DAKOTA

2. Forasteira

Cascabulho, Nordeste Brasileiro, Janeiro de 2017.

— Que inferno!

Alice socou o volante algumas vezes e saltou da caminhonete.

— Assim não dá! — chutou o pneu dianteiro e passou as mãos nos cabelos castanhos com um suspiro revoltado.

— Quebrou de novo?

Seu Mariano se aproximou devagar, a barrigona balançando e desafiando alguns botões da camisa a se manterem fechados. Cofiou a barba, branca como algodão, e franziu a testa, como só ele era capaz de fazer.

— Pra variar, sim! — Alice ergueu os braços para o alto, indignada com sua falta de sorte naquele dia, em especial. Tudo o que queria, quando acordou naquela manhã, era um dia sossegado de trabalho. Um diazinho sem que animais fugissem pela cerca esburacada da fazenda, contas atrasadas não chegassem e aquela banheira velha que dirigia não quebrasse.

O velho pendurou o boné, puído pelo uso, no retrovisor ao lado da porta do motorista. Abriu o capô e curvou-se sobre o motor, fazendo Alice se perguntar como conseguia tal feito com aquela barriga. Alguns minutos se passaram enquanto ele fazia um exame minucioso, então jogou a cabeça para o lado e disse:

— É, ele morreu!

A moça, que dava voltas em torno da caminhonete, estacou do seu lado.

— Sem brincadeiras, homem!

Ele fechou o capô, limpou as mãos negras de graxa em uma flanela amarelada, que o neto, um garotinho mirrado de cabelos e olhos negros, lhe entregou. Recuperou seu boné.

— Não brincando, Dona Alice. Tem jeito não. Dona Rosana já devia ter dado um fim nisso.

— Cruzes! Nem repita isso. Sabe que essa caminhonete pertencia ao meu padrinho e ela a adora. — Mirou o céu por alguns segundos, depois olhou desconsolada para as caixas na carroceria da caminhonete.

Havia anos que pedia para a madrinha comprar outro veículo ou, pelo menos, que a deixasse trocar seu próprio carro, um modelo popular, em algo que pudessem utilizar nos serviços da fazenda. Mas o saudosismo e o apego às coisas do falecido esposo, impediam Dona Rosana de buscar as melhorias que propunha. Talvez por isso, a Fazenda Mimosa se encontrava em uma situação tão delicada financeiramente.

O sol começava a se pôr no horizonte e um ventinho agradável os circundou.

— E agora? Como volto para casa com todas essas coisas? Acha que Inácio me emprestaria a caminhonete dele para retornar à fazenda, enquanto conserta esta dor de cabeça sobre rodas?

— Mas é claro! Ele sempre fez isso, não?! O problema é que, desta vez, não vai poder.

Ela já tinha enfiado o boné na cabeça e se voltava para a direção onde ficava a oficina do velho Inácio, quando ouviu o comentário.

— Como assim?

O velho Mariano tinha retornado para a cadeira de balanço, que costumava ocupar, na calçada da venda da qual era dono. Passava os dias naquela cadeira, observando o tempo e vida passarem, enquanto se fartava com as fofocas que os clientes lhe traziam. Não havia nada que não soubesse sobre os moradores da cidade e se orgulhava disso sempre que podia. Gemeu quando sentou, a barriga balançando vigorosamente até se acomodar sobre as coxas. Sorriu, exibindo uma fileira de dentes amarelados.

— Aquela chuva da semana passada, lembra? Era água que não acabava mais. Inácio disse que chovia mais dentro de casa do que fora. Então, resolveu consertar o telhado no domingo passado. Mas que bichinho azarado, aquele coitado! Um dos degraus da escada que usou estava podre — coçou a cabeça sem retirar o boné, o tornando uma massa de formato engraçado. — Sempre disse para ele não deixar aquela escada largada no quintal. Viu? Deu nisso. Caiu e quebrou a perna. Dizem que vai ter de fazer cirurgia.

Desatou a falar sobre a desventura do amigo, enveredando por outros assuntos sem se dar ao trabalho de imaginar se estava incomodando ou não a moça, que teve de aguardar, paciente, que terminasse seu monólogo.

Desanimada, Alice lhe agradeceu e se voltou para outra direção, os ombros caídos em sinal de derrota.

— E mais essa, agora — falou para si, mas o velho a ouviu.

— Ora, Dona Alice, tenho certeza de que Dona Rosana pode passar uns dias sem essa banheira — riu, e no meio do riso teve um acesso de tosse.

— A caminhonete é o de menos. Combinei com Inácio a manutenção das máquinas antes que começássemos a produzir. Agora, me vejo em um mato sem cachorro.

Jeremias, o neto serelepe de Seu Mariano, ouvia tudo com atenção enquanto fingia contar suas bolinhas de gude, as quais já tinha tirado e colocado de volta no saquinho por alguns pares de vezes. Ergueu a cabeça com expressão séria e puxou a barra da calça de Alice. Ele estava sentado na calçada ao seu lado.

— Por que não pede para a Dakota ajudar?

O avô atirou a flanela nele.

— Ah, moleque, fique quieto! Crianças não têm nada que ver em conversa de adultos.

O menino inflou os pulmões, indignado.

— Eu não sou criança! Já sou um homem! — Bateu no peito e arrancou uma sonora risada de Alice. Ela curvou-se e passou a mão nos cabelos rebeldes dele.

— Um homenzinho muito esperto e bonito.

O moleque abriu um sorriso satisfeito e ficou de pé, olhando para o avô com ar de deboche.

— Quem é esse Dakota? — ela perguntou.

— Ah! — fez o velho com uma careta, adicionando um gesto de irritação. — “Esse” não, “essa”. É uma mulher — esclareceu.

Se pôs de pé outra vez, puxando a calça para o que Alice julgou, era o que ele chamava de cintura. Enfiou a mão no bolso e retirou um cachimbo velho. Amassava um punhado de tabaco no fornilho, enquanto falava.

— Não tem vindo muito à cidade ultimamente, né, Dona Alice? Andou perdendo as fofocas locais.

— Andei bastante ocupada com os preparativos para o retorno do funcionamento da fábrica e, também, precisei viajar — explicou ela, embora não houvesse necessidade.

— Sim, sim! Fiquei sabendo pela sua madrinha, quando ela veio pegar os mantimentos no mês passado. — Apontou para Jeremias com o queixo. — Enfim, não dê ouvidos a esse moleque atrevido. Aquela mulher não me parece boa peça. Você não vai querer se meter com ela.

O comentário a deixou mais curiosa e se recostou na porta do carro com os braços cruzados. Seu Mariano era um fofoqueiro de primeira e possuía uma língua ferina, mas não costumava distribuir seu “veneno” de graça.

Jeremias defendeu a tal mulher:

— A Dakota é legal, ela me comprou um sorvete! — sorriu e Alice o acompanhou.

Alguém que compra sorvete para uma criança não deve ser tão ruim, ela pensava. Então, qual era o problema do seu Mariano com a mulher? Imaginou um sem número de razões, afinal, a gente humilde daquela cidadezinha no meio do nada, ainda estava agarrada a antigas e conservadoras tradições. Podiam ser muito preconceituosos com estranhos e com os que quebravam alguns tabus, como ela própria.

— Ontem o trator do Seu Zé Paulo quebrou aqui na frente e ela consertou rapidinho — Jeremias informou.

— Ah! — o velho descansou uma das mãos sobre a barriga e o movimento fez com que um dos botões saltasse, deixando o umbigo exposto. — Sorte! Duvido que aquela sujeita saiba trocar uma lâmpada, quanto mais consertar essa lata velha. Aceite meu conselho, Dona Alice, fique longe daquela lá.

Ele pendurou o cachimbo nos lábios finos e acendeu o fumo no fornilho.

— E o que tem essa criatura de tão ruim assim? — ela quis saber.

— Quando a vir saberá — garantiu Mariano.

A moça aguardou que ele continuasse, notando o prazer que sentia em lhe contar as “novidades” da cidade.

— Não me inspira confiança! — ele retirou o cachimbo da boca, soprou a fumaça para o vento carregar e continuou: — Desde que chegou, fica rondando pela cidade com aquela moto barulhenta. Quando não está fazendo isso, está no bar do Tonho…

Alice ergueu a mão.

— Espere um pouco, Seu Mariano! Como assim no bar do Tonho? Ele já voltou? Está bem? Quando isso aconteceu?

— Ih, Dona Alice, essa história anda muito mal contada — lambeu os lábios. — Essa sujeita diz que comprou o bar daquele desmiolado. Mas duvido que aquele tonto tenha vendido o único sustento dele…

— Como assim ela comprou o bar? Tonho jamais o venderia! Além disso, falei com Mônica na semana passada, e ela não comentou nada a respeito.

Seu Mariano coçou a cabeça, pensando alto:

— Pelo que ouvi, ele não está mesmo bem de saúde. Pode ser que precise de dinheiro para se cuidar. É nisso que dá, separar briga de bar.

Cofiou a barba, soltando mais fumaça, e pareceu se entregar a pensamentos distantes, antes de dizer:

— Quer saber, Dona Alice? Aqui entre nós — diminuiu o tom da voz para que Jeremias não ouvisse —, eu acho que ele já bom. Acho que ficou com medo de voltar depois do que aqueles sujeitos fizeram. Penso que resolveu vender o bar pra se livrar logo desse problema e viver mais alguns anos.

Ela balançou a cabeça, descrente.

— Tonho jamais faria isso — repetiu. — E Mônica nunca mentiria para mim sobre o estado de saúde dele. Sabe que somos amigos há muitos anos e me preocupo com ele como se fosse meu irmão.

O idoso balançou a cabeça, como se concordasse.

— Bom, Dona Alice, é o que eu penso. Veja bem, todos sabemos que o que aconteceu com Tonho não vai dar em nada. Toda a cidade se pela de medo da família Rocha. Seu Silvestre nunca vai deixar o filho ir pra cadeia e ninguém em Cascabulho é louco para testemunhar contra ele. Exceto, se quiser ir pra cova antes do tempo.

Alice baixou os olhos para o menino, que agora enfileirava as bolinhas de gude, formando o que parecia ser a silhueta de um cachorro. Para sua infelicidade, ela concordava com Seu Mariano.

Cascabulho era, praticamente, uma terra sem lei. Uma cidadezinha perdida no tempo, entre pomares e canaviais, bem na fronteira de três estados nordestinos. Ali, imperava a lei do mais forte e rico. A família Rocha era dona da maioria das terras que compunham o município e metade da cidade trabalhava para eles, que costumavam resolver seus conflitos à bala. Por vezes, Alice se esquecia que estavam no século XXI e acreditava que ainda viviam os tempos dos coronéis.

O fumo de Seu Mariano chegou ao fim e ele atirou as cinzas do cachimbo no chão. Soprou o fornilho e o guardou no bolso. Tornou a falar alto:

— Seja como for, Dona Alice, parece que essa sujeita veio pra ficar. Um dos filhos do Tião da Luz, me disse que havia alguém morando na chácara que pertencia ao falecido Bento Rodrigues e, pelo o que sei, ela não tem casa comprada ou alugada aqui na cidade.

— Tem certeza de que ela não é daqui?

— Hum! Com esse nome e com aquele “jeito”, é claro que não é!

— Que jeito, homem?!

— Ah, Dona Alice, vai saber quando encontrar ela! — coçou o queixo, revolvendo as memórias. — Agora que falou, pode até ser que ela seja mesmo amiga daquele desmiolado. Ele passou alguns anos fora de Cascabulho, quando era jovem. Foi pouco depois da morte da irmã dele. História triste essa!

Fez uma pausa, lançando um olhar venenoso para ela. Não havia uma só pessoa em Cascabulho que não soubesse da tragédia que acometeu à família do Tonho, e os motivos que levaram sua irmã à morte e que estavam diretamente ligados à madrinha de Alice. Para muitos, a existência dela na vida de Dona Rosana era a pura ironia do destino ou, talvez, uma espécie de castigo divino.

— Tonho ficou tão arrasado que caiu no mundo e quando voltou parecia outra pessoa — concluiu Seu Mariano.

Ela esperou que o velho continuasse a falar, mas, aparentemente, já tinha lhe dito tudo o que queria, então se voltou para a caminhonete estalando os lábios em sinal de derrota. Pegou o celular e ligou para a fazenda a fim de informar o acontecido e evitar preocupação com a demora em retornar.

Enquanto estava na ligação, o velho começou a cochilar na cadeira, deixando uma mistura de ronco e assovio escapar, causando um arrepio de desagrado nela.

A noite já se aproximava, derramando sua escuridão sobre as colinas ao longe e Jeremias puxou a barra da calça de Alice, outra vez. Ela baixou o olhar para o rosto magro e moreno, que abriu um sorriso de dentes ligeiramente tortos.

O menino lhe entregou uma bolinha de gude.

— O vovô não gosta da Dakota porque ela tem desenhos. Como ter desenhos pode ser errado?

Confusa, Alice permaneceu em silêncio. Devolveu a bolinha para ele e sentou na calçada também.

— Essa mulher sabe mesmo consertar tratores? — perguntou baixinho.

— E motos também. Já vi ela fazendo.

Ela não se importava com quem ia fazer o serviço, desde que soubesse fazê-lo. Dali quinze dias, iniciaria sua produção e precisava da manutenção nas máquinas. Se houvesse uma chance de que a tal Dakota pudesse ajudá-la, iria atrás dela. Além disso, queria tirar a história do bar a limpo. Estava certa de que houve um mal-entendido e a forasteira não era a nova dona do bar do seu amigo.

— Pode dar uma olhada nessas coisas pra mim?

Depositou uma nota de dez reais na mão de Jeremias e o moleque pegou uma vareta, colocou sobre os ombros e começou a marchar em volta do veículo, arrancando do avô, que havia despertado com a movimentação, uma risada.

A venda ficava no fim de uma ladeira, na metade da rua principal da cidade. Alice sugou um pouco de ar, tomando coragem para encarar a subida. Não era uma ladeira tão íngreme, mas o cansaço do dia lhe chegava, minando suas forças.

Cascabulho era uma cidade pequena, com poucas ruas e uma população humilde, cuja maioria era formada por trabalhadores rurais. Ela seguiu seu caminho em meio a sorrisos, “ois”, “tchauzinhos” e inclinares de cabeça. Àquela hora, as pessoas começavam a se reunir nas calçadas, tendo conversas vagarosas sobre o dia no campo, enquanto compartilhavam uma xícara de café.

O bar do Tonho ficava em frente a pracinha da cidade, onde também se localizava a escola primária, a prefeitura e a delegacia. Uma acanhada agência dos correios finalizava o quarteirão.

Ela parou diante do estabelecimento. Recuperava-se da subida até ali, admirando a moto estacionada em frente à entrada. Era um modelo clássico e potente, do tipo que se via em filmes e grandes centros, e nunca em um lugar como aquele. Ficou ainda mais curiosa para conhecer a dona dela.

Antes de entrar, Alice ergueu o olhar para ler a placa que anunciava o estabelecimento como “bar e pousada”, o único em dezenas de quilômetros. Diferentemente do bar, a pousada raramente tinha hóspedes para o pernoite.

Como era esperado para um fim de tarde, o Gota Serena, assim se chamava o lugar, estava apinhado de gente, apesar de ser uma quarta-feira. Alice caminhou com passos gingados até o fim do salão estreito, sentindo um aperto no peito por não ver um homem de quase dois metros de altura, usando um avental preto e engordurado, servindo fartas doses de cachaça para os clientes no balcão.

Dois meses tinham se passado, desde que um grupo de homens mascarados e armados, invadiu a residência de Tonho e o arrastou para a rua entre socos e pontapés, em meio a insultos e gritos. O golpe final tinha sido um tiro na cabeça. E como Seu Mariano havia afirmado, todos sabiam quem eram eles, mas ninguém jamais falaria.

Foi um crime bárbaro e traumatizante para toda a cidade. Afinal, Tonho era muito querido. Felizmente, os ferimentos não o mataram, entretanto, permanecia em estado grave. As autoridades do lugar juraram que prenderiam os culpados, porém, nada faziam realmente. Havia sido uma declaração teatral, afinal, comiam na mão do fazendeiro Silvestre Rocha.

Atrás do balcão, Alice avistou uma mulher. Ela estava de costas, concentrada em retirar uma garrafa de cachaça da prateleira. Alice ainda não tinha visto seu rosto, mas entendeu rapidamente o motivo das desconfianças de Seu Mariano. A forasteira tinha os cabelos curtos, um pouco abaixo das orelhas. Usava uma camiseta preta, que escondia a maior parte da tatuagem nas costas, mas, em contrapartida, revelava a tatuagem que recobria o braço direito, do ombro até o pulso, como se fosse uma segunda pele.

Curiosa, encostou-se no balcão. A mulher se voltou com uma sobrancelha arqueada, lhe dirigiu um olhar rápido e encheu o copo do rapaz ao seu lado. Uma dose farta de cachaça, a qual ele agradeceu com um meneio de cabeça antes de se afastar e sentar na mesa mais próxima.

— Você deve ser a Dakota — Alice sorriu, amigável.

Não foi seu aspecto, mas sim, a frieza do olhar que lhe inspirou desconfiança. Entretanto, Dakota sorriu de volta.

— Acho que estou em desvantagem — ela falou com um sotaque suave, cuja origem Alice não soube identificar.

— Sou Alice, amiga do Tonho — ofereceu a mão para ela.

Dakota a segurou, rapidamente. Um toque suave, mas firme.

— É um prazer, Alice, amiga do Tonho. Em que posso te ajudar? — quis saber.

— Desculpa! Você está trabalhando, mas será que poderíamos conversar rapidinho?

— Claro — Dakota girou uma faca entre os dedos, fatiou uma laranja, jogou em um recipiente junto com açúcar e começou a macerar.

Alice acompanhou seus movimentos por alguns segundos.

— Sem rodeios! O que você faz aqui?

A forasteira arqueou uma sobrancelha, enquanto atirava gelo em um copo.

— Trabalhando — respondeu, simplesmente.

— Você não me entendeu. Há dois meses, isto aqui pertencia ao Tonho. Hoje, vim pegar suprimentos na cidade e recebi a notícia de que você comprou o bar.

Dakota jogou um pouco de suco de laranja e uma dose de uma bebida vermelha na coqueteleira, agitou-a um pouco e despejou o líquido no copo com gelo. Depositou-o diante de Alice.

— A maioria das pessoas deste lugar aprecia cachaça ou cerveja, mas você tem cara de quem gosta de algo diferente — disse ela. — Vou ficar te devendo a cereja, mas garanto que vai gostar do drinque.

A moça entreabriu os lábios, surpresa.

— Vá em frente, é por conta da casa — fez um gesto para que provasse a bebida.

Desconfiada, Alice a pegou, tomou um gole e sorriu.

— Está uma delícia — admitiu. — Como sabia do que gosto?

— Suas expressões falam muito — respondeu, enigmática, porém com ar de galhofa.

— Devo mesmo ser muito transparente para que desse um palpite tão certeiro — tomou outro gole do drinque.

Dakota arqueou os lábios, sem concretizar o sorriso. Foi até a prateleira e pegou a garrafa com a bebida vermelha. Colocou sobre o balcão e a girou, de forma que pudesse ler o rótulo onde seu nome estava rabiscado com a letra de Tonho. Os olhos de Alice marejaram e ela inspirou fundo, antes de contar:

— É, praticamente, a única coisa alcoólica que tomo e ele fazia questão de ter sempre uma garrafa no estoque, para me oferecer — passou a mão nos olhos, para afastar o choro. — Obrigada.

Dakota deu de ombros e colocou a garrafa de lado. Apoiou-se no balcão e pediu:

— Por favor, me fale sobre a versão que você ouviu a respeito da minha chegada à cidade.

— São tantas assim?

— Você nem imagina! A última que ouvi dizia que eu era uma amante secreta do Tonho — riu baixinho.

— Faz parecer que a ideia é absurda — observou, tomando outro gole da bebida. Afinal, Tonho era um homem gentil e atraente.

— Pelo contrário! Talvez essa seja a verdade. Ou, quem sabe, a versão de que sou uma detetive, investigando o que se passou com ele. Para ser sincera, todas elas me agradam.

— Por que gosta desse tipo de fofoca? — estava cada vez mais interessada naquela estranha.

— Por causa deles! — Dakota retrucou com ar de galhofa.

Ela apontou para as mesas cheias e os olhares que, embora disfarçados, estavam sobre elas.

— Quanto mais curiosos ficam sobre mim, mais este lugar fica cheio.

Alice passou os olhos pelas mesas, admitindo para si mesma que estava seguindo o caminho errado naquela conversa. Decidiu contar o que Seu Mariano falou e viu a forasteira se divertir com os detalhes.

— A imaginação dessa gente não tem limites — disse Dakota, ao final do seu relato. Ela descansou os cotovelos no balcão e o ar jocoso desapareceu completamente. — Infelizmente, Tonho ainda se encontra na UTI. O estado é bastante grave.

Fez uma pausa ao perceber a tristeza que tomou Alice.

— Os médicos não sabem quando, nem se ele irá acordar — completou.

Alice se desagradou da frieza em suas palavras, apesar de expressarem algum pesar. Após um momento de silêncio, Dakota se endireitou e, de modo displicente, falou sobre si:

— Agora, vamos a verdade sobre mim ou quase; afinal, preciso manter um pouco do mistério, em nome dos negócios. Este bar me pertence também, pois sou sócia do Tonho, desde que o abriu. Já que ele se encontra impossibilitado de cuidar do negócio, cá estou.

— Nunca ouvi nada a respeito disso — a ideia pareceu absurda para Alice.

— Nunca foi necessário comentar. De qualquer forma, a minha estadia à frente do negócio será breve — soou confiante.  O piercing em formato de argola no seu nariz, refletiu a luz do teto, enfatizando o fato de que realmente não pertencia a Cascabulho.

Correndo o risco de ser preconceituosa como o resto da cidade, Alice também se permitiu achar a amizade, que ela dizia ter com Tonho, uma ideia quase absurda. Dakota não parecia ter nada em comum com o amigo. Seu jeito de falar, os modos e a aparência eram muito distantes das pessoas com as quais Tonho se relacionava.

Indiscreta, deixou o olhar vagar pelo rosto de tez morena, de onde uma pequena cicatriz se projetava na testa. Dakota não era uma mulher bonita, pelo menos, não nos padrões “exagerados” da sociedade. Contudo, era atraente.

Enquanto a admirava, também era avaliada por ela, e notou uma ruguinha discreta no canto de sua boca. Incomodada, baixou a vista para o braço dela, observando a tatuagem que o preenchia.

— Desenhos… — murmurou com o princípio de um sorriso. — Jeremias disse que você tinha desenhos. Agora, compreendo.

Dakota acompanhou seu olhar, deslizando a ponta dos dedos pelos traços coloridos em sua pele.

— É um garoto esperto, gostou delas — contou.

— Não se veem muitas pessoas como você por aqui.

— Pessoas como eu? E que tipo de pessoa eu sou?

— Não quis ofender. É que você destoa dos locais — remediou.

— Não me sinto deslocada — garantiu a outra.

Alice ergueu as mãos em um pedido de desculpas, que não conseguiu pronunciar.

— Não precisa. Compreendo o que quer dizer — Dakota a interrompeu.

Mesmo assim, Alice deu voz ao novo pedido e apressou-se a mudar de assunto:

— Acho melhor falar sobre o outro motivo que me trouxe aqui, antes que diga outra besteira.

Na mesa do canto, próximo ao balcão, homens jogavam cartas. As apostas eram apenas grãos de feijão e, desde que não envolvesse dinheiro, Tonho nunca se opôs ao jogo em seu bar. Eles acompanharam a chegada de Alice, e a cumprimentaram quando passou pela mesa. Agora, fingiam estar atentos ao jogo, enquanto conversavam obscenidades.

Dakota resvalou o olhar na mesa, pensativa. Então, concentrou-se em Alice.

— Vá em frente — incentivou-a.

— Algumas pessoas me falaram que você entende de mecânica e, no momento, me encontro com uma caminhonete cheia de mantimentos e quebrada em frente à venda do Seu Mariano — concluiu, de um fôlego só.

Risadas explodiram na mesa do jogo e ouviram uma mistura de insultos e piadas. Os homens mantinham os olhos nas cartas, enquanto falavam. Todavia, estava mais que claro que o conjunto de piadas de mau gosto e obscenidades, era dirigido a elas, ainda que tentassem disfarçar.

Alice se aprumou; uma tonalidade rósea tomou sua face. Primeiro, pelas palavras que seus ouvidos captaram e, segundo, pela raiva que a tomava. Inspirou fundo, abrandando os sentimentos.

— Desculpe por isso — disse.

A forasteira não afastou o olhar dela, nem por um instante.

— Pelo quê?

O desconforto de Alice aumentou. Sentia-se um objeto em exposição. Explicou:

— Ser lésbica nesta cidade é fazer um convite para todos os machistas se divertirem entre piadas sujas e tentativas ridículas de oferecerem seu “membro”, como se isso pudesse ser uma “cura” para o homossexualismo — respondeu, mordiscando o lábio pela forma inflamada com que falou.

— Te incomoda? — Dakota deu aquele sorriso discreto, novamente.

Tamborilando os dedos na madeira do balcão, Alice findou seu drinque e garantiu:

— Não mais. Contudo, às vezes, fico chateada por nos encontrarmos em uma época cheia de maravilhas tecnológicas, avanços na medicina, aceitação e, ao mesmo tempo, repleta de ignorância. Não é culpa deles. São pessoas humildes, criadas com valores antiquados, por pais ainda mais humildes e ignorantes.

— Isso não os exime do fato de que escolheram manter suas mentes fechadas. Oportunidade e educação podem influenciar nas percepções e opiniões das pessoas, mas ter ambos também não quer dizer que pensarão diferente. Não é preciso ter estudo para ter empatia e se colocar no lugar do outro, tampouco respeitar. O mundo é o que é. Se ele fosse perfeito, certamente, não existiriam humanos. 

Ela ergueu o tampo do balcão e cruzou a portinhola. Alice escondeu um sorriso ao ver os jeans rasgados e os coturnos que compunham seu visual. Dakota se aproximou da mesa e falou algo para os homens que a ocupavam. Imediatamente, o silêncio imperou nela. Retornou para junto de Alice, fazendo um gesto para o rapaz que mexia no celular, encostado à parede. Ele era um dos ajudantes de Tonho.

— O que disse a eles? — Alice perguntou.

— Nada de mais. Só pedi a gentileza de conversarem mais baixo e evitarem palavrões e opiniões desrespeitosas sobre religião e sexualidade que pudessem ofender os outros clientes.

— E aceitaram numa boa?

— Era isso ou procurar outro lugar para beber e jogar — ela sorriu de lado, pois não havia nenhum bar em um raio de cinquenta quilômetros.

O garoto se aproximou, enfiando o celular no bolso de trás da calça.

— Vou sair — Dakota informou para ele. — Feche tudo daqui duas horas.

Ele meneou a cabeça e foi para trás do balcão com ares de tédio.

— Venha, vamos descobrir o que aconteceu com a sua caminhonete.

***

Estava quente para o início da noite e o suor grudava suas roupas à pele, enquanto aguardava Dakota se manifestar.

— Você acha que tem jeito?

Dakota limpou as mãos em uma flanela velha e tomou um gole longo da água que Jeremias lhe entregou.

— Não sou mecânica, mas entendo de motores. E este já está pedindo o lixo há bastante tempo. Estou surpresa por você ainda conseguir se locomover com ele.

Ela não expressava as emoções, mas os olhos tinham um suave brilho de admiração pelo carro antigo. Fechou o capô e devolveu o copo para Jeremias.

— Ah! Foi o que eu disse a ela! — Seu Mariano se balançou, vigoroso, na cadeira.

— Você pode consertar? Eu posso pagar! — Alice atalhou, interrompendo a próxima frase venenosa do velho.

— Já está bastante escuro, mas posso dar uma olhada amanhã. Só não tenha muitas esperanças.

— Eu agradeço.

Dakota escorou na porta do carro, ainda tirando o óleo das mãos com a flanela. Seu Mariano aproveitou a oportunidade para matar a curiosidade:

— O que você veio fazer aqui, neste fim de mudo? E não me diga que é pra servir bebidas. Você tem cara de encrenca.

— Seu Mariano! Está sendo grosseiro. — Alice chamou a atenção do velho.

— Não fazendo nada de mais, Dona Alice. A moça responde se quiser.

Dakota pareceu se divertir com a atitude dele e respondeu:

— Com certeza, não foi para isso que vim até aqui — indicou a caminhonete e deu uma tapinha no capô, antes de começar a se afastar.

A resposta atiçou ainda mais a curiosidade do velho, que não se conteve e insistiu:

— E pra quê foi?

Dakota deteve o passo.

— O senhor tem razão, eu gosto de encrenca. E estou aqui para matar alguém.



Notas:

Oi, gente!

História nova, que estava na minha gaveta há um bom tempo. Ainda não tenho certeza sobre os dias de postagens, pois estou tentando fazer um ajuste no texto já escrito.

Mas se gostam de histórias como Crimes do Amor e Reféns do Desejo, vão curtir essa daqui.

Beijos e xêros!




O que achou deste história?

6 Respostas para 2. Forasteira

  1. Apesar do termo homossexualismo ter me batido atravessado, achei ótimo o primeiro capítulo, adorei.

    Acho que a Dakota não mentiu quando disse a que veio. Será que ela pretende vingar o Tonho?

    • Oi,

      Desculpe qualquer coisa. Mas que bom que isso não tirou sua empolgação com a história!

      Abraço!

  2. amomuitotudoisso kkkkkk
    crimes do amos e reféns do desejo já li e reli mais de a vez
    penso que essa Dakota tenha algo a ver com a irmã de Tonho e Alice já joga na lata sou do brejo kkkkkk kkkkkk

    • Oi, Rose!

      Que bom saber que gosta dessas histórias. Espero que esta também se torne querida pra você!

      Beijos!

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