Sophia e eu nos despedimos também e caminhamos lado a lado pelo corredor até o elevador.
— O dia foi agradável, gostei de vê-los bem.
— É. Eles estão um pouco revoltados ainda, mas se recuperando.
— Aconselhei Dagoberto levar Erick a um psicólogo. Isto que ocorreu com eles, não é uma coisa fácil de superar e deixa marcas.
— Fez bem, Sophia, mas acredito que os dois devessem fazer. Não deve ser fácil para o Dago também.
Entramos no elevador. Nesse momento fiquei desconfortável. Sophia tinha parado de falar e olhava para baixo.
— Eu não queria que você ficasse com raiva de mim.
Olhei para ela sem saber o que pensar, sem saber o que dizer. Ela não queria que eu tivesse raiva dela, mas continuava me provocando todas as vezes que tinha oportunidade.
— Eu não sei, Sophia… Estou mais magoada que com raiva, se você quer saber.
Ela me olhou com certo ar de tristeza. Ficou calada durante algum tempo enquanto eu olhava para ela esperando que desse alguma desculpa ou mesmo respondesse algo arrogante para me dispensar, porém ela não o fez. Continuou me olhando perdida em meu próprio olhar.
O elevador chegou e ela deixou espaço para que eu saísse na frente. Senti o peso de seus olhos sobre mim e me virei para saber porque ela ainda me observava. Elevei minhas sobrancelhas como um questionamento e ela abriu um sorriso lindo, diga-se de passagem.
— Você tem uma forma de caminhar interessante.
Não acreditei que, depois de tudo, ela ainda estava me cantando! Só não fiquei mais indignada porque meu ego inflou como um balão. Mulher é bicho esquisito, como fala a música da Rita Lee! Não pronunciei nenhuma palavra e fui caminhando para fora do edifício toda poderosa, deixando que me olhasse. Não sabia como me portar para provocar uma mulher, então, apenas fiz como sempre fiz, ou seja, deixei que me olhasse bem, pois eu estava me exibindo mesmo!
Fiz sinal para que um táxi parasse. Ela caminhou até onde estava e assim que o táxi parou, abri a porta e fui entrando. Ela entrou logo depois de mim e se acomodou confortavelmente ao meu lado… tão perto… Eu fiquei quente na mesma hora. Jesus! Que é que é isso? Foi só ela encostar que acendi inteira. Sua perna, com o sacolejo do carro, roçava levemente na minha. Eu estava de vestido e a barra começou a subir. Ela olhou para as minhas pernas de soslaio e comecei a me ajeitar, logo em seguida. Eu podia estar doida para provocá-la, eu podia estar com tesão dos infernos, mas não daria mole. Ela que dispensou, ela que corresse atrás.
Ela olhou para fora da janela e suspirou com o olhar vago. Eu me mantinha na minha posição, quase estática até que ela me perguntou se poderia pegar as suas coisas hoje na minha casa. Ai, ai, ai! Não “ia prestar”.
— Pode, se quiser, mas você falou que não precisava delas.
Acho que nunca me descrevi para vocês corretamente, não é? Pois bem, vou me descrever para que possam entender o que acontecerá daqui por diante. Tenho os cabelos castanhos até a altura da minha escápula num corte em “V”. Não são completamente lisos, mantêm um ondulado do meio para baixo fazendo-me cortá-lo em camadas para realçar. Minha pele é ligeiramente amorenada do sol, mais pelo dia a dia do que por ir à praia. Não posso falar ao certo do meu corpo, pois estou sempre achando que estou acima do peso, todo mundo fala que não, que estou gostosa, mas isso para mim é o mesmo que dizer “você está gordinha”. Sou alta, como já havia falado anteriormente. Gosto de dizer que tenho 1,80m, mas na realidade tenho é 1,78 de altura, porém o que chama atenção em mim, realmente, são meus olhos. Sempre agradeci meus pais por essa benção, pois nunca conheci ninguém com olhos da cor do meu, embora sempre tivesse alguém que falasse que conhecia, eu mesma nunca vi. Meus olhos são de cor cinza. As pessoas, normalmente, tem olhos azuis que por vezes ficam cinza, mas eu, eu tenho os olhos cinzas mesmo! Por vezes, raras vezes, dependendo da iluminação, ficam azuis.
Bem, voltando a minha conversa com a Sophia, ela havia me perguntado se poderia pegar suas coisas lá em casa e eu disse que sim, mas com aquela ironizada. Ela retornou o olhar para o mar, pois estávamos passando pela orla. Seu semblante estava vago, sem muita expressão e eu não conseguia definir o que passava pela sua cabeça naquele exato momento. O tempo havia fechado e o mar começava a se agitar. A coloração do dia e do mar mudou para um cinza triste.
— Engraçado, antes quando o tempo ficava chuvoso sempre me deixava para baixo, hoje quando olho o mar de minha janela, quando está com essa coloração, meu coração se agita. Às vezes fica apertado, às vezes feliz. Depende muito de como foi a nossa semana… a nossa convivência…
Ela queria me enlouquecer mesmo. Percebi a clara alusão aos meus olhos. O que vocês fariam no meu lugar, einh?
— Sophia…
— Eu sei. Não é culpa sua, é minha. Tudo que eu sou, eu conquistei, mas não é por esse motivo que, tudo que tenho, seja bom. Algumas coisas também foram impostas de certa forma. Eu era muito jovem e acabei cedendo, aceitando.
“Epa! Essa parte eu não estou entendendo”…
— Cassio é um bom pai. Acho que foi meio vítima disso tudo como eu. Na realidade, eu nunca fui uma boa esposa, assim como ele nunca foi um bom marido. Sempre nos agredimos mutuamente em silêncio. Uma agressão cortês e dissimulada. Ele, querendo se fazer ver como o homem competente, bem sucedido em sua área, meio que para jogar na minha cara que nunca dependeu de mim e de meu dinheiro. Eu, por minha vez, nunca me importei realmente com o que ele era ou fazia. Eu tinha minha própria vida para trilhar e conquistar. Se eu o amei? Acho que não e também acho que ele nunca me amou. Como disse, somos corteses, elegantes um com o outro, assim como numa empresa onde você é cortês com seu cliente. A única coisa que amamos e temos em comum é Melissa.
“Para tudo! Por que ela está me falando isso? Alguém pode me dizer”?
— Você tem razão para não me deixar penetrar novamente em sua vida, Cléo. Eu sou uma doença devastadora. Sou fria, sou racional demais e tenho coisas na minha vida profissional que ainda pretendo conquistar. É o que faz sentido para mim. Só que há pouco tempo, depois que te conheci, adquiri o péssimo hábito de achar que posso mudar nem que seja um pouco. Mas, lá no fundo, eu sei que não consigo, pois eu fui dessa forma minha vida inteira.
Às vezes, a gente quer uma grande declaração de amor, mas naquele momento, eu vi que Sophia, do seu modo, estava me dizendo que eu abalei as estruturas da sua casa, do seu modo de vida e da sua forma de ver as coisas. Alcancei a sua mão que estava pousada na coxa e segurei-a. Ela me olhou com olhar baixo.
— Vamos passar lá em casa para pegar suas coisas.
Ela apenas esboçou um sorriso e, confortada, segurou também minha mão.
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Entramos na minha casa e larguei a bolsa em cima do sofá. Sophia estava suspeitosamente calada e depois daquele escancarar de portas sobre a sua vida, tinha emudecido ensimesmada.
— Vou pegar as suas coisas no quarto. Dá uma sentadinha aí.
Falei apontando o sofá e tentando transparecer relaxamento, o que não era verdade. Estava nervosa com a postura rígida dela e com tudo que havia escutado. Não sabia o que pensar e nem o que dizer. Ela me paralisou. Por tudo que ela falou, entendi apenas que eu não era uma pessoa qualquer na sua vida, mas vi também que não seria fácil ela ver a vida de outra forma ou se libertar das amarras que ela mesma se impôs. Mesmo dentro desta fragilidade que demonstrara, dava para ver que não queria dar o braço a torcer e admitir que o muro que levantou em torno de si, começou a desmoronar a partir do momento que permitiu sentir algo por alguém.
“Culpa.”
Foi o que me veio à mente a partir das atitudes dela.
“Mas culpa pelo quê”?
Voltei para a sala com sua valise. Ela não escutou eu chegar e estava de costas vendo um painel de fotos em preto e branco, que eu tinha feito em uma pequena parede que dividia a minha sala para outro ambiente com tv. Aquele painel mostrava praticamente a minha vida até dois anos atrás.
Estava anoitecendo e sua silhueta marcada pela luz difusa do ambiente me fascinava.
— Gostou?
Ela apenas olhou por sobre seus ombros com os olhos vivos e sorrindo.
— Essa garotinha cheia de cachinhos é você?
— Uhum.
Larguei a valise e me aproximei.
— Foi uma criança linda.
Apenas sorri e ela olhou outra foto em que eu estava olhando a enseada da mureta da Urca.
— Quando você tirou essa? – Ela apontou.
— Tem uns quatro anos. Sempre gostei de admirar a enseada ali da mureta. Nesse dia a Donna estava comigo e ela ama tirar fotos. Pegou-me desprevenida.
Ela continuava a olhar e passou levemente os dedos por cima da foto contornando meu rosto. Enterneceu-me o gesto e deixei que ela prosseguisse ali olhando. Queria que ela relaxasse e que não quisesse ir de imediato embora. Gostaria que ficasse e que continuasse a se abrir, talvez assim eu pudesse entender esse enigma que era ela.
— Conhece Donna há muito tempo?
— Sim, desde criança.
Apontei uma foto em que Donna estava comigo abraçada no muro da casa da minha avó. Estávamos de uniforme escolar, aquele com saias de preguinhas. Nossa escola era tradicional católica e o uniforme era “da era” como costumávamos falar.
— Não tem nenhuma foto do Marcos?
— Ierrrrh! Por que eu faria uma tortura dessas comigo?
Ela gargalhou sonoramente.
— Ele não era o seu amor? – Falou com jeito irônico.
— Você adora me sacanear, não é mesmo? Não tem foto com ele e não tem com nenhum dos meus ex.
— Nunca teve segurança ou nunca teve vontade de colocar?
— Os dois.
— Mmm. Sabe que naquele dia que te liguei para convocá-la para a reunião e você atendeu descascando achando que fosse ele, despertou minha curiosidade sobre você de tal forma, que na reunião fiquei imaginando como você seria na cama. Quase não ouvi sua explanação. Foi difícil não rir com meus próprios pensamentos.
— O que? Você já estava interessada em mim? – Perguntei espantada.
— Nãao. – Falou arrastado e rindo. – quer dizer, hoje não sei… Apenas me passou pela cabeça que possivelmente você deveria ser boa de cama. O cara estava correndo atrás de você, oras! Que homem se sujeita a se humilhar para voltar para a namorada?
— Mmm. Sei… E o que você acha agora que sabe como sou na cama?
A nossa conversa estava cambiando para um lado perigoso. Balancei a cabeça para dissipar o clima.
— Esquece. Deixa para lá.
Ela sorriu e pegou minha mão puxando-me para o sofá.
— Vamos sentar um pouco.
— Certo. Quer algo para beber?
— Não. Acho que já bebi demais por hoje. Amanhã tenho uma reunião logo cedo e não quero sentir como se minha cabeça estivesse embaixo de uma pedra.
— Tudo bem, mas nenhum suco?
— Uma coca zero, tem?
— Tem sim, espere um pouco.
Voltei com a bandeja e pousei sobre a mesa de centro sentando-me ao seu lado. Ela olhou-me novamente com intensidade.
— O que você tem para me deixar assim?
Ela fez a pergunta mais para si mesma do que para mim.
— Sophia, com sinceridade, acho que a gente deve parar por aqui. Gosto de você. Não só por motivos sexuais ou afetivos íntimos. Somos adultas e sabemos que o tesão é só um dos ingredientes. — “Um grande ingrediente, por sinal” – pensei. — O problema é que admiro você e tenho nutrido muito mais. Não dá para me iludir novamente.
Olhou-me com fogo… mais que isso. Tinha um certo ar de resignação… compreensão da situação até. Permaneceu calada, acredito que avaliando as minhas palavras e acredito, como que comparando com a sua situação. Puxou-me pela mão para próximo ao seu corpo. Segurou-me pela nuca e me beijou com ternura. Um beijo doce e suave. Um beijo de carinho e delicado que tocou o mais profundo em minha alma. Era algo novo e com um gosto de despedida, de desespero. Apartou-se olhando com desânimo e um profundo sentimento de tristeza permeava seus olhos, esperando que eu compreendesse seu gesto. E eu compreendi. Compreendi que ali terminava nossa pequena e intensa história de amor.
— Tem razão. Já vou. Está ficando tarde.
— Quer que eu peça um táxi? Quer que eu a leve? — Falei aflita tentando retardar sua despedida.
— Não, não precisa. Moro a uma quadra daqui, praticamente; vou caminhando.
Levantou-se, pegando sua bolsa e a valise, esperando que eu a acompanhasse até a porta. Se eu estava atônita? Não, suas expressões e o conhecimento de sua vida, mesmo que parcial, ao longo do dia me disse o que era a sua estrutura e meta de vida. Se eu estava “P” da vida? Ah! Aí já é outra história. Estava com vontade de sacudi-la e dizer, “Em que mundo você vive minha filha?! O que você está fazendo com você”! Mas não fiz. Ela já carregava a sua cruz. Eu sou um amor de formosura e compassiva? Também não. Sabia que ia ficar mal, que ia ficar com raiva dela e estava sofrendo, mas ia adiantar?
Acompanhei-a até a porta e a abri. Ela me olhou e agarrei-me a ela dando um beijo sôfrego. Um outro beijo de despedida. Dali por diante, não olharia mais para trás.
Ela saiu e eu entrei. Escondi-me na lateral da janela para vê-la partir sem que me visse. Quando aproximei meu rosto do canto da janela para olhá-la fiquei em choque! Saí desesperada pela porta da frente sem perceber o desatino que eu cometia. Homens encapuzados agarraram-na e a jogaram no banco de trás de um carro. Vê-la sendo segurada por alguém e se debatendo, me deixou em pânico!