DAKOTA

5. Lágrimas e Fogueiras

Isadora colocou a última peça de roupa na mochila e a fechou. Sentou na cama, tentando acalmar o coração, que sofria pela decisão tomada. Naquela tarde, ela percebeu que esperava demais de Alice e do seu relacionamento. Percebeu, também, que os últimos dois anos ao lado dela foram uma perda de tempo.

 Alice não estava disposta a ser fiel, porque não a amava. E a verdade era que Isadora, apesar de estar sofrendo com a decisão de pôr fim ao namoro, também se perguntava se amava Alice. Naquele momento, ela não conseguia sentir nada, exceto decepção, principalmente, consigo mesma por ter insistido em uma relação “quebrada” desde o início.

Olhando para as paredes, testemunhas de muitos dos seus prantos e noites insones ao lado de Alice, chegou à conclusão de que a amou, mas esse sentimento, de tão maltratado pelas escapadelas da namorada, foi morrendo aos poucos. O que restou foi o querer e o comodismo de estar com alguém que, apesar dos defeitos e traições, a ouvia, cuidava e compartilhava momentos de carinho e desejo.

O fim havia chegado para elas.

Soube disso no momento em que a encontrou entre as pernas da veterinária que prestava serviços para a fazenda, meses atrás. Contudo, seu coração, ainda encantado por Alice, negou-se a aceitá-lo. Perdoou e por algum tempo as coisas caminharam serenamente até aquela tarde. Dessa vez, não houve flagra, mas assim que seus olhos encontraram os da namorada, quando ela retornava de uma rápida ida à cidade, soube o que se passou. E bastou meia-dúzia de palavras para Alice confessar a traição.

Mas o que se iniciou como uma conversa quase tranquila, logo se tornou uma tempestade de acusações e reclamações de ambas as partes. A discussão teria sido pior, se Dona Rosana não tivesse aparecido.

Quando se retirou, dizendo que ia dormir, passou um bom tempo olhando para a porta à espera de que Alice a cruzasse para que pudessem ter uma conversa sincera e final. A decisão já estava tomada e não haveria volta, mas em vez de ir até ela e encará-la, Alice entrou no carro e saiu, aumentando seu rancor e decepção.

Se era assim, se ela não podia sequer encará-la e decretar o fim olhando-a nos olhos, então Isadora não tinha mais nada a fazer ali.

Suspirou, olhando para o porta-retratos que exibia uma foto alegre das duas, então pegou a mochila e saiu. Dona Rosana já havia se recolhido e achou melhor não incomodá-la com uma despedida estranha, na qual, certamente, ouviria conselhos que não pediu e pedidos para que repensasse sua decisão.

Foi só quando entrou em seu carro e ligou o motor, que decidiu ligar para Alice, mesmo que ela não se importasse, precisava dizer um último adeus.

Houveram cinco toques, antes dela atender.

Alô.

Isadora respirou fundo, não queria, mas sabia que seria impossível sua voz não demonstrar que esteve chorando.

— Oi…

Houve um momento sem palavras, em que apenas a respiração de Alice podia ser ouvida do outro lado da linha.

— Estou indo embora, Alice.

Não faz isso, Isa. Por favor. Não antes da gente conversar direito.

— Acho que já conversamos demais! a voz falhou. — Continuar com esse namoro foi um erro. Nosso tempo acabou.

— Por favor, Isa, não faz isso. Não agora…

Isadora percebeu que ela estava chorando, mas não havia nada que Alice pudesse dizer que a impedisse de ir embora, até que ela falou:

— Por favor… Eu preciso de você! Isa, ele… ele morreu. Tonho morreu!

Isa prendeu a respiração e seu drama pessoal ficou de lado, ante a dor que a morte do amigo despertou. Os olhos inchados de tanto chorar, foram novamente inundados pelo seu pranto. E ela nem conseguiu ficar surpresa quando ouviu a voz de Dakota do outro lado da linha.

— Isadora, não conte a ninguém sobre isso ainda. Venha até a minha casa e explicarei tudo.

***

Dakota encerrou a ligação e devolveu o celular para Alice, o qual tinha arrancado das mãos dela repentinamente. Foi até a cozinha, pegou outra cerveja e retornou para a sala de estar. E sentou na beirada do sofá diante dela, cujo pranto era inconsolável.

Depois do ocorrido, Alice a ajudou a amarrar e levar os invasores para o galpão nos fundos do terreno. Dois deles ainda estavam desmaiados, mas aqueles que se encontravam despertos não paravam de fazer promessas assassinas às duas, razão pela qual Dakota resolveu calá-los com o “carinho” de um pugilista e muita fita adesiva.

Enquanto isso, a moça retornou para a casa e afundou-se no sofá da sala com o rosto entre as mãos e a adrenalina ainda correndo pelas veias. Amaldiçoou o momento em que decidiu entrar naquela chácara. E agora que a confusão tinha findado, ela se permitiu mergulhar nas dores e significados da última frase que Dakota lhe falou, quando a mandou se esconder no jardim:

“E de que maneira eu encontraria os assassinos do Tonho?”

Essas poucas palavras deram voltas em sua cabeça e formaram lágrimas em seus olhos. O coração ficou apertado dentro do peito.

Foi nesse exato momento que o celular tocou, ela o tirou do bolso e leu o nome de Isadora no visor, pensou em rejeitar a chamada, mas precisava compartilhar aquela dor com alguém. E, abalada, Alice implorou para que a namorada não partisse naquele momento.

— Por que você não disse nada antes? — Alice quis saber, a face molhada de lágrimas. — Me deixou sentar aqui, me ofereceu uma cerveja e riu comigo, como se nada tivesse acontecido! Que tipo de pessoa é você! — ficou de pé, agitada.

Dakota tomou um gole pequeno da sua cerveja e respondeu de uma forma tão tranquila, que a revoltou.

— E o que mais eu poderia fazer, Alice? Essa história é bem mais complicada do que isso — fez um gesto vago, indicando a confusão que acabaram de vivenciar.

— Complicada?! Não há nada de complicado nisso, apenas crueldade. A sua crueldade em não falar que o meu amigo está morto!

— Ele era meu amigo também, Alice!

— Não parece!

— Não fale sobre coisas que você não sabe! — depositou a garrafa na mesinha de centro e também se colocou de pé. — Você nem sonhava em nascer quando essa amizade começou! Podíamos não ter o mesmo sangue nas veias, mas éramos irmãos. Acha que só você está sofrendo pela morte dele? Tente imaginar como eu me senti quando assisti seu último suspiro no hospital!

Alice estremeceu com a ideia.

— Ele morreu na droga de uma cama fria de hospital, com um tubo na garganta e cercado por desconhecidos. Sequer teve a oportunidade de dizer adeus para quem amava. Acha isso justo?!

Não, isso não era justo e Alice deixou-se afundar no sofá novamente. Irritada, Dakota acabou atirando a garrafa na parede, assustando-a. Ela não pediu desculpas pela explosão, apesar de se arrepender.

Em vez disso, se dirigiu para a entrada da chácara e esperou por Isadora, aproveitando a breve caminhada para colocar os sentimentos no lugar. Não era hora para esses rompantes inúteis, ainda que tudo que desejasse fosse gritar e esmurrar alguma coisa ou alguém até se acalmar.

Não se passaram mais que quinze minutos desde a ligação de Isadora, até ela estacionar o carro diante da porteira, desembarcar do veículo, lançando um olhar rápido para o carro de Alice e depois para a picape estacionada à frente dele, e perguntar secamente:

— Onde ela está?

— Vem.

Isadora baixou o olhar para Sissi, mas não interrompeu os passos e a cadela a acompanhou tranquilamente, junto com sua dona. Apesar da tristeza que a tomava pela morte do amigo, não resistiu a perguntar:

— O que foi que houve com aquela história de eu não vim até aqui para romance?

— Senhor! Qual o problema dessas mulheres?! — Dakota revirou os olhos. —  Não é hora pra isso! — bufou.

— Não vejo hora melhor! Até porque não pretendo ficar aqui por tempo suficiente para encontrar o momento adequado. Sinto muito por Tonho, ele era muito querido por mim, mas não vou deixar que Alice use a tristeza dessa perda para acalmar minha raiva outra vez. Estou deixando ela e não pretendo mudar de ideia.

Apesar da pouca luminosidade do caminho, Dakota reparou nos olhos inchados dela e conseguiu divisar a lágrima que lhe escapou sem resistência. Suspirou longamente.

— Faz bem — foi sincera. — E antes que interprete isso de forma errada, saiba que não aconteceu nada entre Alice e eu, nem irá acontecer. Ela apareceu aqui, mais cedo. Sabe-se lá, porquê! Mas parecia precisar conversar com alguém. Tomamos uma cerveja e ela me contou o que houve entre vocês. Então, a aconselhei a voltar para casa e ser sincera com você e, principalmente, consigo mesma. Ela já estava de saída quando outros visitantes chegaram e as coisas se complicaram. E agora ela está se desmanchando em lágrimas por causa da notícia sobre o Tonho e me odiando por não ter contado antes.

Isadora fungou, derramando outra lágrima. Estava louca por uma briga, mas depois disso acabou desistindo.

— Bem, agora Alice precisa de um ombro para chorar, mas se isso for demais para você, não precisa ficar. Eu lido com ela.

— Está… — engoliu o choro. — Está tudo bem, eu faço isso e depois vou embora.

Sem aviso, Dakota levou a mão até o rosto dela e secou a lágrima que escorria por sua bochecha.

— Tome o tempo que precisar para se recompor — apontou para o banco de pedra que ladeava o caminho. Isadora sentou, escondendo a face entre as mãos. — Estaremos bem ali. Sissi, vai ficar com você.

Deu o comando e a cadela deitou aos pés de Isadora, que não entendeu o motivo disso.

— A noite está sendo agitada e um pouco violenta. — Explicou. — Ela vai cuidar de você.

***

Alice não se lembrava da última vez em que ficou tão feliz por ver Isadora. E longe de todo o receio que sentia de estar no mesmo ambiente que ela após a briga que tiveram, correu para os seus braços. Chorou entre eles e ouviu palavras suaves de consolo.

Isadora, por outro lado, acreditava estar se torturando por permitir que ela se aproximasse tanto, quando tudo que desejava era distância para curar a ferida em seu peito.

— O que aconteceu aqui? — ela quis saber, reparando nos cacos de vidro na varanda e também na sala.

Um pouco desnorteada, Alice narrou os acontecimentos da noite. A namorada ouvia tudo, horrorizada, saltando o olhar dela para Dakota e vice-versa. Por fim, Isadora avaliou-a, em busca de algum ferimento, e sentiu alívio ao notar que não tinha sequer um arranhão. O mesmo não aconteceu com Dakota, ela tinha um corte raso no braço e outro no abdômen, e nem parecia ter se dado conta deles, pois andava tranquilamente pela sala, recolhendo os cacos da garrafa que quebrou.

— São só arranhões — disse ela, ao perceber o interesse da outra, que na escuridão do caminho entre a casa e a porteira, não tinha notado os ferimentos.

— Você podia ter morrido. As duas podiam ter morrido.

Ela deu de ombros.

— Eu já esperava por isso e estava preparada, só não imaginava que Alice estaria aqui quando acontecesse.

— Você é mesmo louca, Dakota! Por que inventou de provocar a família Rocha? Veja no que deu!

— Eu não tenho medo deles, Isadora. Tudo o que carrego no coração por aquela família é ódio — balançou a cabeça, achando graça do que dizia. — Silvestre Rocha é um filho da puta miserável, mas nem de longe é o pior que aquela família gerou. E se ele ordenou mesmo a morte do Tonho, irá pagar por isso!

As duas mulheres se sentiram desconfortáveis diante da promessa assassina e não tiveram dúvidas de que ela a cumpriria. Isadora fez com que Alice voltasse a sentar no sofá. Enxugou as lágrimas dela e as suas próprias, então agachou-se ao lado de Dakota, para ajudá-la a catar os cacos de vidro.

Agora que estavam mais calmas, podiam tentar conversar e entender melhor o que estava se passando.

— Quando Tonho…? — começou a perguntar, mas um nó se formou na garganta e não conseguiu terminar a frase.

Dakota a olhou com irritação, a qual era completamente voltada para si mesma. Aquela noite, aquelas mulheres e seus problemas, misturados aos seus próprios, estavam tirando todo o seu equilíbrio. Tomou um momento para respirar e organizar a mente antes de falar.

— Um pouco antes de eu decidir vir para cá. Há quase um mês.

— Tanto tempo? — surpreendeu-se e agora entendia parte da revolta de Alice. — Por que Mônica e Álvaro esconderam isso? Tonho cresceu em Cascabulho, era amado por todos. Por que eles privaram os seus amigos da despedida?

Dakota sentou no chão, passando a mão pelos cabelos.

— Porque eu pedi.

— Por que você faria uma coisa dessas?! — Alice subiu o tom da voz.

— Porque era conveniente. Além disso, — ficou de pé — Mônica e Álvaro não conseguiam suportar a ideia de voltar para Cascabulho depois do que aconteceu ao irmão deles. Eles o cremaram, como era a vontade dele. Então, quando a família toda estiver reunida e eles se sentirem seguros para isso, haverá uma cerimônia de despedida. Há muitos anos, Tonho expressou o desejo de que suas cinzas fossem depositadas no túmulo de Estela…

Ela se retirou com os cacos e Isadora perguntou:

— Quem é Estela?

— A irmã caçula dele — Alice respondeu, fitando o chão. — Você sabe…

Mas Isadora não sabia, porque nunca ouviu a história de como Dona Rosana, a fim de se livrar de um “problema”, empurrou a jovem Estela para os braços de um homem rico e violento, que acabou tirando a vida dela e do próprio filho, que sequer tinha nascido. A própria Alice era nova demais para conhecer e lembrar dos detalhes. Além disso, ela ainda não morava com a madrinha, então grande parte do que sabia, ouviu de várias bocas. Nem mesmo teve coragem de pedir a Tonho que lhe falasse a respeito.

Mas, uma coisa era certa no que Dakota falou, Silvestre Rocha nem de longe era o pior membro que a sua família gerou.

A motoqueira retornou com três copos e uma garrafa de vodka. Despejou doses generosas nos copos e os distribuiu. Precisava de algo mais forte que cerveja para remover aquele terrível nó que se formou na garganta.

— Minha nossa, você mente até sobre a bebida que tem em casa! — Alice acusou-a, mas de forma amena, quase brincando.

— Tonho sempre tinha uma garrafa de Campari para você. Eu sempre tenho vodka para uma pessoa especial. E graças a esta noite e vocês duas, se essa pessoa resolver aparecer, e ela vai, pois não gosta de ser ignorada por muito tempo, meu estoque de “amansa fera” vai estar reduzido.

Ela sorveu toda a bebida de uma vez, encheu o copo novamente e sentou no sofá oposto ao que as duas mulheres ocupavam.

— Tonho não estava sozinho naquela noite — contou. — Sua sobrinha, Isabela, estava com ele.

— Não ouvimos nada sobre isso.

Dakota encolheu os ombros.

— Falei com ele naquela noite, Alice. Estava trabalhando do outro lado do mundo, mal prestei atenção ao que dizia. Se eu tivesse imaginado… Tonho me falou que a Bela resolveu passar uns dias com ele de forma repentina. “Ela anda um pouco estranha, arredia, preocupada com algo”, ele disse. Mas não tinha ideia do que era, e acabou supondo que devia se tratar de problemas de amor. — Fez um gesto vago. — Depois disso, não nos falamos mais. Só fiquei sabendo o que aconteceu duas semanas depois, quando voltei ao país. Bela não é vista desde então. O telefone está desligado, não há movimentações em sua conta bancária, nem nas redes sociais. E a última localização do GPS do seu celular, antes dela sumir do mapa, foi Cascabulho.

Tomou um gole da bebida, fez uma pequena careta e continuou:

— Respondendo sua pergunta, é fácil fingir que está tudo normal quando você mata alguém. Um morto não pode te acusar, nem buscar vingança. Mas e se a sua vítima não tiver morrido? E se houver a possibilidade, mesmo que remota, dela se recuperar e revelar o seu crime? Depois de um tempo, seus nervos falam e você começa a cometer erros, principalmente, se tiver alguém revirando o seu “lixo”, alguém que você não conhece e nem sabe do que é capaz? Alguém como eu.

Ela fez um gesto, que abrangia tudo em volta e que, Alice sabia, incluía os quatro invasores atados no galpão.

— Eu quero respostas para o que aconteceu com Tonho. Quero vingança! Mas quero, principalmente, encontrar a Isabela. Isso posto, espero que mantenham o silêncio, por enquanto. Agora, — findou a bebida — acho melhor vocês irem embora. Tenho coisas desagradáveis para fazer.

— O que pretende fazer? — Alice perguntou.

— O que você acha? — ela tinha uma expressão maldosa ao encerrar a frase.

— Acho que precisamos chamar as autoridades, não buscar vingança com as próprias mãos.

— Então, discordamos nesse ponto — pareceu divertida, diferente de Alice, que se irritou com seu ar de riso e o pouco caso que fazia da situação.

— Olhe para você, Dakota! Teve sorte de não ter sido fatiada ou, pior, levado um tiro. É melhor deixar alguém habilitado resolver isso.

— Você é uma graça, Alice. Sabe tão bem quanto eu, que a polícia da região come na mão do Silvestre Rocha e varre toda a sujeira dele para debaixo do tapete. Culpado ou não pelo o que houve com Tonho, ninguém está interessado em descobrir a verdade, pois, ela pode respingar no homem que assina os contracheques. E eu sou mais habilitada para o serviço do que você pode imaginar.

— Mas não pode ser assim, Dakota! Eu também não morro de amores por aquela família. Por mim, eles poderiam explodir, não fariam falta para ninguém! Também estou devastada pela morte do Tonho, mas acho que ele merece mais que isso. Na verdade, estou certa de que ele não concordaria com o que pretende fazer.

A outra sorriu largo, a ironia bordando os lábios.

— Logo se vê que você não o conhecia tão bem quanto pensa.

— Ela tem razão, Alice. — Isadora deu sua opinião. — Infelizmente, ninguém está interessado em fazer justiça pelo nosso amigo. E o desaparecimento de Isabela é muito suspeito. Na melhor das hipóteses, se ela viu o que houve, pode estar se escondendo por medo. Na pior…

Ela não quis completar a frase, pois a ideia era terrível demais para ser nomeada. Isadora também não concordava com os métodos de Dakota, porém compreendia seu intento e reconhecia que, naquele caso, talvez fosse a única opção.

***

Dakota entrou no galpão carregando uma bombona de gasolina. Sem cerimônia, encharcou os quatro invasores com o combustível. Então, arrastou uma cadeira velha até perto deles e sentou.

— Só vou fazer essa pergunta uma vez, rapazes. Respondam com sinceridade e talvez saiam daqui vivos. Se mentirem ou ficarem calados, irei acender as fogueiras de São João mais cedo este ano.

Ela tirou uma caixa de fósforo do bolso, acendeu um diante do rosto, sorriu malvada, e o apagou com um sopro.

— Então, temos um acordo?

Aquele no qual ela atirou, balançou a cabeça positivamente. Dakota foi até ele e tirou a fita adesiva que o impedia de falar. Ele berrou:

— Eu vou acabar com a sua raça, sua p… Aiiii! — gritou, quando ela pisou sobre o joelho baleado.

— Acho que temos o primeiro voluntário para nossa fogueira — deu um soco nele e o arrastou para fora do galpão, deixando os companheiros dele apavorados ao ouvirem um tiro. Momentos depois, o clarão de uma fogueira se projetou na parede oposta à que eles estavam encostados.

Dakota retornou para o galpão.

— Alguém mais quer bancar o engraçadinho?

Eles baixaram a cabeça e ela escolheu um para responder suas perguntas.

— Por que mataram o Tonho?

— Não matamos — disse o bandido.

— Avisei para não mentir para mim! — Ela o socou com força e o arrastou para fora sob os protestos desesperados dos amigos que, novamente, ouviram um tiro.

Ela apareceu na entrada do galpão, ainda com a arma na mão. Escolheu o terceiro bandido.

— Vamos começar de novo? Por que mataram o Tonho e quem deu a ordem.

— Não matamos, eu juro! Nem sabemos quem é esse tal de Tonho. Só fomos contratados para dar uma lição em você — ele falou de um fôlego só.

— Hum, hum, humm — fazia o companheiro dele, implorando por uma oportunidade de falar. Dakota arrancou a fita da sua boca e ele contou: — Há duas noites, um playboyzinho nos contratou para dar um susto em você.

— Susto?

— Sim! Sim! Só precisávamos invadir a sua casa, amarrar você, quebrar algumas coisas e ameaçar.

— Isso! O suficiente para você se mandar daqui — completou o outro, quase chorando.

— Ah, cara! A gente só queria ganhar uma grana fácil. Não íamos fazer mais que isso — ele fungou e depois lamentou: — Você matou o José e o Tião. Por favor, não mata a gente não! Não vamos contar nada.

— Por favor, moça! É verdade o que estamos dizendo!

Ela tirou o celular de um dos bolsos e catou uma foto de Donato Rocha em uma mídia social, que já havia investigado anteriormente.

— É esse o cara que contratou vocês? — mostrou a foto.

— Não! Esse é mais velho.

— O homem que nos contratou era bem mais jovem. Tinha cabelo e olhos claros. Não deu para ver muito na luz do cabaré.

— Que cabaré? — ela quis saber.

— O cabaré da Gilda, lá em Passo Doce — responderam.

— E esse sujeito, já viram ele lá outras vezes? — ela voltou a guardar o celular.

— Sim! Uma ou duas vezes.

Satisfeita, Dakota tirou um canivete do outro bolso e os soltou.

— Ok, podem ir.

Os dois rapazes ficaram de pé, aliviados. Ainda assim, se mostraram reticentes em sair do galpão, visto que ela continuava segurando a pistola.

— Vão embora! — Dakota gritou. — E levem esses dois idiotas com vocês.

Eles respiraram, aliviados, ao descobrirem que os amigos não estavam mortos. Em vez disso, Dakota os amordaçou novamente, atirou no chão e pôs fogo dentro de um barril velho, criando a atmosfera de terror ideal para um interrogatório.

— Façam um favor a si mesmos, não voltem mais aqui. Não serei tão condescendente na próxima vez.

Sissi rosnava à passagem deles, que não demoraram para deixar o terreno. Ao lado da entrada do galpão, Alice e Isadora, que tinham se recusado a partir e deixá-la sozinha com aqueles homens,  ouviram tudo o que se passou.

— Se não foi alguém da família Rocha, quem mais te quer fora daqui?

— Estou ansiosa para descobrir.

Ela se alongou e bocejou.

— Bem, foi uma noite longa e estou louca para dormir. Já que vocês viram que não assassinei ninguém, já podem ir embora também.

Alice concordou, embora estivesse certa de que não conseguiria dormir naquela noite. Afinal, foram muitas emoções. Disse:

— Vamos, Isa.

Isadora escapou da sua tentativa de tocá-la.

— Eu não vou com você, Alice. Te falei ao telefone, estou te deixando.

Por um momento, Alice digeriu aquela declaração. No meio de tudo que houve nas últimas horas, ela acabou esquecendo dos seus dramas pessoais.

— Acho que precisamos mesmo colocar nosso relacionamento em panos limpos, mas foi uma noite muito agitada. Ambas estamos nervosas, então acho que podemos conversar melhor sobre isso amanhã.

— Talvez. Mas nada do que disser poderá me fazer voltar atrás na decisão que tomei. Eu vou embora.

— Para onde?! — Alice subiu um pouco o tom. — Seja razoável, Isa. É madrugada e você não vai encontrar abrigo em Cascabulho. Você alugou sua casa para ir morar na fazenda comigo e ir para Passo Doce a esta hora está fora de questão, pois fica a 60 km daqui. Vamos para a Mimosa.

— Não. Dormirei dentro do carro, se for preciso, mas não vou passar nem mais uma noite sob o mesmo teto que você. Eu não consigo mais, Alice. Preciso apagar você de mim!

Com o coração apertado, Alice respirou fundo, buscando um argumento que pudesse fazer com que ela mudasse de ideia, porém, vendo que a discussão poderia se estende e piorar, Dakota resolveu intervir:

— Eu tenho um quarto sobrando. Isadora pode passar a noite aqui, se estiver bom para as duas. Acho que não teremos mais invasões nem tiroteios esta noite — sorriu.

— Tem certeza? — Isadora perguntou, quase tímida. Era a segunda vez naquela noite que Dakota parecia saber exatamente o que dizer e fazer para ajudá-la.

— Não vejo problema.

Com isso arranjado, Alice não teve mais como argumentar. Aceitou a derrota e se retirou. Dakota ainda se ofereceu para acompanhá-la até a Mimosa, porém recusou. Tudo o que ela pediu foi para que cuidasse de Isadora e se foi com a promessa de voltar no dia seguinte para ter uma conversa sincera com a, agora, ex-namorada.

— Obrigada — disse Isadora, quando entraram em casa. — E me desculpe pelo incômodo e por ter sido meio idiota com você no outro dia.

— Não precisa agradecer e, também, não precisa se desculpar.

Deu de ombros, depositando a arma sobre a mesinha de centro e sentando no sofá. Estava mesmo cansada e também um pouco ébria, apesar da adrenalina que corria em suas veias.

— Nem tudo pode ser superado com o amor — disse, como se tivesse um profundo conhecimento do assunto. — Mesmo amando alguém, se essa pessoa te faz mal, o melhor é se afastar.

A hóspede achou difícil responder a isso e preferiu balançar a cabeça, suavemente.

— É preciso se amar antes de dar amor para outra pessoa. E você me parece uma mulher segura demais do que deseja e sente para estar com uma pessoa que não tem e nem oferece segurança alguma nesse quesito. Não me entenda mal — bocejou. — Alice parece ser uma boa pessoa, mas está claro que ela precisa amadurecer um pouco. E isso é tudo o que tenho a dizer sobre o assunto em que entrei de gaiata.

Tentando evitar o choro que se aproximava outra vez, Isadora tirou os óculos de grau e limpou as lentes na camiseta. Quando sentiu que havia superado aquela ânsia, foi até ela, fazendo-a ficar quieta para olhar os cortes com atenção. Não eram profundos, porém precisavam de cuidados.

— Você tem alguma coisa para fazer um curativo?

— Servem panos de prato?

— Engraçadinha — sorriu.

— Você fica mais bonita assim, Isadora. Não deixe que Alice ou qualquer outra roube o seu sorriso. — Apontou para os cortes e ficou de pé. — Posso cuidar disso depois, não se preocupe. O que preciso agora é de um bom banho. O seu quarto fica no fim do corredor, há lençóis e toalhas limpas no guarda-roupas.

Sorriu, antes de entrar no corredor.

— Tenha uma boa noite, Isadora.

— Boa noite, Dakota.



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