CAPÍTULO 17
Duas horas.
Fabiana não conseguira dormir.
O que dera em Liz para sair daquele jeito? Precisava controlar a sua ansiedade, mas era difícil conter a vontade de abraçá-la, resistir à tentação de tocá-la, de fazê-la sorrir ou de retirar carinhosamente a franja rebelde de sobre os olhos verdes. Quando Liz fez aquele comentário tão típico e espirituoso, Fabiana teve uma vontade quase invencível de agarrá-la e enchê-la de beijos, de estreitá-la nos braços e pedir que a perdoasse, que a amasse novamente como antes. Contar-lhe do seu amor que resistiu à sua covardia e preconceito e que permaneceu bravamente em sua alma e por fim a libertou. Contudo, como perder o medo terrível de que Liz jamais a quisesse de novo?
Duas horas.
Liz não conseguira dormir.
Chorara compulsivamente por muito tempo. Subestimara a força emocional de ver Fabiana outra vez. Precisava se controlar. Terminaria esta série de entrevistas o mais rápido possível e daria um jeito de nunca mais ver Fabiana Couto …, Fabiana Hathaw…sei lá! Descobrira da forma mais brusca possível o quanto aquela mulher ainda era capaz de desequilibra-la. Mas não teria o coração destroçado novamente. Nunca mais!
**********
Liz chegou como sempre, alguns minutos adiantada. A governanta a atendeu com um recado:
– Mrs. Hathaway pede que a senhorita a aguarde um pouco porque ela se atrasará alguns minutos. A sede da Fundação em Nairóbi foi vítima de um atentado à bomba há algumas horas e Madame está com os seus diretores na África em conversa por vídeo conferência.
– Meu deus! É claro que aguardo. Se você puder, diga-lhe que não precisa se apressar.
A governanta anuiu educadamente e se retirou. Meia hora depois, Fabiana apareceu, triste e abatida. Liz conhecia bem aquele jeito consternado de andar com os ombros caídos de quando ela se sentia impotente e infeliz.
Olharam-se compreensivamente.
Fabi bateu os braços nas pernas em resignação e cansaço.
– Eu acho que não conseguirei responder ás suas perguntas hoje, Liz. Desculpe.
– Tudo bem…
– Boa parte do prédio foi destruída.
– Eu sinto muito.
– Mubawa morreu.
– Mubawa?
– Ele chegou na nossa porta quando tinha doze anos. Eu estava com Eric em Nairóbi naquele dia. Os pais de Mubawa tinham sido assassinados. Ele perdera um dos braços, estava maltrapilho e sub-nutrido, mas era tão vivaz, inteligente e decidido, apesar da tragédia que fora a sua vida. Pediu para morar e comer em troca de trabalho. Nós o acolhemos. Ele cresceu, aprendeu e agora era um dos nossos mais competentes e leais colaboradores. Mubawa era uma inspiração para todos e meu amigo…
Nessa hora, a voz de Fabiana tremeu.
– Fabi, o que eu posso fazer?
Era a primeira vez que Liz a tratava pelo diminutivo carinhoso que ela mesma inaugurara.
Fabiana não aguentou. Virou de costas e colocou as mãos no rosto chorando. Sem pensar muito no que estava fazendo, Liz avançou para ela e a abraçou por trás colocando a rosto delicadamente de encontro às suas costas. Para Fabiana, era um misto de dor e alegria. A sua Liz finalmente a abraçava, espontaneamente, ainda que numa hora de desespero. Tirou as mãos do rosto e pousou os braços nos braços de Liz que lhe enlaçavam a cintura. Suspirou em meio às lágrimas.
Liz fechou os olhos aspirando o cheiro dos cabelos fartos e negros. Fabiana fechou os olhos, sentindo amplamente aquele coração batendo de encontro à sua pele. Nenhuma delas se deixou levar por pensamentos outros, senão o de estarem abraçadas com uma cumplicidade antiga, mas nunca esquecida. Uma infinidade de minutos se passaram antes que os passos diligentes da governanta as fizessem se separar.
– Mrs Hathaway? Ligação de Nairóbi.
Fabiana passou as mãos pelos olhos úmidos, respirou fundo e olhou para a governanta, mas antes que dissesse qualquer coisa, Liz adiantou-se:
– Olha, Fabiana, eu volto amanhã ou num outro dia que lhe for conveniente.
– Não! – Fabi exclamou, para depois falar com mais calma. – Quero dizer, será que você pode ficar comigo mais um pouco? Eu tenho quase certeza de que se trata de Mwai, meu diretor em Nairóbi, que quer falar sobre os funerais e outras questões legais atinentes. Eu estou…Eu estou…Por favor, Liz?
– Claro.
– Obrigada.
Liz seguiu Fabiana até outra parte da casa, onde havia uma mesa de reuniões e uma aparelhagem moderna de vídeo conferência. Um senhor distinto de uns sessenta anos aparecia na tela. Fabiana sentou-se e pediu que Liz se sentasse ao lado dela. Mwai realmente começou a falar sobre questões legais relativas aos falecimentos e por causa disso, inevitavelmente, ele teve que tocar algumas vezes na brutalidade das mortes e citar nomes queridos em frases no passado. Sem pensar, Fabiana buscou a mão de Liz e a apertou. Mas, mesmo visivelmente emocionada, ditou ordens e tratou dos detalhes com firmeza.
Liz olhou para a amiga com admiração. Como predissera na adolescência, Fabiana se transformara numa mulher extraordinária. Não conseguiu conter uma onda de orgulho que se traduziu num aperto involuntário na mão que abraçava. Fabiana percebeu e sem pausar a frase que dirigia ao seu interlocutor, correspondeu ao aperto e ainda passeou o polegar suavemente pelo dorso da mão da loirinha, que não conseguiu deixar de se arrepiar.
Perigo! Perigo”, gritou-lhe a consciência, mas ainda assim, Liz manteve a mão no lugar até que a conversa findasse.
Despediram-se com um cuidado diferente dos últimos dias. Em meio á tristeza, Fabiana percebeu esta tênue mudança e permitiu-se sentir esperança. Fabiana pediu alguns dias para recompor a sua unidade na África. Combinaram o próximo encontro para a semana seguinte.
********** Dez da noite.
A TV apresentava mais um seriado americano com infindáveis cenas de perseguição de carros. Fabiana mal prestava atenção ao quadrado luminoso, iluminando debilmente o quarto. Após o terrível incidente na África, ela voltaria a rever Liz na manhã seguinte. Os dias cheios a fizeram esquecer um pouco de sua amiga, mas as noites a faziam sempre voltar os pensamentos para ela. Desligou a TV e abraçou o travesseiro, pronta para outra longa noite insone. Rememorou pela milésima vez as últimas reações de Liz. Uma intuição de guerreira lhe dizia que já era a hora de agir com um pouco mais de agressividade. Este pensamento retirou-lhe definitivamente o pouco de sono que ainda poderia ter. Levantou-se e seguiu para a cozinha para preparar um chá. Precisava pensar.
Dez da noite.
Liz não havia revisado uma única linha durante todos esses dias. Seus pensamentos só tinham uma única destinatária. Frustrada e irritada consigo mesma, prometera-se passar um longo período em Trancoso tão logo terminasse a série de entrevistas. Bastaria pedir as chaves da casa de praia à Taís. Ela as cederia de bom grado. Era isso: terminar o trabalho, tirar uns dias de descanso e Fabiana voltaria a ser uma lembrança eventual. Virou para o lado e tentou dormir.
**********
No outro dia, Liz foi recebida mais uma vez pela governanta com um aviso incomum.
– Srta. Liz, Mrs. Hathaway pediu que lhe avisasse que a aguarda na piscina.
Liz estranhou a novidade, mas tranquilamente se deixou conduzir pela governanta. Chegou na área da piscina até mesmo um tanto curiosa. Era realmente uma propriedade muito grande. Passou os olhos pelo jardim bem cuidado, a decoração de bom gosto, a enorme piscina…Sim, a piscina. Fabiana vinha subindo pela escada com um sorriso tímido nos lábios. Só o sorriso… porque não havia nada de tímido naquele biquíni. Para quem esperava um maiô atlético e recatado de uma nadadora, Fabiana apareceu com um modelito minúsculo digno de domingo em Ipanema.
Liz engoliu em seco. O que era aquilo, meu Deus?
Aparentemente alheia ao efeito que estava causando, Fabiana terminou de subir a escada enrijecendo suas coxas maravilhosas. A barriga parecia o sonho almejado por qualquer personal trainner. Os braços torneados, os seios firmes seguros pelo biquíni revelando as curvas perfeitas do colo moreno. Os cabelos negros molhados, jogados para trás. Os olhos azuis líquidos e ternos olhando para Liz.
Haja controle!
Liz abafou uma exclamação, mas sabia de antemão que deveria estar vermelha como um tomate maduro. Se Fabiana percebeu o seu embaraço, não demonstrou.
– Eu vivo te pedindo desculpas, não é, Liz? Eu não tive tempo para os meus exercícios costumeiros esta manhã, então resolvi nadar um pouco. Espero que você não se importe.
– Eu? Não! Claro! Quero dizer, claro que não. Uau…digo, nadar! Puxa, ótimo. Ótimo exercício.
– Obrigada. Em poucos minutos eu retorno, tenho um armário com algumas roupas aqui na casa da piscina para essas eventualidades – Fabi disse e saiu andando com sua perturbadora beleza para dentro da casa.
Desarmada, Liz só conseguiu acompanha-la caminhando lentamente até o interior da casa da piscina. Antes de entrar, a morena trouxe a mão para as costas e desamarrou o biquíni deixando por breves segundos que Liz admirasse as costas nuas e principalmente se lembrasse do que elas escondiam. A loirinha sentiu uma vontade premente de se jogar na água fria da piscina.
Fabiana sorriu delicadamente.
Quando Fabiana voltou de banho tomado e vestida simplesmente de jeans e camiseta, a conversa versou basicamente sobre o atentado e Fabiana não se furtou a falar abertamente sobre o acontecido, muitas vezes com visível emoção, derramando com sinceridade suas impressões à respeito da brutalidade daquele ato. Liz ficou satisfeita com o resultado e marcaram para o outro dia, infelizmente adiado porque a presidente da Hathaway Foudation teve que viajar para a sede em Nova York. Ficaram cerca de dez dias sem se ver.
Durante aqueles dias, Liz pôde preparar, formular, desistir e reiterar as perguntas que faria à Fabiana sobre a sua vida pessoal nesses anos em que não tiveram qualquer contato. Na verdade, Liz não sabia se gostaria mesmo de saber determinadas coisas e estava profundamente incomodada com isso. Contudo, incomodada mesmo a loirinha estava com o fato de que a constância dos seus pensamentos não era exatamente sobre os seus sentimentos quanto às revelações que Fabiana poderia fazer durante a entrevista, mas num pequeno detalhe. Pequeno mesmo…o biquíni. Ah!, aquele biquíni.
Os sonhos de Liz foram povoados por aquela minúscula peça de vestuário. Os seus pensamentos tinham a cor azul turquesa daquele biquíni.
Recorreu ao Yoga, às técnicas de respiração, à concentração, ao equilíbrio e ao fim dos dez dias, estava mais tranquila. De fato, entendera que não adiantava renegar que Fabiana a perturbava, afinal, ela fora grande amor da sua adolescência e era bonita como o diabo, mas também a magoara profundamente, o que também lhe afastava a indiferença que pretendia manter. Então, o que tinha a fazer era trabalhar com agilidade profissional e naturalidade pessoal.
Foi assim que adentrou novamente a casa de Fabiana Hathaway.
Quando entrou na aconchegante sala de estar, privativa, para onde foi conduzida, Liz já a encontrou esperando-a sentada, lendo um livro com um par de óculos, pendendo na ponta do nariz. A loirinha não conseguiu controlar a aproximação de uma alegria inconveniente ao vê-la, mas não tentou evitá-la de todo. Precisava encontrar um jeito de trabalhar mais relaxada, mais solta como era, aliás, o seu estilo.
– Você usa óculos!
– Só para ler. De longe, continuo enxergando como uma águia – Fabiana respondeu com um sorriso luminoso.
– Nani-nã. Desculpas esfarrapadas para o avanço implacável da idade – Liz falou correspondendo ao sorriso.
O coração de Fabiana se aqueceu. Aquele era o sorriso que lhe fora sempre dirigido em outros tempos.
– Preparada, Mrs Hathaway? Ou Vossa Senhoria precisará de um reconfortante chá de camomila antes de iniciamos as perguntas? – Liz perguntou com aquele meio sorriso maroto que ela detinha quando estava fazendo troça.
– Preparadíssima! – Fabiana falou com animação, mal suportando a alegria de ver a sua Liz tão bem-humorada.
– Muito bem, vamos à carga.
Mas antes que Liz pudesse verbalizar a primeira pergunta, o secretário adentrou o recinto.
– Liz não pôde conter um pensamento ligeiramente homicida. “Lá vem este empertigado pomposo atrapalhar o meu trabalho”.
– Perdoe-me, Mrs Hathaway, mas Monsier François Fillon a aguarda ao telefone.
– Meu Deus, eu espero para falar com ele há três dias.
Liz abriu a boca etada.
– François Fillon, o primeiro ministro francês?
– Espero que ele tenha uma boa notícia para mim – Fabiana falou já se levantando. – Liz, você me aguarda um instante? Vou atendê-lo no escritório.
– Claro!
Fabiana saiu apressada, deixando Liz pensando sobre as relações que Fabiana mantinha com os poderosos do mundo. “Caramba! Que moral!”. Fabiana demorou cerca de meia hora e quando voltou tinha um pedido de desculpas estampado no rosto perfeito. Liz se adiantou.
– Já sei, já sei. Teremos que adiar novamente.
– Mil perdões, Liz. Preciso enviar partes importantes do projeto, que contará com a parceria do governo francês, o mais tardar amanhã para a assessoria de Monsier Fillon. Podemos nos encontrar daqui a dois dias, por favor?
– Tudo bem. Mas, me diga uma coisa, o primeiro-ministro telefonou pessoalmente? Uau!
– François é um gentleman.
– François? Como você trata o Bush? Georgie? Júnior? – Fabiana riu com gosto.
– O presidente Bush também é muito educado.
– Meus sais! Nem vou perguntar se você conhece o Dalai Lama.
– De fato, eu…
– Ah, não, Fabi. Deixa pra lá. Daqui a dois dias então. Ao mesmo horário?
– Ao mesmo horário e obrigada pela compreensão.
– Eu é que agradeço. Você sabe que vai representar um salto quantitativo e qualitativo, sem precedentes, para a minha revista, Fabiana. Compreensão é o mínimo que eu preciso ter.
– Desculpe, Liz, mas o salto da sua revista é o menor dos meus interesses. A sua compreensão é mais importante do que qualquer revista.
Liz olhou para a morena imaginando o que dizer, mas não conseguiu pensar em nada. Essas tiradas repentinas de Fabi a inquietavam, porque carregavam uma aproximação perigosa e além do que, Liz considerara aceitável quando resolvera ser um pouco mais natural.
– Certo. Então eu já vou indo. Até depois de amanhã – disse com voz inexpressiva.
Quando ela saiu, Fabiana ainda ficou um tempo sentada na poltrona olhando para a parede. Isso não ia ser fácil. Mas, quando mesmo ela achou que seria? Levantou-se e cuidou de chamar o seu staff para uma reunião importante. Tinham 24 horas para adequar o projeto ao que o ministro lhe requisitara. O tempo urgia.