Desde sempre

Capítulo 9

Capitulo 9 –

1992

Fim de ano. Caio e Taís convidaram as meninas para o reveillon na casa de praia dos pais. Ambas concordaram.

Na manhã do dia trinta e um partiram os quatro no carro de Caio para o litoral com o casal sentado à frente e as duas meninas no banco traseiro enlaçando os dedos e encontrando meios de se tocarem o tempo todo.

Fabiana percebia sem ver aquela intimidade inquietante. A morena olhou para a paisagem procurando compreender a sua irritação repentina. Ela já era adulta, caramba! Por que se amofinar com o fato de sua melhor amiga ter outra amiga? Que ridículo! É claro que fazia meses que Liz não era mais a mesma e parecia só querer viver para sair com Taís, mas ela também tinha os seus compromissos com o namorado e…E o que? Gastar o tempo disponível com o namorado é natural. Liz é que havia mudado muito. Nem ligava mais para o apartamento de ambas, aquele mesmo pelo qual lutaram tanto a fim de morarem juntas.

Fabiana olhou de soslaio para ver Liz cair sobre o colo de Taís numa risada sonora e levar um beijo leve no topo da cabeça loira. O humor de Fabi, a despeito de suas elucubrações comedidas de segundos atrás, tomou rumo diametralmente oposto ao das garotas risonhas e em poucos minutos ela detinha algo parecido com a verve humorística de um ogro do pântano. Por fim, todos no carro chegaram à bela casa de praia perguntando à Fabiana se ela estava sentindo alguma coisa.

– Não, eu estou ótima – Fabiana respondeu com mais contundência que o necessário a um confuso namorado.

Liz e Taís foram logo para a praia aproveitar o restinho de sol entre risos frouxos e brincadeiras que uma vez foram prerrogativas somente de Fabiana, que preferiu se enfurnar em casa com Caio, tentando inutilmente descobrir o motivo de todo aquele amuo. De noite, os pais de Caio e Taís ofereceriam uma festa de fim de ano para os filhos e os amigos.

Fabiana e Liz arrumaram-se separadas, pois Liz ficou estrategicamente alojada junto com Taís. Mas, por uma dessas confluências dos astros ou por uma traquinagem dos Deuses, Liz e Fabiana saíram juntas dos respectivos quartos prontas para a festa, uma de frente para a outra.

Foi um choque para ambas.

Fabiana vestia uma saia tipo sarongue, justa, caindo até pouco abaixo dos joelhos perfazendo o contorno perfeito de suas curvas exatas e uma blusa de alças finas, frente única, leve e reveladora. Os cabelos longos e soltos caíam sobre os ombros como cascatas de seda negra e os olhos claros evidenciados por uma leve camada de rímel, piscavam etéreos e luminosos.

Liz não ficou atrás.

A pequena tinha um corpo escultural e sabia se aproveitar disso. Vestia uma mini-saia branca e uma blusinha curta e justa realçando a cintura fina. As sandálias elegantes de tiras finas privilegiavam-lhe as pernas perfeitas e os cabelos loiros e fartos, quedavam presos por uma presilha displicente, deixando os cachos caírem numa caprichosa desordem ao lado do rosto delicado. Um batom vermelho com toques dourados deixava-lhe os lábios feitos para um beijo apaixonado.

As garotas se olharam sem palavra e longamente. Algo assim como o velho clichê de parecer que o tempo parou…algo assim como o chavão ultra batido de parecer estar se vendo pela primeira vez…algo assim como o lugar comum de se sentir imobilizada pela visão de alguém que se conhece desde…desde… Até os namorados chegarem.

Caio e Taís as interpelaram, um após o outro, extasiados.

Os irmãos saíram com as namoradas para a festa na área da piscina, conduzindo-as com orgulho. Liz e Fabi ainda permaneceram um tempo aéreas e perturbadas.

A festa seguiu animada. Boa música, gente agradável, bebida e comida de primeira. Num canto do gramado, Liz e Taís conversavam entre sorrisos com um grupo de rapazes vizinhos. A todo momento, Taís segurava a mão de Liz possessivamente ou ajeitava o cabelo claro com lentidão e inequívoca intimidade. Fabiana se engasgou com o vinho. Caio veio socorrê-la com um guardanapo na mão perguntando se ela estava bem. Fabi apenas sacudiu a cabeça anuindo e pediu mais uma taça de vinho contrariando sua contumaz parcimônia. Ao cabo de um par de horas, a morena já estava um pouquinho bêbada.

Liz também abusara do vinho e com um toque no braço de Taís que conversava com um amigo de infância disse que voltava logo e caminhou para a praia.

Um par de olhos azuis a acompanharam.

A brisa do mar enchia os pulmões de Liz de frescor e maresia. Liz caminhou um pouco e sentou na areia fofa abraçando os joelhos, absorta na negritude do mar na noite pouco iluminada.

Suspirou fundo.

– Pensando em quem?

Liz levou um susto e olhou rápido para Fabiana.

– Nossa! Você me assustou, Fabi.

– Notei – Fabiana sorriu de leve – Desculpe.

– Tudo bem.

– Posso me sentar? Acho que exagerei um pouquinho no vinho.

– Puxa um banco e senta aí – Liz brincou. – E você não precisa ser formal comigo. Você é a minha melhor amiga.

– Sou?

– Esse papo de novo, Fabi?

– Eu sei que eu disse que não tocaria mais nesse assunto mas… eu sinto a sua falta, Liz. A gente não conversa mais. Mal nos vemos e olha que moramos na mesma casa. Eu sinto saudade dos nossos papos…Eu sinto saudade da sua risada. Eu sinto saudade de… “Você viver só para mim”

Fabiana quase completou, surpresa com o pensamento.

– Eu também, Fabi – a loirinha admitiu, tocando o braço moreno de leve e a olhando enternecida. – Que tal se nós fizéssemos um esforço mútuo? – Liz opinou em seguida.

– Estou dentro! – Fabi concordou com aquele sorriso que sempre faria o coração de Liz se incendiar. – Que tal se você começar a dormir mais em casa, para começar? – completou.

– Que tal se você reservasse alguns fins de semana para os nossos velhos programas juntas?

– Ah, Liz, você sabe que nos fins de semana eu preciso ficar com o Caio. É quando podemos nos ver sem correria.

– Pois no meio de semana eu é que estou na correria.

– Eu sei, mas você poderia ficar mais em casa depois das aulas noturnas. Nós poderíamos assistir a alguns filmes regados a toneladas de pipoca e baldes de refrigerante como nos velhos tempos.

“Esse é o tempo que eu tenho para a minha namorada”, Liz pensou antes de responder:

– Eu vou tentar, Fabi.

– Tentar? Poxa, Liz! Você…Tudo bem. Eu sei o porquê. É por causa da Taís, não é? – Sem querer, Liz gelou e não respondeu. Fabiana prosseguiu:

– Eu sei que eu não tenho nada a ver com isso, mas você virou um grude difícil de entender com a Taís. Até parece outra coisa…

Algo tocou os brios de Liz, além de um cansaço, um fastio de ter que inventar desculpas exatamente para quem deveria confiar mais que em qualquer pessoa no mundo.

– Que outra coisa? – Liz perguntou com mais irritação do que gostaria que transparecesse.

– Ah! Coisas que as pessoas podem pensar, tipo que vocês podem ser mais que amigas. Essas coisas, você sabe.

– Não, eu não sei, mas…no que é que isso vem ao caso? – Fabiana se retraiu ante a evidente irritação da loirinha.

– O que as pessoas podem pensar? – Liz continuou antes da resposta. – Que eu e a Taís somos namoradas, é isso?

Fabiana conhecia bem aquele tom. Sinal de que o temperamento belicoso da loirinha estava se pronunciando. Falou com cuidado:

– É o que parece, mas eu não estou dizendo isso…

– Pois é verdade!

– Que?

– É verdade. Eu e Taís somos namoradas, sim.

– Você está brincando.

A garota mais baixa apenas olhou firme e seriamente para a melhor amiga. Fabiana ficou sem palavras por alguns segundos.

– Você…você…Você nunca me disse nada.

– Eu sei. Me desculpe. Mas eu estou te dizendo agora. Eu sou lésbica.

– Mas…co-como? Eu…

– Eu sei, Fabi. Eu devia ter te contado antes, mas…

– Eu durmo com você! Eu troco de roupa na sua frente!

– Eu sei, mas o que é que isso…? Espera aí! O que você quer dizer com isso? –  Fabiana mal ouviu. Parecia completamente transtornada.

– Meu Deus! Eu tomo banho com você! Que absurdo!

– Que absurdo digo eu, Fabiana!

Contudo, Fabiana parecia ter se descontrolado de vez e falou aos berros:

– Você deveria ter me contado antes. Devia!

– Eu sei, Fabi… – Liz segurou a garota mais alta pelo braço.

– Me solta, me solta sua…

– Sua, o que? – foi a vez de Liz se alterar. – Sua pervertida? Sua anomalia? Humf! Quer saber, Fabiana? Você está agindo como uma idiota!

Ao invés de soltar a morena, Liz apertou ainda mais forte o braço da amiga.

– Você é que não tinha o direito de fazer isso comigo – Fabi gritou tentando se desvencilhar da mão de Liz.

– Fazer o que, meu Deus? O que eu fiz com você, Fabiana?

– Você…você… – Fábia não conseguiu dizer nada e fitou Liz com os olhos azuis assombrados. Num repente impensado que depois Liz creditou às intensas emoções do momento, a pequena loira atirou-se sobre a morena, deitando-a sobre a areia e capturando os seus lábios com toda a força de anos de um amor silencioso. Admirada, Fabi esboçou pouca ou nenhuma reação. De fato, surpreendentemente, passou as mãos pelo pescoço da sua pequena amiga entremeando os dedos no cabelo loiro e aprofundou o beijo.

Deitada sobre a encarnação do seu maior desejo, Liz só queria que o tempo parasse. O cheiro de Fabiana, o gosto da boca amada, a sensação maravilhosa de sentir a sua Fabi a abraçando, correspondendo com ardor ao beijo por tanto tempo ansiado…era a glória.

Fabiana não pensava em nada. Recusava-se a pensar. Havia algo de surreal, inimaginável em ter a melhor amiga nos braços, além de, difícil de admitir, algo de delicioso e único nesse momento…era como se ela estivesse se derramando. Inexplicável.

De repente, Fabiana pareceu acordar de um sonho bizarro e empurrou Liz para o lado.

– Você ficou louca?

– Talvez, mas só se você ficou louca junto.

– E-eu bebi demais, é isso. E você…você nunca mais encoste em mim, entendeu?

– Rá! – Liz soltou um arremedo de risada, sarcástico e dolorido. – Por minha experiência com você, isso é o que eu chamo de um aviso inócuo.

– O que você quer dizer com isso?

– Que amanhã eu serei a única pessoa a se lembrar disso mesmo.

– Eu não sei do que você está falando.

– Você sabe, você sabe, sim.

– E-eu não te reconheço mais. Você não é mais a amiga que eu conheci.

– Não, Fabi. Eu sou mais. Muito mais. Eu sou a mulher que te ama desde a primeira vez que te viu. Ouviu bem? Eu sou a mulher que te ama desde…Droga! Que te ama desde sempre. Á partir deste instante, você não pode mais dizer que eu não te contei qualquer coisa porque isso é o que existe de mais profundo e importante na minha vida. Ouça bem: EU TE AMO, FABIANA MARTINS COUTO! EU TE AMO, PORRA! Pronto. Agora você pode conviver com toda a verdade. Toda ela. E agora, Fabi…Agora, eu te desafio a se lembrar disso amanhã!

Liz se virou e começou a caminhar de volta para a festa com muito mais firmeza do que poderia supor o seu coração dando saltos múltiplos e a sua vista embaçada pelas lágrimas grossas mirando as luzes cada vez mais próximas da casa, enquanto sua vontade era voltar para Fabiana como um raio.

Fabiana ficou na praia fitando coisa alguma no firmamento enegrecido. Não sentia nada, somente uma enorme confusão e a sensação de que lá no fundo do peito uma voz quase imperceptível sussurrava triste e insistentemente:

Liz…Liz…Liz…

 



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