Desde sempre

Capítulo 11

Capítulo 11 –

1987

Chegaram à chácara do colégio às dez horas de um sábado ensolarado. A pequena viagem de pouco menos de uma hora fora uma sucessão de pequenos eventos que ilustravam a alegre algazarra que começara desde o embarque dos alunos, para o desespero das freiras e trabalho dos professores que tentavam conter os empurrões, as piadas e a cantoria de duplo sentido que duraram todo o percurso.

Sentada em um dos ônibus ao lado de Liz que liderava o coro de vozes adolescentes descontroladas, Fabiana pensava no quanto havia perdido deste delicioso alvoroço. É certo que já havia experimentado o gostinho de pequenas excursões com o time da escola, mas nada parecido com aquela massa de jovens excitados e nem com aquele riso frouxo, meio sem sentido que tomava conta de todos os seus colegas.

Desceram.

A chácara se localizava à beira de uma represa calma e larga. Continha uma sede simples onde ficavam os aposentos das freiras, um balcão onde ficavam o refeitório e a cozinha e um enorme gramado que circundava tudo com um campo de futebol e uma rede de vôlei. Mais adiante, um pequeno bosque completava o lugar simples e agradável.

Aquele não seria um acampamento comum. Neste ano, o colégio receberia a visita de outras duas instituições católicas para a realização dos jogos de verão, tradição de mais de quarenta anos chamado pomposamente de Tríplice Coroa.

Os alunos se acomodariam em barracas de vinte lugares gentilmente cedidas pelo comando do batalhão do exército da cidade que sempre ajudava as freiras em tudo o que podia. Cada barraca seria vigiada por um professor que arriscaria a sanidade para conter duas dezenas de infernais adolescentes.

– Aonde você vai ficar, Liz? – Fabiana perguntou ao sair do ônibus.

– Numa daquelas barracas com bandeira vermelha. As barracas com bandeiras azuis são as dos meninos – explicou a loirinha segurando a mochila com uma das mãos e apertando o colchonete com o outro braço. – É uma bagunça a noite inteira. A professora encarregada da barraca quase vai à loucura – riu.

– Deve ser muito legal – Fabi comentou com um pouco de desapontamento.

Liz colocou a mão no ombro da melhor amiga.

– Ei, você está aqui, não está?

Fabiana olhou para aquele tumulto todo e respondeu:

– É. – abriu um sorriso maravilhoso para Liz que sentiu o ártico soprar-lhe no estômago. – Eu estou mesmo aqui, não é, Liz? E graças a você. Sempre graças a você. – Fabi disse e abraçou forte a pequena amiga.

– Tá, tá, Fabiana – Liz falou depressa afastando a amiga antes que suas pernas virassem geleia.

– Tente parar de me esmagar e vamos nos acomodar.

Contudo, o Destino é uma entidade definitivamente muito irônica.

Logo depois da chegada, o belo dia de sol deu lugar a uma tempestade de verão digna de cinema catástrofe norte-americano. As barracas esvoaçavam ao sabor da ventania ensandecida e as pessoas se refugiaram no galpão onde a chuva levada pelo vento ainda conseguia açoitar as pernas dos mais próximos. Depois, despencou um aguaceiro ainda mais denso, embora sem o vento de antes. Por fim, a chuva dissipou-se da mesma forma que havia chegado e um sol de cegar apareceu como se nada tivesse acontecido.

As pessoas saíram para o gramado e se depararam com as consequências da intempérie. Galhos quebrados por toda parte, uma árvore caída perto do bosque. Alguns galões de metal que serviam de lixeira tombaram e espalharam lixo por todo lado, um deles rolara para a represa e boiava perto da margem. Felizmente, as barracas aguentaram bravamente, pois as amarras ainda soltas fizeram com que a lona se erguesse e permitisse ao vento passar por elas levantando-as como bandeiras, mas com as estacas firmes no chão. Como não tiveram tempo de se instalar, a maioria dos pertences dos alunos estavam ainda nos ônibus ou em mãos, de modo que quase nada se molhou expressivamente. No mais, aquela fúria natural só serviu para deixar os meninos ainda mais excitados como sobreviventes de um pequeno caos natural. Algo para se contar o resto da vida. Todos correram a limpar e a organizar alegremente o local. Ainda tinham muitas horas de sol e tudo estaria seco até à noite.

Mas nem tudo passou incólume pela chuva. A ventania arrancou parte do telhado da casa das freiras e molhou impiedosamente um dos quartos, deixando colchões e cobertores completamente encharcados e estes precisariam mais do que uma tarde para se secarem totalmente.

Após alguns minutos observando os estragos e dando ordens diversas, Irmã Maria se aproximou de Liz e Fabiana que ajudavam a limpar o chão do refeitório.

– Temos um problema. Estamos sem colchões e cobertores na casa. A maior parte está completamente molhada e não deve secar antes de amanhã. As irmãs se ajeitarão na sala e no quarto remanescente, mas estou com dificuldade em acomodá-la, Fabiana. E você sabe que nas barracas, junto com todo mundo, a sua mãe jamais permitiria.

A morena sentiu o estômago embrulhar imaginando que o melhor passeio que já fizera em toda a sua vida estava por terminar. Mas, a Fortuna estava disposta a ser benevolente com a jovem Fabiana. O professor de Educação Física que passava por perto falou para a freira.

– Eu trouxe uma barraca e um colchonete sobressalentes, se você necessitar, Irmã.

Mais do que depressa, a sagaz loirinha se adiantou:

– Eu e Fabiana podemos dormir na barraca do professor, Irmã Maria.

– Eu prometi à D. Eulália que Fabiana dormiria na casa junto com as freiras, Liz – a religiosa ponderou.

– É, mas ninguém poderia supor um temporal desses. Um dos quartos está sem teto e as irmãs já terão que se apertar nos cômodos que restaram e dividirem os poucos cobertores secos.

– Minha sugestão é a de que armemos a barraca do professor na área de frente à casa. Assim, tecnicamente, a Fabi irá dormir na casa.

A freira pensou por uns instantes. Olhos jovens e súplices a fitavam, esperançosos.

– Está bem.

As meninas sorriram abertamente e só não gritaram de alegria por medo de que uma efusão excessiva pudesse fazer a Irmã Maria mudar de ideia.

– Temo não ter uma coberta seca para você, Fabiana.

– Eu e a Fabi podemos dividir o meu cobertor por hoje, irmã – Liz ofereceu de pronto.

– Está certo. Mas, vistam agasalhos e meias para dormir. As noites por aqui podem ser muito frias, meninas. Não quero ninguém voltando para casa com um belo resfriado.

– Sim, senhora – as meninas responderam em uníssono.

– Se bem que… – Liz comentou com um sorriso maroto.

Fabiana e a freira a olharam, indagadoras.

– Se bem que… – Liz continuou. – Acho que vou colocar duas meias, irmã. Afinal, eu já sei que a “pequeeena” compleição física da Fabiana vai ocupar 90% do cobertor mesmo.

– Ora sua…! – Fabiana segurou o impropério diante da freira. Liz não se intimidou e emendou:

– Mas pode deixar, Irmã Maria. Não vou me furtar ao meu dever cristão de amparar uma sem teto involuntária.

– Como se você precisasse de mais do que meio metro de pano para se cobrir.

– Pelo menos minhas cobertas não se parecem com cortinas barrocas.

– Não mesmo. São guardanapos!

Liz já ia encadear uma resposta à altura quando Irmã Maria pôs fim às fingidas indignações.

– Meninas, chega! Voltem aos seus afazeres. Ainda preciso organizar um lanche, que terá de fazer as vezes de um almoço, minimamente decente. Vamos! Mãos à obra.

As horas passaram céleres na reorganização do acampamento. As pessoas trabalharam duro e ao final da tarde tudo estava recomposto. Os rostos felizes denunciavam a alegria de ver algo erguido pelo esforço conjunto.

De noitinha, Liz e Fabiana terminaram de arrumar a barraca, tomaram banho e se conduziram ao balcão para o jantar. Desnecessário dizer o tamanho do alarido dentro do refeitório. Para a felicidade de uma centena de adolescentes animados, os adultos permitiram a balbúrdia até certo ponto. Por fim, a Irmã Maria pôs fim à algazarra quando um bolinho de carne atravessou meio salão e quase acertou a Irmã Clara. Mandou os meninos organizarem o refeitório e se dirigirem para as respectivas barracas. Mas, antes de baterem em retirada, Liz ainda puxou umas duas músicas e azucrinou alguns colegas com brincadeiras espirituosas arrancando risadas de todos. Á caminho da barraca, Fabiana olhou para a pequena amiga tentando descobrir qual o segredo de tanta facilidade em se comunicar. Liz não fazia a menor força para ser ouvida. A loirinha caminhava com um sorriso na boca e o cabelo longo e solto balançava ao ritmo dos seus passos. Fabi sentiu uma vontade urgente de tocá-la e sem saber exatamente o que fazer, deu-lhe um peteleco na cabeça.

– O que é isso, Fabiana?

– Eu me lembrei do seu comentário para a Irmã Maria. Você não consegue mesmo se manter calada, né, sua matraca?

Liz sorriu e falou com um ar condescendente:

– As verdades devem ser ditas.

– Verdades?

– É a sina dos filósofos.

– Agora você é uma filósofa. Pois escute uma coisa, oh! encarnação loira de Platão, algum dia alguém vai filosofar um direto bem no meio da sua cara desaforada.

– Violência, violência. A arma dos incultos.

– Olha só quem fala! Você se esqueceu de que eu já vi você derrubar gente com o dobro do seu tamanho e do seu peso?

– Legítima defesa, cara Fabiana. Eu ainda prefiro o duelo de ideias – a loirinha falou colocando o indicador na têmpora.

– É… você é boa nisso também.

Liz elevou os ombros com uma fingida cara de enfado, abriu o zíper da barraca e se agachou para entrar. Olhos azuis brilharam de antecipação do divertimento.

– Mas ainda se veste na sessão infantil! – Fabiana bradou dando um empurrão em Liz que caiu dentro da barraca como um saco de batatas junto com uma gargalhada da morena. – Agora, a vingança dos titãs.

– Ai, Deus! Isto está mais para “Hulk esmaga” – gritou Liz antes de receber 1,80m de garota em cima de si.

Começaram uma luta de chão entre risadas abafadas e grunhidos de esforço, mas novamente Irmã Maria acabou com a contenda.

– Quietas ou eu irei pessoalmente fazê-las dormir.

As meninas pararam na hora a algazarra, mas os risinhos baixos e pequenas provocações prosseguiram ainda por alguns minutos. Uniram os colchões e estenderam o único cobertor. Não colocaram agasalhos. Ambas concordaram que não estava tão frio assim. Conversaram ainda alguns minutos e adormeceram.

1993

– O que é que existe entre vocês?

– Nada. Você ficou louca, Taís. De onde você tirou isso? – Liz exclamou, nervosa, virando novamente as costas para a namorada e olhando o mar pela janela.

– De você, Liz. Do comportamento estranho da Fabiana também, mas principalmente de você. Veja bem, eu não estou perguntando isso só por mim, mas pelo meu irmão também que é simplesmente louco pela namorada. Responda!

– Nós não… – Liz achou melhor voltar-se para a namorada que a fitava com os olhos francos e expectantes. – Nós não temos nada, Taís, a não ser uma grande amizade. E antes que você conteste, sim, eu sou apaixonada por ela desde a adolescência. Mas, Fabi nunca correspondeu a este amor. Não como eu gostaria.

– Eu sabia.

– Não. Você não sabe de nada, Taís. Desculpe, mas não sabe. Eu não tenho ilusões quanto à Fabiana corresponder aos meus sentimentos. Nem sei se realmente tive algum dia. Todo este clima que você percebeu é fruto de uma conversa difícil e esclarecedora que tivemos na noite do reveillon.

– Eu estou me sentindo uma idiota – Taís falou sentando-se na cama.

– Não se sinta, você não tem nada a ver com isso.

– Como não tenho, Liz?

– Ou melhor, não tinha.

– Ah, não tinha? E agora tenho? – Taís perguntou com ironia.

– Taís…a carga desse amor adolescente, que só me machuca e atrapalha, eu carreguei sozinha durante anos e só muito recentemente eu sinto o desejo de suprimir este entrave da minha vida. Sabe o porquê?

– Taís ficou calada.

– Por sua causa. Por nossa causa.

Liz falou num sussurro:

– Isso se você ainda me quiser…

– Se eu quero você? É claro que eu quero. Eu amo você. Mas, eu não vou lutar contra um ícone juvenil se você não quiser fazer o mesmo. Se você não escolher o mesmo.

– Eu quero, Taís, e escolho a nós com toda sinceridade do meu coração.

Taís respirou fundo, olhou para Liz como se quisesse enxergar-lhe o mais íntimo sentimento e se levantou batendo os braços na lateral das pernas.

– Muito bem, então está resolvido. Vamos morar juntas o mais rápido possível. Podemos combinar tudo nas nossas tão esperadas férias que começam amanhã. Tudo bem?

– Liz assentiu com um sorriso fraco. Taís a abraçou novamente e afagou-lhe os cabelos. Liz deitou a cabeça nos ombros da namorada e fechou os olhos.

– Liz, nós vamos construir a nossa vida sobre alicerces, bem mais firmes, que um amor juvenil. Eu prometo. Agora me conte, que diabo de conversa foi esta que você teve com Fabiana que a tensão nesta casa é quase palpável?

– Eu vou te contar. Juro. Só me dê um tempinho, tá?

– Ainda dói, não é? – Taís perguntou como uma afirmação amarga, dividida entre a vontade de amparar a namorada e o ciúme que a fazia ter ganas de sacudi-la.

– Entenda algo, Taís. Não importa o quanto ainda me atinja qualquer coisa relacionada à Fabiana. Eu apenas quero que você saiba, que você é a minha namorada e a mulher por quem e, para quem eu desejo me sentir plena para amar.

– É tudo que eu preciso ouvir, Liz. Tudo o que eu preciso é do seu querer.

Envolvida pelo abraço da namorada, Liz se deu conta de que depois de muitos anos e de tudo o que acontecera na sua vida, Taís era a primeira pessoa com quem ela falara de seu amor por Fabiana. Ninguém jamais soubera a não ser os boxes de chuveiro nos quais chorara boa parte da sua vida. Agarrou-se em Taís com força e chorou um choro sentido e calmo, desses que de tão longos não tem a menor pressa.

 



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