Desde sempre

Capítulo 19

Desde Sempre

Por: Paula Marinho

Esta é uma história de Paula Marinho. A postagem foi autorizada pela escritora.

 

Capítulo 19 –

O telefone tocava insistentemente.

O celular havia parado de chamar quando fora bruscamente apresentado à parede dois dias antes. Havia três dias que Liz não saía de casa, não atendia a ninguém e mal se alimentava. A secretária eletrônica estava repleta de recados e o porteiro tentara, inutilmente, avisá-la de qualquer coisa a chamando pelo interfone. Liz não queria ver ou falar com ninguém.

O crepúsculo já cobria de penumbra o quarto, que havia sido o refúgio de Liz nos últimos dias, quando a campainha do apartamento tocou com estridência. A loirinha sequer se movimentou até ouvir a batida forte na porta e a voz alterada de Taís.

– Liz, eu sei que você está aí e eu não arredo o pé daqui antes de você abrir esta porta. Mais uma série de pancadas sonoras.

Liz levantou-se penosamente e caminhou até a porta da frente como se tivesse bolas de ferro amarradas aos tornozelos. Ela conhecia bem a Taís. Ela não sairia dali. Mais fácil os vizinhos chamarem a polícia.

– Liz… – Taís ia gritar de novo quando ouviu o som da chave girando.

A porta abriu. Taís entrou. Liz caminhou até o sofá e desabou sobre ele.

– Você está horrível.

– Não enche, tá.

– É meu dever perpétuo te encher quando você faz bobagem. Lembre-se: foi você mesma quem me deu esta prerrogativa. Agora ela é imprescritível e irrenunciável. Entendeu? À propósito, você está horrível.

Liz olhou para a amiga que um dia fora a sua esposa e quase sorriu.

– A-há! Melhorou um pouquinho, cara-pálida. Agora, levante-se e vá tomar um bom banho. Eu vou preparar algo para você comer. Depois você me conta o que aconteceu.

Liz ameaçou um protesto.

– Não me contradiga, Liz, ou eu juro que jogo um balde de água fria em cima desta cara amassada. Odeio vê-la assim, querida.

Liz suspirou, levantou-se e seguiu para o banheiro. Taís foi para a cozinha. Logo o cheiro de ovos mexidos tomou conta da casa. Taís encontrou um pacote de torradas e fez um suco de uns maracujás que murchavam na fruteira. Liz chegou quando ela já terminava de colocar a mesa.

– Sente-se e coma, Liz. Conversaremos depois.

Sabendo que seria inútil argumentar que não estava com fome, a loirinha tentou engolir os ovos que o seu nariz dizia que cheiravam muito bem, mas que o seu estômago teimava em repudiar.

Foram para a sala.

– Muito bem, Liz, o que foi que Fabiana te fez? – Liz arregalou os olhos.

– Como…?

– Como eu sei que se trata de Fabiana? Simples. E olha que eu não digo isso sem dar um duro golpe em meu ego de ex-esposa. Ela é a única pessoa capaz de deixá-la neste estado.

Liz abaixou os olhos tristemente e nem precisou retrucar.

– Conte-me o que ela fez que a deixou assim.

Sentindo-se subitamente cansada de carregar aquele fardo sozinha, Liz começou a contar os acontecimentos desde o dia em que reviu Fabiana até a hora do beijo. Quando Liz terminou o relato, Taís assoviou.

– Caramba! Por esta eu não esperava. Fabiana se declarou a você e a beijou em seguida? Tô pasma – Taís comentou surpresa para em seguida quase gritar:

– Mas…”peraí”! Não, não, não, não, não! Isso quer dizer que ela pode ter se casado com o meu irmão, tendo sentimentos por você. Eu arrebento a cara dela! Liz, me conte esta história direito.

Liz se viu imprensada contra a parede. Na verdade, nunca contara a Taís sobre a noite que passara com Fabiana antes do casamento. À época, achara que tal revelação teria consequências terríveis para o seu relacionamento e muito mais, possivelmente, para o casamento de Fabiana com Caio. Afinal de contas ele ainda era o irmão de Taís. Por isso, se calara. Mas este era um segredo que sempre a incomodara.

De fato, naquela ocasião, dissera apenas que tivera uma forte briga com Fabiana na véspera, o que explicara não somente a sua falta ao casamento da então melhor amiga, como também os dias de tristeza e inapetência subsequentes, bem parecidos com a sua situação de agora.

Liz falou com cuidado:

– Não acredito que Fabiana sentisse isso naquela época, Taís. Tenho certeza de que ela amava ao Caio e queria realmente se casar com ele. “Pelo menos a última assertiva era verdade”.

– Certo, Liz, mas isso tudo é muito estranho. Esta revelação agora e depois de tanto tempo sem vocês se verem.

– Não importa, Tá. Eu não estou interessada.

– Desculpe-me, querida, e aí vai mais um duro golpe em meu alquebrado ego de ex-esposa, mas o seu atual estado de trapo ambulante não concorda com este seu alegado desinteresse.

Liz abriu a boca para responder algo rápido e inteligente como era de seu feitio, de preferência algo sarcástico e fugidio, mas nada lhe ocorreu. Olhou para o próprio corpo, alguns bons quilos mais magro, lembrou-se da imagem do rosto abatido que vira no espelho do banheiro e respirou com força. Sentiu um aperto no nariz prenunciando lágrimas quentes.

– E-eu…desculpe, Taís, eu não deveria conversar isso com você. Nós fomos casadas.

– Não vou dizer que esta sua história com Fabiana não me incomodou muito há tempos atrás e que, mesmo agora, não me incomode um pouco, mas eu já superei quaisquer resquícios de ciúmes ou despeito que eu ainda tivesse de outra época. Você pode me contar o que quiser. Bom…poupar-me de alguns detalhes sórdidos seria de bom tom – Taís sorriu fracamente.

– Pode deixar – Liz falou correspondendo o sorriso com outro ainda mais débil. – E obrigada. A verdade é que eu estou mesmo um trapo e eu não entendo como é que depois de tanto tempo ela ainda consegue me deixar assim.

– Ai, meu Deus. Vou precisar de vinte sessões de terapia para me recuperar. Bem, paciência. Liz, querida, você nunca a esqueceu verdadeiramente.

– O que eu faço, Taís?

– Primeiro, você poderia me deixar arrebentar a cara daquela mulher. – Liz olhou para o porte franzino de Taís e fez uma cara incrédula.

– Ei, não duvide da força da minha indignação – Taís falou sorrindo mostrando o muque esquerdo.

Liz foi obrigada a rir um pouco.

– Falando sério agora, Liz. Talvez fosse bom você tirar umas férias. Mesmo porque, você merece. Quem sabe a Fabiana, neste ínterim, se enfastia do Brasil e vai brincar de milionária benemérita em outro lugar.

– O trabalho dela é muito sério, Taís.

– E você a defende.

– Eu estou falando do trabalho.

– Eu sei, eu sei, Liz. Mas tudo tem ligação com ela e para tudo que tem ligação com ela você é muito sensível. Veja bem, olhe para mim e responda: o que você sente por Fabiana?

– Eu…Eu não sei ao certo.

– Pois eu vou te dar uma pista. Ela foi a sua tão considerada melhor amiga por quase toda a sua juventude e mesmo assim, por causa de uma mera discussão – pelo menos eu acho que foi somente isso – nunca mais sequer lhe mandou um cartão de natal. Ela volta de repente, depois de mais de uma década, declara que te ama, assim do nada, e te deixa arrebentada de dúvidas. Sim, porque metade deste sofrimento é dúvida e a outra metade é este sentimento que você nutre por ela e que nunca superou completamente.

Silêncio.

– Liz, eu gostaria de te aconselhar a nunca mais falar com ela, mesmo porque eu acho que de alguma forma ela enganou o meu irmão e a você também.

Ela nunca… – Liz tentou dizer.

– Não, não me interrompa, Liz. Eu sei que ela pode ter tido as melhores intenções no casamento com Caio e que jamais tenha tido a intenção de te magoar, mas isso não quer dizer que ela não tenha feito e nem retira a vontade que eu tenho de esganá-la.

Taís respirou fundo e continuou.

– Eu acho que você deveria viajar, espairecer, equilibrar-se primeiro e depois verificar se ainda quer falar com Fabiana porque, querida, superar esta pessoa em sua vida, você tem que fazer de qualquer jeito. Olhe só para você!

Taís se levantou o olhou com carinho para o seu antigo amor.

– Eu… vou pensar – Liz falou.

A minha casa em Trancoso está à sua disposição, você sabe.

– Obrigada, tá.

Depois da saída de Taís, Liz foi para a sacada e aspirou o ar da noite sentindo-se mais disposta. Ela já deveria ter enviado os retoques definitivos de seu livro para a editora. Pois iria fazer isso agora e então pediria a Carlão, não, exigiria umas boas semanas de férias. E Fabiana…Fabiana era algo a se pensar depois que se sentisse menos fragilizada. Isso!

Foi direto para o computador.

Como era de se esperar a caixa de mensagens estava repleta, mas uma única mensagem do dia anterior fez o estômago de Liz gelar. Era da Hathaway Foundation. Liz pensou em apagá-la, mas algo no que Taís havia lhe dito, sob ter que superar Fabiana de qualquer jeito, fê-la corajosamente clicar no e-mail.

Era realmente uma mensagem de Fabiana.

– Cara Liz, perdoe-me por insistir em contatá-la após você ter me avisado enfaticamente para não mais procurá-la. Permita-me, contudo, apelar para o seu reconhecido profissionalismo. Como sabe, a série de entrevistas está quase pronta e embora seja possível e talvez desejável para você, uma mudança no jornalista que conduz a matéria, este tipo de troca é sempre melindroso, portanto, é do interesse da fundação e meu também que seja você a jornalista responsável pela publicação da matéria. Obviamente, eu tive motivos pessoais para escolhê-la, mas também tive motivos profissionais contundentes, dada à sua excelente reputação. Por conseguinte, permita-me mais uma vez fazer-lhe uma proposta: falemos por mensagens. Mande-me suas perguntas e eu as responderei da mesma forma.

Peço que considere a minha sugestão. Grata, Fabiana Couto Hathaway.

Liz leu e releu uma dúzia de vezes a mensagem. Então, Fabiana gostaria de continuar a entrevista na forma insípida e segura de perguntas e respostas via internet. Quão típico! Uma raiva súbita ameaçou dar-lhe ganas de jogar o monitor na parede, junto com uma saraivada de xingamentos digna de Leila Diniz, contudo, bem mais equilibrada após a visita de Tais, a loirinha respirou fundo e ponderou sobre a proposta de Fabiana.

De fato, assinar sozinha esta entrevista seria de suma importância para o seu currículo profissional e como não haveria nem mesmo contato visual, esta poderia ser uma boa solução para a sua disposição em não se encontrar tão cedo com Fabiana e seus ardis. Assim, logo depois de mandar a matéria para publicação, ela poderia tirar as férias, há muito merecidas, e aguardar com calma a publicação do seu livro tomando banhos de mar. Liz suspirou com energia, sentindo-se calma como não ficava em muitos dias.

Sem maiores elucubrações respondeu à mensagem, aceitando friamente a proposta e perguntando quando poderia enviar as perguntas e, se Fabiana as queria todas ao mesmo tempo ou as preferia em partes. Enviou. Trabalhou mais um par de horas na finalização do livro e o remeteu à editora junto com o primeiro sorriso satisfeito da semana.

Levantou-se e resolveu pedir uma pizza. Caramba! Aquelas torradinhas não serviriam nem para forrar o estômago de um grilo.

Fabiana abriu a mensagem de Liz ansiosamente. A resposta positiva a fez suspirar aliviada. A saída de Liz na última vez em que se encontraram a havia realmente abatido. Mas ela também havia tido sua loirinha nos braços e sentido a ânsia, a vontade e a saudade naquele abraço inevitável e furioso. Não podia, não iria desistir. A ideia da comunicação por mensagens veio como uma inspiração ante a vontade de invadir a casa de Liz, num ato de desespero. Portanto, Fabiana agarraria esta chance de contato com unhas e dentes.

Respondeu sem maiores explicações que preferia duas ou no máximo três perguntas por vez.

No dia seguinte Liz as enviou.

“Como você conheceu Eric Hathaway?”

“Qual sua primeira impressão sobre ele?”

“A senhora ainda estava casada?”

Fabiana a respondeu quase imediatamente.

“Na clínica em que meu ex-marido trabalhava em Boston.

A primeira impressão que tive de Eric não foi muito reveladora, mas marcante. Ele já estava muito doente e na ocasião mal conseguia falar. Contudo, em poucas palavras ele conseguiu me fazer retornar para vê-lo. Ele falou tão baixo que eu quase não consegui ouvi-lo, mas me disse delicadamente: “ Dizem que a presença de deusas traz abundância aos homens. Volte outra vez, jovem Ízis”.

Eu ainda estava casada com Caio, meu primeiro marido, mas nós já havíamos conversado e decidido sobre a separação, somente ainda não havíamos oficializado a nossa decisão. Na verdade, Eric surgiu numa época dificílima da minha vida.”

Liz leu as respostas diretas, mas um tanto lacônicas e mil outras questões surgiram em sua mente. A ideia da entrevista por e-mail coadunava-se com sua vontade de não mais ver Fabiana, mas restringia em muito o seu trabalho por falta de interação. Foi até a cozinha e tomou um copo de água, enquanto pensava em uma forma de melhorar esta situação. Uma enorme curiosidade que Liz gostaria de creditar, tão somente, à sua veia jornalística começou a se imiscuir em sua mente, gerando outras muitas perguntas que gostaria de saber as respostas. Retornou ao computador e outra mensagem de Fabiana a surpreendeu como se a morena pudesse ter lido os seus pensamentos.

“Cara Liz, sinto que a entrevista parece correr para um lado menos abrangente do que poderia ter. Posso fazer uma outra sugestão? O que acharia de conversarmos online? Podemos marcar uma hora que seja conveniente para ambas.

Aguardo resposta.”

Conversa online? Por que não? Liz enviou uma resposta positiva e sugeriu um horário na manhã seguinte. Minutos depois recebeu um simples “Combinado”. Liz sentiu um frio inesperado tomar-lhe o estômago como se tivesse acabado de marcar um encontro.



Notas:



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