Desde sempre

Capítulo 10

Capítulo 10 –

Final de 1987

Eu não vou poder ir.

Como não vai pode ir? Vai ser o máximo. Faz pelo menos uns mil anos que os três colégios não se unem em um único acampamento de final de ano. É o evento do século!

Eu sei que vai ser legal, Liz, e também sei que não poderei ir.

Conversa! Eu me lembro de que você teve caxumba no ano passado. Mero azar…

E no ano anterior? – Fabiana perguntou com algum divertimento.

Ué… – Liz falou pensativa. – Você também não foi…

Deixa eu te dar uma dica: eu nunca tive caxumba.

Mas isso não é possível, Fab… Opa! É perfeitamente possível, sim. A sua mãe…

Pois, é. Minha mãe nunca me deixou ir ao acampamento. Três dias sozinha é tempo demais longe da vigilância dela.

Ai, meu São Cipriano, eu tinha esperança de que a marcação cerrada tivesse diminuído.

Liz se referia ao fato da mãe de Fabiana não mais implicar com as atividades esportivas da filha. Tudo graças ao novo padre alemão cujas ideias sobre saúde espiritual passava por uma boa saúde corporal que não dispensava os cuidados higiênicos de uma prática esportiva adequada. Está bem que nem a postura pró-esporte do padre fez D. Eulália julgar adequados o arremesso de peso e o lançamento de dardo para uma mocinha, mas, se a escola perdeu uma excelente atleta de campo no atletismo, ganhou uma jogadora nos esportes coletivos completamente relaxada do medo contínuo de ser descoberta.

Poxa, Liz, uma coisa é a minha mãe achar que um pouco de esporte pode ser benéfico à educação de uma jovem senhorita, outra coisa é me deixar dormir fora por duas noites.

Caramba, Fabi, eu nunca conheci uma pessoa tão cabeça dura quanto a sua mãe.

Fabiana apenas suspirou e acenou com a cabeça em conformidade.

A não ser… – Liz sorriu daquele jeito maquiavélico.

A não ser? – a morena perguntou já um pouco ansiosa com aquele sorriso que ela conhecia bem.

A não ser a Irmã Maria.

A Irmã Maria?!

Minha cara Fabiana, só existe uma coisa maior que a tenacidade da Irmã Maria.

O que?

Deveras simples, meu caro e inocente “Watson”¹: a competitividade. Lembra de como ela fica quando estamos jogando?

Ô, se me lembro. Ela grita mais alto que o ginásio inteiro.

Exatamente! Então… Pode deixar tudo comigo.

O que você vai fazer? – Fabi perguntou com uma réstia de esperança bem no fundo do coração.

Te levar para o acampamento, oras.

Como? Você sabia que me dá um certo medo quando você fala com essa convicção de “já está feito” mesmo antes de tudo acontecer?

Bobagem! Eu confio em minhas invulgares capacidades e prometo que jamais usarei os meus poderes para o mal. Está bem assim?

Liz!

Relaxa.

Como? Eu fico mais tensa que o Cascão frente aos planos infalíveis do Cebolinha².

Com uma pequena diferença, Fabi: os meus planos dão certo.

**********

No último jogo do campeonato estudantil contra o Externato São José – uma partida de vôlei especialmente difícil, na qual a Irmã Maria quase perdeu a voz e a compostura no set decisivo – Liz deixou escapar logo após a euforia da vitória que havia escutado sem querer a Irmã Ana do São José dizer que a vitória mais significativa do ano não era aquela, e sim o troféu da tríplice coroa de vencedor dos jogos programados para o acampamento conjunto entre os colégios católicos da cidade. Este, incontestavelmente, um troféu de tradição.

O troféu?

É, Irmã, o troféu. Aquele mesmo que não enfeita a sala de troféus do colégio há cinco anos. Mas, não se preocupe, Irmã Maria, nós vamos recuperá-lo. Temos times melhores em diversos esportes. Bom…quero dizer, se tivermos Fabiana, é claro. Bobagem minha, obviamente.

Fabiana vai estar no acampamento, não é mesmo?

Irmã Maria olhou com os olhos esbugalhados para a loirinha que se despediu com um sorriso cândido.

**********

Fabiana levou um susto quando abriu a porta da casa e se deparou com a Irmã Maria hirta como um poste perguntando polidamente por D. Eulália. Fabi fez entrar a freira e foi chamar a mãe, mas, infelizmente só conseguiu ouvir os cumprimentos polidos de praxe. Em seguida, as mulheres mais velhas foram para o escritório e Fabi ficou sozinha com a sua curiosidade mortal. Meia hora mais tarde, Irmã Maria saiu do recinto, despediu-se rapidamente de Fabiana e foi embora. A menina voltou-se para a mãe quase roendo as unhas de apreensão, mas D. Eulália nada falou de imediato. As novas vieram à hora do jantar.

Fabiana?

Sim? – a menina olhou para a mãe tentando aparentar serenidade.

Irmã Maria veio falar do acampamento de fim de ano.

Atenção e mudez.

Você vai.

Fabiana puxou o ar como num susto, mas disfarçou imediatamente e fitou a mãe com a maior fleuma que conseguiu. D. Eulália continuou:

Com uma condição. Você vai dormir no dormitório com as freiras e se você fizer qualquer coisa minimamente inadequada eu serei informada imediatamente e seu passeio cancelado. Estamos entendidas?

Silêncio e estupefação.

Estamos entendidas, Fabiana?

Cla-claro, mãe.

O resto do jantar correu lento para a ansiedade de Fabiana. Quando terminou, Fabi seguiu o mais rápido que pode para o quarto desejando ardentemente falar com Liz, mas ela não tinha telefone. A novidade teria que esperar até o dia seguinte. A morena fechou a porta do quarto atrás de si e relembrou mais uma vez as palavras da mãe. Um sorriso enorme começou a se desenhar em sua boca e antes que explodisse, correu para a cama e enterrou o rosto no travesseiro soltando o grito de alegria que lhe estava preso na garganta. Abraçou o travesseiro de lado sob a cabeça e olhou para a janela aberta. Nunca a brisa tépida do fim de primavera lhe parecera tão agradável. Em seguida, olhou para o teto e pensou que Liz deveria ter algum poder mágico recôndito. Era realmente uma incógnita como ela conseguia fazer as coisas acontecerem.

Absolutamente incrível. Liz era incrível.

1993

O primeiro dia do ano de 1993 amanheceu com uma chuva fina e insistente. Todos na casa levantaram tarde e meio contaminados pela manhã tristonha. Trocaram bons dias sonolentos e pouco loquazes. Liz e Taís tomaram café na cozinha, caladas. O certo é que após o episódio com Fabiana na praia, Liz ficara apenas mais uma hora na festa após a passagem do ano e pretextando uma dor de cabeça insuportável, despediu-se da namorada intrigada e um pouco chateada com aquela repentina mudança de humor. Mas é que, para Liz, a festa havia esvaziado de graça e sentido.

A manhã surgiu como a alma de Fabiana – escura e chorosa. A morena abriu a janela, reparou no céu cinzento e pensou que o firmamento era hoje a sua mais perfeita tradução. Não se lembrava muito bem do que acontecera depois da conversa na praia. Sabia que voltara para a festa e bebera uma taça de vinho por minuto até que Caio, preocupado, a levara sutilmente para o quarto para conversar.

A conversa não aconteceu.

Fabiana pediu para se deitar um pouco e quando o jovem médico a colocou na cama, a morena dormiu quase que instantaneamente. Caio apenas retirou-lhe os calçados, ajeitou-lhe o travesseiro e a coberta e a beijou com carinho. Fechou a porta do quarto pensando no que estaria acontecendo com a namorada nos últimos dias que a estava deixando tão perturbada.

Eu estou ótima, Taís! – Liz exclamou um pouco inquieta.

Liz, você ficou estranha de repente ontem à noite e se levantou esta manhã como uma canção de Maysa – melancólica e dolente.

Opa, cuidado, não ouse criticar a Maysa.

Eu não disse que você acordou menos bela ou interessante, apenas um tanto…jururu.

Liz sorriu carinhosamente.

Eu sei, meu bem. Não é nada. Apenas uma indisposição.

Comigo? – Taís perguntou abraçando a namorada pela cintura e dando-lhe um beijo rápido nos lábios.

Nunca. Eu já não sei se sobreviveria sem sua lucidez e calma cheias de delicadeza ou do seu humor tão preciso e agradável.

Então, não viva. Venha morar comigo.

Opa! Isso é um pedido? – Liz tentou brincar.

Acho que está mais para uma simples constatação: a gente se dá bem, nossos sentimentos me parecem verdadeiros e mútuos, você passa mais tempo em minha casa do que na sua, e…bom…eu realmente sou louca por você. É, talvez seja um pedido, sim. Um pedido de início de ano. O que acha?

É complicado – Liz tentou desconversar.

Taís soltou-a do abraço e a olhou com firmeza. Liz virou o rosto para a janela e explicou:

Eu e Fabi moramos juntas há apenas um ano. Nós…Ela lutou muito por esta conquista junto a uma mãe que você nem queira saber o quanto é manipuladora e insuportável e que fez de tudo para que Fabiana não vivesse com a amiga que ela considera, na melhor das hipóteses, uma péssima influência: eu!. Não é justo abandoná-la agora.

Ora, Liz. Pelo jeito que as coisas vão, eu duvido que a sua amiga fique mais um ano solteira. Meu irmão está mais do que amarrado. Ela também me parece bem disposta a um compromisso. Pelo que eu sei, até a mãe dela, que você disse que é insuportável, parece aprovar a relação. Logo…

De fato, Liz se lembrava, Fabiana havia levado Caio à casa da mãe ainda no meio do ano. Muito mais pela insistência do namorado do que pelo eterno receio da morena para com a mãe.

Contudo, apesar da prevenção perene de D. Eulália, a estirpe irretocável e a carreira promissora de Caio não a desagradaram. Assim, o romance foi devidamente aprovado. Fabiana voltou feliz e aliviada e Liz, mesmo estando muito bem com Taís, não pode evitar que um ciúme sorrateiro lhe invadisse o estômago quando Fabi lhe contou dos bons auspícios da visita.

Eu sei, Taís. Mas, ainda assim, eu não vou fazer isso com a Fabiana.

Eu não entendo! – Taís falou mais alto que o normal elevando os braços em impotência. – Parece que só você que não nota que esta menin…que Fabiana está te tratando com uma irritação mal disfarçada há um bom tempo.

Não é bem assim.

Quase com impaciência!

Não é nada disso. Você não a conhece.

Poxa, Liz. Eu sei que ela é uma gracinha e, tudo bem!, tem toda a história da amizade de vocês e blá, blá, blá, mas será que esta convivência está dando mesmo certo?

Eu…olha, Tá, não é que eu não queira morar com você, mas é que…é que eu não posso.

Não pode ou não quer?

Silêncio.

Fala comigo, Liz. Você parece grudada nessa menina. Uma siamesa espiritual, sei lá, uma dependente química. Você acha que eu não percebi que você ficou estranha depois que voltou da praia ontem à noite? Eu vi que a Fabiana foi atrás de você e…

Taís parou de falar e fitou a namorada como se tivesse pensado em algo pela primeira vez na vida. Liz sentiu o ventre gelar. Taís falou devagar.

Fabiana também ficou esquisita e foi dormir quase dopada. Vocês mal se falaram agora pela manhã. Coisa estranha para duas melhores amigas. Liz…qual a natureza da relação de vocês?

O que? Ora, todo mundo sabe, Fabiana é…

É o que, Liz?

Os olhos verdes se encheram de lágrimas como se já estivessem cansados de reprimi-las. Taís abriu a boca em descrédito.

Meu Deus!

Taís, eu…

Você a ama.

É claro que eu a amo. Ela é a minha melhor…

Não! VOCÊ A AMA.

 



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