O Relógio das Flores

Autoras: Drey Damaso e Sara Lecter

Notas por: Marina Porteclis

PÉTALAS, LEMBRANÇAS E POESIA

Quem nunca pegou, com mas mãos trêmulas e o coração quente de saudade, uma antiga foto de infância onde amigos − alguns ainda presentes, a maioria “desaparecidos” − nos rodeiam em algum lugar perdido no passado? Quem, diante dessa mesma imagem esmaecida pelos anos, nunca se perguntou que fim aquelas pessoas e, sobretudo, sorrisos levaram?

Aquele que não ergueu a mão, apresentando-se como enquadrado, tem duas alternativas: ou cruzar os dedos desculpando-se pela inverdade ou abraçar-se a’O Relógio das Flores, que nos traz essa perspectiva já no início.

Sim, com maestria, Drey Damaso e Sara Lecter, através desse romance, convidam-nos a sentar na sala de estar que guardamos em nosso íntimo, à meia luz, recostadas em confortáveis almofadas − estas formadas por palavras − e descobrir exatamente o que a vida, em geral, não permite: o que o destino fez de quatro amigas inseparáveis.

A trama, muito bem engendrada, começa justamente quando Lana, Renata e Paloma retornam à cidade natal para o casamento de Clarissa, esta que, ao longo da vida, diferente das demais, tal qual âncora − como bem colocam as autoras −, preferiu não sair do lugar em todos os sentidos, inclusive o geográfico.

E é assim que nós, leitores, inicialmente do lado de cá das páginas, atravessamos o umbral que separa ficção de realidade e ousamos embarcar nessa mesma jornada de reencontro fomentado não apenas entre presente e passado, mas sobretudo revivendo antigos medos, zelos, mágoas, agonia e finalmente libertação através das quatro amigas. É que Drey Damaso e Sara Lecter, com poesia, conseguem tratar não apenas do “lugar comum” que é voltar a um especial cenário de infância: elas aprofundam, nas entrelinhas, vários sentimentos que povoam os corações de todos nós tendo por “pano de fundo”  a emoção.

Mas não só.

Além de abrirem uma peculiar janela para que possamos ver o que o “destino” reservou às quatro, as escritoras, através das distintas personalidades delineadas, permitem, fatalmente, que venhamos a nos identificar com alguma, senão com todas. E lá vêm perguntas outras: quem não se viu, em algum momento ou ao longo de toda a vida, preso às molduras da sociedade, às imposições de uma tradicional família, aos paradigmas tão cruéis quanto arcaicos  de “certo” e “errado”, chegando ao ponto de não conseguir distinguir seus próprios sonhos dos alheios, que são ensartados de goela abaixo, tal qual acontece com Clarissa? Quem não se viu ou não conhece alguém que, com a mesma intensidade, conseguiu vencer seus medos, romper os grilhões com o passado, encarar a vida de frente, empunhando uma arma real ou simbólica diante dos “vilões” ainda que, para tanto, corra constantemente risco de perder a vida, tal qual faz Lana, que ousa ser heroína tanto na profissão quanto nas horas vagas? Quem não construiu ou sonhou em construir um relacionamento visto por todos como “perfeito”, alheio aos defeitos humanos e sociais, como se bordado à mão pela Harmonia e, de repente, percebe que, como todo e qualquer arranjo, este também pode, um dia, tornar-se falho, como acontece com Renata e Paloma, cada qual com suas peculiaridades e manias? Enfim, quem não se enquadrou em uma ou, aqui e acolá, mesclou as categorias sobreditas que novamente levante a mão, desculpe-se pela inverdade ou se debruce sobre as páginas d’O Relógio das Flores, de onde todas essas experiências são vertidas.

Drey Damaso e Sara Lecter realmente conseguiram a proeza almejada por tantos escritores que é tratar de temas aparentemente corriqueiros, mas de maneira inusitada e tocante. E esse êxito se percebe a cada página. Ademais, a identificação dos leitores com os traços das personagens é tão intenso quanto automático e tudo flui num ritmo literário, poético e, sim, permeado de nostalgia.

Como se não bastasse − esse aglomerado de sensações particulares e, ao mesmo tempo, comuns a todos nós que emergem com a leitura do livro − é bom que se diga: as escritoras trabalham muito bem com a descrição dos cenários, emprestando vento aos nosso cabelos, frio a atiçar nossos poros nos momentos de tensão e calor nos de empatia; também articulam muito bem a descrição dos gestos das personagens, que saltam das páginas com vida, voz, estilo, meneares de cabeça e trejeitos inesquecíveis; e, finalmente, alinhavam com perfeição a colocação dos diálogos, que enxertam ar de realidade aos encontros entre as personagens sem retirar do enredo o “tom” literário.

Enfim, O Relógio das Flores, vencida a derradeira página, continuou batendo dentro de mim e confesso o motivo: emprestou-me a lupa exata para olhar meu próprio passado percebendo que, por detrás do que pareceu “banal”, ergueram-se os pilares que me mantiveram firme. E mais. Por uma questão de sobriedade, ouso acreditar que essa será a sensação de todos: a de que a jornada da leitura durará muito mais do que 24 horas permeadas de pétalas, lembranças e poesia.

Marina Porteclis é formada em Direito, concursada na área jurídica e, sem formação literária, aventurou-se na escrita, por mero deleite e instinto, desde os primeiros anos de vida. Nessa toada, como diria Clarice Lispector, “ao correr da máquina”, escreveu e publicou o romance Shangrilá, alguns e-books, dezenas de crônicas, contos e poesias de conteúdo homoafetivo. Mantém o espaço virtual marinaporteclis.blogspot.com, onde compartilha seus escritos. Em breve, publicará dois romances inéditos pela Editora Palavras, Expressões e Letras – PEL.

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