DAKOTA

8. UMA GAROTA CHAMADA LARA

— O que está acontecendo com a madrinha? — Nando perguntou para Alice.

Ela afastou o olhar dos homens debruçados sobre o maquinário da usina, para fitar Dona Rosana, que andava pelo local com a expressão mais desolada que já visitou seu semblante. Ela conversava com Jaime, que limitava-se a balançar a cabeça sempre que era interpelado.

— Eu não sei.

Nando seguiu seu olhar, pensativo. Insistiu:

— Jaime e Matilde também andam esquisitos, desde que voltaram da missa ontem.

Por mais humilde que fosse a residência do capataz, Nando sempre preferiu passar seu tempo lá, em companhia de Matilde. A mulher o tratava como um filho, mimando-o de todas as maneiras possíveis, e ele retribuía o carinho, pois a enxergava dessa forma.

— Não tenho ideia do que houve e, sinceramente, não estou interessada.

O rapaz trouxe o olhar de volta para a irmã. Ele gostava de se manter distante das confusões entre Dona Rosana e Alice, porém, nem sempre podia ignorá-las.

— Vocês brigaram de novo? — perguntou.

Juntos, ele e Alice assistiram a madrinha e o capataz deixarem o local. A irmã não respondeu. Em vez disso, se voltou para os técnicos e avisou que os deixaria à vontade para trabalhar, além de indicar o que fazer, caso necessitassem de algo.

— O que foi dessa vez? Dinheiro? — Nando quis saber, acompanhando ela pela estradinha que levava de volta à casa principal da fazenda e passava por dentro da vila, onde moravam os poucos funcionários. — É sempre por causa de dinheiro, né? Você já devia ter desistido disso aqui, Alice. Vai acabar torrando o pouco dinheiro que o nosso pai te deixou.

— E você, por outro lado, está multiplicando a sua herança na farra todas as noites, certo? — ela levou a mão à cabeça e ajustou a aba do boné surrado.

Ele não sentia vergonha de se divertir. E a verdade era que Alice não costumava importuná-lo com isso. O dinheiro era seu, que gastasse como quisesse. Contudo, ela tinha objetivos muito específicos e estava sempre disposta ao embate com quem se dispunha a criticá-la.

— Eu amo este lugar, Nando. O mínimo que posso fazer é lutar para manter o que amo. Quanto à madrinha, sabe bem que nem todas as nossas brigas são sobre dinheiro e a fazenda. 

Quase sem perceber, tirou o celular do bolso e olhou o aplicativo de mensagens. Isadora continuava ignorando suas tentativas de diálogo. Voltou a colocá-lo no bolso. Mesmo tendo dito para Dakota que iria tentar dar o espaço que a ex-namorada precisava, a ideia de deixar as coisas entre elas tão indefinidas e estranhas estava lhe incomodando demais.

— E o que foi dessa vez? — Nando reparou na apatia que tomou seu semblante.

— Se você passasse mais tempo em casa em vez de, sabe Deus onde, já teria percebido que Isadora me largou e que a madrinha está puta comigo por isso.

A boca dele se contraiu em um sorriso involuntário, o sol refletindo nas gotículas de suor em seu bigode ralo. Passou a mão no tufo de pêlos do queixo quadrado.

— Sério?

— Pareço estar brincando?

Ele enfiou as mãos nos bolsos da calça larga, que parecia ter sido feita para alguém três vezes maior. Sorriu ironicamente.

— Até que enfim! — disse.

— Como é que é?

— Desculpa, Alice, mas estou feliz por isso. Somos irmãos e eu te amo, mas você não é mulher para Isadora.

Ela reprimiu uma careta de desagrado.

— E você acha que eu não sei disso? — suspirou, olhando mais uma vez para o celular. — Cometi um erro quando propus morarmos juntas, mas se isso tiver algum valor, eu realmente achei que daria certo entre nós.

Nando passou o braço sobre os ombros dela, com aquele jeitinho malandro deformando seu riso.

— Acho que você só dará certo com uma mulher que goste do conceito de relacionamento aberto. Até lá, tenta ficar solteira, Alice. Evite causar mais sofrimento alheio.

A irmã pensou em retrucar, mas acabou concordando em silêncio. Depois, resolveu brincar:

— Não fique tão feliz porque terminamos. Sei que você tem uma quedinha por Isadora, mas o lance dela sempre foi e será mulher. Você nunca terá uma chance!

— Nossa, que maldade! — ele soou afetado. — É por isso que você nunca daria certo com Isadora. Ela é boa demais pra você. Na verdade, ela é boa demais para qualquer um neste lugar. E o que sinto por ela é muito carinho, admiração e respeito.

Alice fez uma careta, expulsando o ar pela boca com força, o que gerou um barulho engraçado.

— E só para deixar claro, ao contrário de você, irmãzinha, eu consigo olhar para uma mulher e fazer amizade com ela sem a intenção de transar.

— Está me ofendendo — Alice acotovelou as costelas dele, que achou por bem colocar uma distância segura entre seus corpos, ao passo que ria solto.

— Ai, a verdade realmente dói! — esfregou o local atingido, enquanto a fazia desviar o caminho e ir em direção à casa de Jaime e Matilde. Ainda estavam distantes, mas o cheiro do bolo de fubá recém saído do forno atiçou o apetite dos dois. — Para mim, é como se Isadora fosse outra irmã. Vou sentir falta dela, mas espero que possamos manter contato.

— Nos separamos, seu bobo. Ela não morreu, nem vai mudar de país.

— Mas pode querer mudar de cidade — retrucou ele, obrigando-a a diminuir o passo.

— Como assim?

— Ah, ela me disse uma vez que só ficou em Cascabulho por sua causa — chutou uma pedrinha, o olhar baixo para fugir do sol forte.

Alice passou a mão no rosto, estalando os lábios com o característico sentimento de culpa fazendo festa em seu peito.

— Eu não fazia ideia…

— Não se ofenda, mana, mas você é bem egoísta. Na maior parte do tempo, só quer saber do próprio umbigo. Isadora deixou de morar perto da família e ter um trabalho melhor para ficar contigo. E você agradeceu esse sacrifício colocando um belo par de chifres nela. Eu realmente estou feliz por ela ter largado você. Isa merece mais que algumas migalhas de atenção.

A vergonha de Alice não tinha tamanho. Nando não era um exemplo de homem perfeito e fiel, mas estava cheio de razão ao criticá-la daquela maneira.

— E onde ela está? — ele quis saber um minuto depois. — Na casa da Roberta, aturando aquele marido chato dela? Ou de outra amiga?

Ele coçou a cabeça, de repente percebendo que Isadora não tinha muitos amigos a quem recorrer naquele momento. Roberta era a mais íntima, porém, havia se casado com um completo misógino e egocêntrico. Depois do casamento, ela e Isadora só se encontravam no trabalho, pois ele não gostava da amiga “sapatão” da esposa.

— Não — Alice falou. — Ela está ficando na casa da Dakota. Já tem uns dias.

Através da janela aberta, Matilde percebeu a aproximação dos dois. A mulher sorriu para eles e, pela movimentação, começou a preparar a mesa para receber as visitas.

— A nova dona do bar do Tonho? — ele perdeu completamente o ar relaxado. — Isso é loucura, Alice! Essa mulher andou colocando um alvo nas costas.

— Nem me fale!— narrou superficialmente a invasão que aconteceu na casa de Dakota e notou o transtorno no semblante do irmão.

— Temos que tirar Isadora de lá! — falou ele, quando entraram em casa.

Matilde os recebeu com beijos estalados nas bochechas de cada um, e os dois sentaram à mesa. Naquela casa, não eram os patrões, apenas “crianças” queridas e amadas.

— O que aconteceu? — Matilde perguntou, despejando café em uma xícara.

Nando contou, enquanto cortava uma fatia do bolo no centro da mesa. Porém, tinha perdido o apetite.

— Entendo. Vimos Isadora ontem, na cidade — a senhora revelou. — Parecia triste, mas bem.

Sua atenção se prendeu em Alice, que fingiu se concentrar no seu café enquanto se perguntava quanto tempo duraria aqueles olhares acusatórios. Ainda que Matilde, claramente, não tivesse a intenção de acusá-la ou repreendê-la, seu olhar decepcionado dizia muito.

— Relacionamentos vêm e vão, meu menino. Se não deu certo entre sua irmã e ela, vida que segue. Não precisa se preocupar tanto, Isadora já é adulta, logo supera.

Ela tomou um grande gole de café e Nando se explicou, falando sobre seu temor pela integridade física da ex-cunhada.

— Ah, sim… Também ouvimos essa história. Mariano quase salivava quando nos contou. Tenho certeza que andou exagerando, aquele velho fofoqueiro — ela riu baixinho, colocando mais café na xícara.

Alice se reservou o direito de ficar calada sobre o assunto, pois não estava a fim de repetir a história que havia acabado de contar ao irmão. Principalmente, porque Matilde não iria se contentar com detalhes superficiais e faria questão de saber o que o velho Mariano tirou ou aumentou na história.

— Estou preocupado que essa confusão toda possa respingar em Isadora, Tia. Você tem que fazer alguma coisa, Alice.

— Eu? Como, se ela nem atende minhas ligações?

— Você empurrou Isadora para essa situação, nada mais justo do que ir tirá-la dela.

Tanto Alice quanto Matilde, estranharam a atitude dele. Nando não costumava ser tão contundente.

— Nando, eu amo Isadora. Não do jeito que ela gostaria e merece. E é claro que me preocupo, mas ela fez sua escolha. Eu tentei trazê-la de volta para cá, mas ela estava e continua tão magoada, que prefere ficar na incerteza da companhia de alguém que mal conhece do que passar mais um tempo ao meu lado.

— Então, é isso? — perguntou, inconformado.

— Sim, é isso — abriu os braços, exasperada. — Olha, Dakota não é a pessoa mais simpática do mundo, mas sabe ser bastante gentil e atenciosa. Garanto que, se Isadora estivesse se sentindo insegura com ela, já teria saído da sua casa.

— Esse não é o ponto, Alice.

— Sei bem que não é. Mas como disse, é a escolha de Isadora. E, para ser sincera, do pouco que conheço Dakota, ela não teria oferecido um quarto para Isa, se houvesse a possibilidade de ter a casa invadida outra vez.

Nando balançou a cabeça, insatisfeito.

— Que tal dizer isso para as pessoas com as quais ela anda se indispondo, como o velho Silvestre?

Alice mordiscou o lábio, sentindo a angústia crescer em seu íntimo.

— Se é com ele que está preocupado, então pode sossegar — Matilde pousou a xícara vazia na mesa. — Aquele bode velho não vai retaliar o que foi feito com o filho dele. Não por aquela mulher! Dakota! Que nome mais estranho essa menina foi arranjar!

Ficou de pé, levando a xícara para a pia.

— E como ficou diferente, também — lavou a xícara, falando mais consigo mesma do que com o casal de irmãos. — É a vida, não é? As pessoas mudam. A aparência muda, a personalidade também.

— Do que você está falando, Tia? Aquele velho sacana, não perdoa ninguém.

— Silvestre Rocha gosta de ladrar e morder também, mas não vai se meter com aquela menina. — Garantiu Matilde. E balançou a cabeça, com um misto de satisfação e descrença. — Ainda estou achando difícil associar aquela mulher irritada e tatuada, com a moça tímida que ajudei a vir pra esse mundo.

Passava um pano de prato na xícara, enxugando-a, enquanto falava com saudosismo.

— Ela costumava sentar, bem aí — apontou com o queixo para a cadeira que Nando ocupava — e conversar a tarde inteira com Estela, Tonho e Amanda.

Sorriu devagar, entregue às lembranças sobre as quais falava.

— Eles estavam sempre por aqui. Não sei que graça achavam nessa casinha humilde, mas faziam a alegria desta velha, sabem?

De repente, seu sorriso morreu.

— E aí as coisas mudaram. Estela casou com aquele traste e acabou morrendo nas mãos dele. A alegria sumiu deste lugar.

— Não estamos entendendo, Matilde — Alice franziu o cenho.

A mulher mais velha sorriu de novo, agora triste.

— Desculpem, estava divagando. Você era novinha, com certeza não lembra muito dela. E Nando era apenas um bebê.

— Dela? É de Dakota que está falando?

— Sim. Que nome mais esquisito essa menina foi arranjar! — repetiu, os olhos se fixando na madeira da mesa. — Ela ficou tão zangada quando Estela morreu. Tonho ficou arrasado, mas ela… Tudo pareceu ser mais intenso para ela. Era como se tivessem arrancado seu coração. — Suspirou, dando um pequeno nó na ponta do pano de prato. — Ela não conseguia aceitar o que aconteceu com Estela. Acho que se sentia culpada, embora não tivesse culpa alguma. Acabou ficando cega pelo desejo de vingança e parece que isso ainda não mudou.

Alice não estava gostando do rumo que a conversa tomava, nem da ideia que se formava em sua mente a respeito de Dakota. 

— Na noite em que ela e Tonho deixaram a Mimosa, ela disse para Dona Rosana e para mim, que só voltaria a colocar os pés em Cascabulho quando Jonas Rocha estivesse morto. Tonho voltou alguns anos depois, mas nunca disse nada sobre o paradeiro dela. Mesmo Dona Rosana implorando por notícias de todas as formas possíveis.

— Ah, caralho! — Nando soltou, compreendendo tudo.

Normalmente, Alice o repreenderia pelo palavrão, mas também estava mergulhada naquele turbilhão de pensamentos insanos sobre Dakota, Dona Rosana, Tonho, Estela, Silvestre Rocha, a Mimosa e uma garota chamada… Lara.

***

— Isso é um colchão inflável?

Isadora confirmou com um inclinar de cabeça, jogou os pacotes no banco traseiro e se acomodou ao lado dela.

— É tudo o que preciso — garantiu, fitando as sacolas com alguns lençóis e ítens de higiene pessoal.

— Pensei que fosse comprar móveis para sua casa nova, não sabia que era adepta do minimalismo — Dakota girou a chave na ignição, colocando a picape em movimento um instante depois.

Houve um longo momento de silêncio, enquanto Isadora a observava. Depois da conversa, no dia anterior, Dakota se fechou ao ponto de fazê-la se sentir desconfortável e passar metade da noite pensando na história que lhe contou.

Em parte, era difícil acreditar que Dona Rosana tivesse sido tão insensível e cruel. Por outro lado, havia a satisfação de saber que o homem que foi capaz de um ato tão hediondo pagou pelo seu crime. Não que Isadora fosse adepta do “olho por olho”, mas acreditava em justiça e compreendia que, nem sempre, ela poderia ser executada pelas autoridades, visto que o ser humano era corruptível. Ainda mais, diante da fortuna que a família Rocha possuía. Para ela, em alguns casos, a justiça não significava a aplicação de leis e prisão para os infratores.

Devia estar assustada por dormir sob o mesmo teto que uma mulher que lhe confessou assassinato tão friamente. Entretanto, ao contrário de suas primeiras impressões, não conseguia mais temer Dakota. Pelo menos, não como um risco à sua vida. Agora, a entendia um pouco melhor. Por debaixo daquela capa de ironias e confiança excessiva, havia uma mulher muito passional.

Queria saber mais sobre ela e conhecer os detalhes da história que contou, mas decidiu não insistir. Ao menos, naquela noite. Mesmo assim, acabou fazendo algo que não era do seu feitio ao fuçar as coisas de Dakota no escritório.

— Eu decidi ir embora de Cascabulho — falou, voltando os olhos para a rua pela qual passavam. Na carroceria da picape, caixas de bebidas tilintaram quando passaram por uma lombada.

Era fim de tarde e a noite se aproximava, tingindo o horizonte com um forte tom de laranja. O comércio diurno de Passo Doce encerrava suas atividades. Em contrapartida, os bares e restaurantes preparavam-se para abrir.

A cidade, que tinha quase dez vezes mais habitantes que Cascabulho, era privilegiada em muitos aspectos. Em parte, por possuir um campus universitário e estar rodeada de cidades pequenas, o que tornava o comércio local e a vida noturna bastante movimentados.

— Você é dona do seu nariz, mas acho bobagem abandonar sua vida em Cascabulho por causa de Alice — parou diante do sinal vermelho e aproveitou para conectar o bluetooth e abrir um aplicativo de música. A voz de Janis Joplin preencheu o ambiente, rivalizando com o forró que tocava em boteco na esquina.

— Eu só fiquei por causa dela, Dakota — revelou, e depois contou sobre a tia falecida, enquanto o carro voltava a se movimentar. — Agora, não tenho mais nada para me prender lá. No trabalho, tenho projetos que demandam minha atenção até o meio do ano. Depois disso, vou pedir exoneração do cargo.

Esperou que Dakota a criticasse, mas, em vez disso, ela perguntou:

— Você vai comprar mais alguma coisa ou podemos ir para a pousada?

A estrada estava em péssimas condições há anos, mas depois das fortes chuvas dos últimos dias, ficou pior. Havia vários locais em que a pista estava submersa ou tomada por pequenos deslizamentos, o que tornava muito perigoso retornar para Cascabulho à noite. Sendo assim, Isadora sugeriu que pernoitassem na cidade e Dakota aceitou a proposta.

— A pousada parece uma boa ideia — respondeu, um pouco decepcionada com o silêncio dela.

Algum tempo depois, já instaladas em um quarto duplo de uma pousada humilde em frente à lagoa no centro da cidade, Dakota pegou um refrigerante no frigobar e sentou à mesa junto da janela. Isadora optou por uma garrafa de água e se juntou à ela, observando os últimos raios de sol que tocavam as águas escuras da lagoa.

— Eu te ofendi de alguma forma, Lara? — Isadora decidiu ir direto ao assunto que a estava incomodando.

Dakota se concentrou no seu rosto, com um sorriso anasalado.

— Ninguém me chama assim há muito tempo, nem mesmo Tonho… — o olhar entristeceu e Isadora corou quando admitiu ter mexido na carteira dela na noite anterior.

— Desculpe, eu só precisava saber mais depois do que me contou.

— E agora que sabe?

— Sua atitude em relação à Dona Rosana faz mais sentido — ela abriu a garrafa, mas não a levou aos lábios. — Enfim, desde ontem à tarde, você mal falou comigo. Se antes fez questão de demonstrar que a minha presença não te incomodava, agora sinto isso a cada segundo.

A expressão de Dakota suavizou.

— Estar aqui me obriga a reviver lembranças de dias inocentes e felizes, onde o futuro era um sonho adorável. E, depois, vêm as memórias de dias muito sombrios. Não costumo perder o controle das minhas emoções, Isadora, mas encontrar Rosana ontem, discutir com ela, tornou essas lembranças mais vívidas. Sinto raiva, sinto mais ainda, tristeza. Penso em Estela e nos planos e sonhos que ela tinha, coisas que ela nunca vai fazer, lugares e pessoas que ela nunca vai conhecer… E então, tudo se volta para Tonho e Isabella.

— Eu sinto muito.

— Não queria te passar a ideia errada. E sendo muito sincera contigo, há tempos não tenho uma companhia tão agradável, mas precisava desse tempo com os meus pensamentos. — suspirou e fitou a mão que Isadora fez questão de enroscar na sua. Apertou-a suavemente.

Agora que tinham esclarecido isso, Isadora tomou um instante para relaxar. Soltou a mão dela.

— Caramba! Você não parece nada com a foto que está pendurada na sala de Dona Rosana. Às vezes, ela deixava escapar seu nome e Alice me contou algumas coisas sobre a madrinha ter brigado feio com a neta e isso ter causado um afastamento, mas admito que não prestei muita atenção. De todo modo, não me surpreende que ninguém tenha reconhecido você.

Novo sorriso desmanchou a seriedade de Dakota. Há muito tempo que ela não se via como neta de Rosana. A ideia de compartilharem o mesmo DNA chegava a lhe parecer ridícula. Recostou-se na cadeira, relaxada.

— Estou longe há mais de 20 anos e andei perdendo um pouco de peso — brincou.

— E não esqueça de que também perdeu muito cabelo — observou, arrancando outro sorriso dela. Isadora chegou à conclusão de que preferia vê-la assim, sorrindo.

— Só aderi aos cabelos curtos ano passado — escorregou a mão pelos fios negros. — Costumavam ser na altura dos ombros.

— Eles combinam com você, assim como as tatuagens. Embora deva admitir que eu não teria coragem de fazer tantas — finalmente, tomou um gole da água, ouvindo o riso de Dakota preencher o quarto com suavidade.

— Também pensava assim.

— E o que mudou?

— Sofri um acidente e as cicatrizes me incomodavam. Grazi sugeriu que fizesse uma tatuagem para cobrir. Admito que me empolguei depois disso.

Ela estendeu o braço sobre a mesa e Isadora voltou a tomar a liberdade de tocá-la, deslizando as pontas dos dedos por sua pele, contornando o desenho de um lobo. Isadora sequer percebeu o quanto estava apreciando fazer aquilo, até seus olhares se cruzarem e se obrigar a recolher a mão.

Para disfarçar seu desconforto, resolveu saciar a curiosidade:

— Então, você é a garota por quem Estela se apaixonou, não é?

Demorou um pouco para Dakota se livrar da sensação de decepção que a tomou quando ela se afastou. Estava começando a perceber que gostava da companhia de Isadora mais do que gostaria de admitir. E esse era um problema que não queria adicionar à sua vida.

— Eu gostaria de ter sido — pegou a latinha e tomou mais um gole do refrigerante. — Infelizmente, Estela só me via como amiga. De qualquer forma, o resultado dessa história teria sido o mesmo.

Enquanto Isadora pensava sobre o que disse, ela terminou o refrigerante e ficou de pé, anunciando que iria tomar um banho. Ela pegou a mochila, jogada em uma das camas e tirou roupas limpas, cuidadosamente dobradas em um separador plástico.

— Sabe, acabo de perceber que você é mais azarada que eu, no quesito amor — Isadora soltou de repente.

— Não sabia que existia uma competição entre nós — comentou, jocosa.

— É apenas uma observação. E, quer saber? Acho que você está precisando tomar um porre e eu também. O que acha?

— Uma péssima ideia — sorriu de lado. — Eu prometi para alguém que não iria beber e dirigir hoje. Não que eu seja dada a fazer isso, de todo modo.

— Fico muito satisfeita em saber que cumpre suas promessas e respeita as leis de trânsito. O Cabaré da Gilda não fica muito longe. Podemos ir a pé.

— Isadora, está pensando em se embriagar para não ouvir os meus roncos?

— Talvez! — entrou na brincadeira.

— É uma excelente ideia, farei o mesmo para fugir dos seus. Tive uma amostra grátis no outro dia, quando adormeceu no meu ombro.

— Ah, para! Eu não ronco — tomou um pouco mais de água, acompanhando os movimentos dela, que começou a se dirigir para o banheiro. Dakota parou de andar a poucos centímetros da porta e se voltou para perguntar:

— Um dos melhores restaurantes da cidade fica a um quarteirão daqui. Quer jantar, antes de irmos para a esbórnia? A dona é minha amiga e está me devendo uma boa garrafa de vinho.

— Que surpreendente.

— O quê? O fato de eu te convidar para jantar, antes de ir arranjar confusão?

— Isso já não me surpreende, Dakota. Estou falando do fato de que, desde que te conheci, só te vi fazer inimigos — puxou a cadeira vazia e esticou as pernas sobre ela.

— Que malvada! Achei que estivéssemos nos tornando amigas. A não ser que você queira outra coisa — elevou as sobrancelhas um par de vezes.

Isadora ficou feliz pela mudança no humor dela, que através do sorriso meio cafajeste parecia dizer que tinha jogado tudo o que lhe incomodava no esquecimento.

— Você não é o meu tipo, Dakota. Por favor, não se ofenda.

Dakota fez um biquinho, afetado.

— Eu também não seria o meu tipo — mostrou uma careta. — Nisso, temos um gosto parecido. Também tenho uma preferência por rostinho de anjo e jeitinho cafajeste.

Ainda embalada pela brincadeira, Isadora fez uma pergunta séria:

— Isso quer dizer que você se interessou por Alice? — ela não queria trazer a ex para a conversa outra vez, porém, foi quase inevitável.

— Ela me atrai tanto quanto esta porta — deu uma batidinha na madeira. E achou que devia uma explicação: — Moça bonita, bom papo, mas é só. Ela não tem nada de surpreendente, sabe? Nada que cative a minha vontade de descobrir mais sobre ela.

— Com certeza, Alice não pensa o mesmo de você — afundou na cadeira. — Estou certa que ficará ainda mais interessada quando descobrir quem você é. Eu, por outro lado, sou tão previsível e chata que ela nem se dignou a tentar ser fiel.

— Sua baixa estima está me deprimindo de novo! — Dakota brincou e foi até ela. Encostou-se na mesa, fitando-a nos olhos por tanto tempo que Isadora sentiu a necessidade de fugir daquele olhar. — Posso ser sincera?

— Sinceridade é bom e eu aprecio bastante. Vá em frente.

— Ainda nos conhecemos muito pouco, Isadora. Mas faz parte do meu trabalho observar as pessoas e aprender o máximo possível sobre elas. Se tornou uma ação natural. Então, já tenho uma ideia bem formada sobre você e Alice. Hipoteticamente falando, se estivéssemos em um triângulo amoroso e me pedissem para escolher uma das duas, eu não teria dúvidas sobre escolher você.

Isadora corou violentamente. Não que ela desejasse estar com Dakota dessa forma, ainda mais depois de um término tão recente. Porém, fazia bem ao ego ouvir que era atraente para outra pessoa.

— Por quê? — perguntou, tímida.

— Como diria a minha ex: você é gostosa! — ela riu alto com o seu desconcerto.

— Que horror! — Isadora deu um tapinha no braço dela.

— Brincadeira! Não sou tão tola ao ponto de só enxergar a aparência.

Dakota poderia encerrar o assunto ali, mas havia algo em Isadora que a fazia querer ser sincera o tempo todo. E compreendeu que o que antes acreditava ser pena da situação em que ela se encontrava, talvez não tivesse nada a ver com isso. De qualquer forma, aquele algo não iria adiante.

— Eu te acho linda, Isadora.

As bochechas de Isadora arderam tanto que ela pensou estar febril. Nesses momentos, Dakota achava a timidez dela uma graça.

— Você é sensível e inteligente, e apesar de estar sofrendo, prefere a si mesma em vez de baixar a cabeça e fingir que está tudo bem. Quando eu disse que queria vingança por Tonho, seria natural que tentasse me demover da ideia ou sugerir chamar a polícia, como Alice fez. Em vez disso, você me apoiou. Quando te contei sobre Graziella e Giovanni, você simplesmente quis saber como eu me sentia a respeito, sem julgamentos. Quando te contei sobre Estela, sobre o que Tonho e eu fizemos com Jonas Rocha, você não disse nada, mas eu vi que, em vez de horrorizada, você ficou satisfeita por ele ter sido castigado. Não há nada de previsível e chato em você. Nos conhecemos pouco, mas esse pouco não me parece o bastante. Compreende? Comigo sempre funcionou assim, nas amizades profundas e no romance. É essa a diferença entre você e Alice. 

Isadora respirou fundo, com um nó estranho na garganta.

— Você tem o dom de mexer com as pessoas, Dakota. Para o mal e para o bem. Obrigada por isso.

Engoliu o nó, junto com um longo gole d’água.

— Disponha.

— Mas você ainda não faz o meu tipo — anunciou em tom de brincadeira.

Dakota jogou a cabeça para trás, em uma gargalhada alta.

— Me contento com a sua amizade, mas se um dia estiver disposta a mudar de ideia… — piscou, erguendo-se e indo em direção ao banheiro

— Te aviso, com certeza!



Notas:

Oi, amores!

Então… fiz uma pequena viagem para ver a família e no regresso peguei uma virose que me deixou de molho por mais de uma semana. Então, espero que me perdoem pelo atraso nas postagens. O que, se tratando de mim, nem deve ser surpresa para vocês. rs…

Para compensar um pouco, vou postar o capítulo seguinte amanhã.

Beijos e xêros!




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