Ela falava com um sorriso cínico.

— Nossa! Você está me assustando… Sabe que não engoli a história do escândalo do Gunda na mídia, não é?

— Como não? Por acaso não ocorreu o mesmo conosco? — “obrigada por ter vindo”. — Sophia falou sorrindo para um gerente de área da Grasoil que nos cumprimentava.

A fila continuava andando e as pessoas passando por nós.

— Sophia, nós estávamos num local público e fomos flagradas. Como alguém flagra uma pessoa, dentro do quarto de um hotel e grava essa pessoa batendo em uma prostituta?

— Não me pergunte, meu amor. Não sei como se faz isso, mas bater em alguém, sendo prostituta ou não, é algo muito ruim, não é mesmo? E depois, parece que foi a própria prostituta que gravou.

— Você sabia que ele saía com prostitutas e gostava de bater nelas?

— Não… Quer dizer, não oficialmente. Mas soube, não oficialmente também, que nosso flagra, não foi tão flagra assim…

— O que?!

Falei mais alto do que gostaria. Cumprimentei o casal que estava a nossa frente, que deveria ser da Grasoil também.

— O cretino já me vigiava há algum tempo. Teve o que merecia…

Parei momentaneamente para olhá-la, antes do próximo convidado.

— Será que vou ter que começar a ter medo de você?

Falei sorrindo e ela também parou para me olhar.

— Claro que não. Você sabe que meu coração está inteiro em suas mãos!

 Eu abri um sorriso enorme e olhei o próximo convidado. Parece que a mãe de Sophia escutou a declaração dela, pois apenas nos olhou e soltou um “Felicidades”, entre os dentes e passou por  nós batido.

— Eu não o quero em minhas mãos, mas pode deixar que eu já o coloquei em meu coração.

Foi a vez dela parar para me olhar e sorrir. A gente estava “demais” nestas declarações! Que se dane a “melosidade” toda. Esse dia era nosso!

Walda se aproximou ao lado de uma mulher muito bonita. As duas estavam bem alinhadas. Lógico que Walda tinha ido de terno, mas a menina que a acompanhava estava em um lindo vestido creme. Hoje ela era nossa convidada e não nossa segurança. Sophia fez questão, pois depois do dia do almoço com a sua família, Sophia passou a travar uma amizade com a segurança e conversava muito com ela. Ela nos cumprimentou e apresentou sua esposa para nós. Moça muito simpática.

………..

Ao final da recepção, fomos para o atracadouro. Iríamos juntas embora, em um único Iate. Avisamos que jogaríamos nossos buques do atracadouro. Nunca pensei que as mulheres gostassem tanto deste ritual, pois vimos muitas se amontoando para disputar um lugar melhor.

— Vamos lá, Lucy! Deixa de ser chata!

Essa foi a voz de Mel.

— Se conforme, Lucy. Por acaso, não estou aqui arrastada pela Donna?

E essa foi a voz de Beth.

Eu e Sophia concordamos em jogar uma por vez. Primeiro fui eu, mas confesso que eu roubei um pouquinho na hora de jogar, pois sabia onde Donna estava e queria que ela pegasse, só que quando me virei…

A cara da Beth com o buquê na mão estava muito engraçada. Mais tarde Donna me contou que não tinha nem como a Beth não pegar, foi quase reflexo, pois o buquê foi direto para o rosto dela.

Depois foi Sophia a jogar e quando ela se virou, a cara de sem graça era a dela, pois quem pegou, foi nada menos que a Catarina. Aquela mesma gente, a pequena Scarlett Johansson.  Ela pulava e a ruiva que havia visto com ela no restaurante, pulava junto. Eu ri, pois me lembrei da Donna falando, que as lésbicas se juntavam no logo no segundo encontro.

Bom, não preciso dizer a vocês que nossa lua-de-mel foi a coisa mais maravilhosa do mundo, não é mesmo? Só para constar, não fizemos nenhuma viagem maravilhosa para as ilhas gregas, Paris ou Milão. Passamos dois dias no iate pelas águas de Angra, só esperando que a ilha fosse limpa e a casa liberada, para que passássemos o resto da semana. Não preciso falar para vocês o quanto foi delicioso. Afinal, vocês acompanharam ao longo de nossa história, muitas de nossas transas. Não preciso descrever agora, toda nossa lua-de-mel, não é mesmo?

Tá. Entendo que eu descrevi muito a nossa intimidade, mas era preciso, pois a cada carinho, cada gesto, cada situação de intimidade ou não, revelava para nós mesmas, a nossa recente identidade. Era algo encantadoramente novo! Descobertas nunca imaginadas. Desvendávamos a cada passo, uma vivência permeada de sabores e cores. Compreendi que toda a nossa fome, não era só o corpo ou o amor que nos conduzia, era a vontade de nos sentirmos vivas e presentes nestes sentimentos que expunham as nossas almas.

A grande verdade é, que me motivei a contar nossa história para vocês, por olhar para trás e ficar pensando; será que nós éramos pessoas diferentes do que qualquer outra pessoa que se descobre homossexual? Eu não consegui definir, mesmo depois de contar a vocês. Se por acaso, somos diferentes de qualquer outra pessoa, não sabemos, mas com toda certeza, hoje somos diferentes do que um dia fomos.



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