8.

I

Carla olhava para o céu azul do início da tarde. Estava em pé, diante da janela de seu escritório. Podia sentir o olhar de Carolina às suas costas, vindo de sua sala do outro lado do corredor. Sabia que a moça a analisava, estudava, procurava uma maneira de vence-la, de a destruir.

Havia cometido o erro de acreditar, dias antes, quando se negou a ajudar Santiago a espioná-la, que Carolina poderia estar começando a simpatizar com ela. Como veio a descobrir naquela manhã, ela era uma fera acuada, à espera do momento certo para dar o bote.

Carolina havia se atrasado para o café da manhã e, como Carla tinha um compromisso na primeira hora, foi à sua procura em seu quarto. A porta estava entreaberta e entrou sem se anunciar, percebendo em seguida, que ela estava no banho. A porta do banheiro estava aberta e lhe oferecia uma visão clara do espelho sobre a pia cujo reflexo do corpo nu de Carolina prendeu sua atenção e lhe arrancou um suspiro de admiração.

Se permitiu observa-la, extasiada, por um longo e prazeroso minuto até que se deu conta do quanto aquilo seria difícil de explicar caso a moça notasse sua presença. Então, virou-se para partir, mas o caderno aberto sobre a escrivaninha capturou sua atenção.

Não era o tipo de pessoa que gostava de bisbilhotar, mas uma palavra de cinco letras se formou diante de seus olhos no milésimo de segundo em que observou as linhas preenchidas com tinta azul. Havia lido o seu nome. Então, a curiosidade foi mais forte e leu rapidamente os três parágrafos que compunham o desabafo de Carolina.

Ela queria fugir outra vez. Não era uma novidade.

Ela a odiava. Era um fato e não precisava ser um gênio para sabê-lo.

Ela a culpava pela morte de Bento e queria matá-la. Aguardava o momento certo.

Depositou o caderno na escrivaninha com as mãos firmes de uma assassina fria e calculista, arrumando-o com cuidado, deixando-o na exata posição em que o encontrou. Viu seu reflexo na janela, um pouco antes de se afastar em direção a porta. Seu aspecto era frio e imperturbável, como um lago congelado. No entanto, seu interior era um vulcão cuspindo larva, cheio de fúria.

Ela a queria morta, era justo. Ainda assim, sentia-se magoada.

— O que faz aqui? — a voz de Carolina a alcançou antes que chegasse à porta.

Ela se voltou, os cabelos longos cortando o ar como um belo chicote loiro. No rosto, a máscara de frieza que usava todos os dias e só abandonava no abrigo de seu quarto quando se retirava para dormir.

— Vim chama-la. Tenho um compromisso daqui a pouco.

Dando-se conta de que havia esquecido de jogar fora seu desabafo, Carolina caminhou até a escrivaninha, enrolada na toalha. Tentando não chamar a atenção, fechou o caderno, enquanto fingia procurar algo em uma das gavetas.

— Só preciso de cinco minutos — informou.

— Apresse-se — Carla ordenou, dando-lhe as costas.

Um carro entrou no estacionamento e, apesar da altura e distância em que se encontrava, a luz do sol refletindo em seu para-brisa a incomodou e ela deu um passo atrás voltando ao presente. Irritada, vislumbrou Carolina em sua sala, então caminhou até a porta e a fechou com força.

II

Carolina a observava havia algum tempo e se encolheu quando a viu fechar a porta da sala com violência. Por natureza, Carla mal abria a boca para falar, mas naquele dia, estava mais calada que o de costume. Além disso, apesar de geralmente parecer indiferente a tudo, seu semblante lhe pareceu abatido.

Fitou a porta fechada por um longo tempo, pensando na sorte que tivera. Estava tão distraída naquela manhã, que havia esquecido o caderno, que usava para desabafar, aberto. Carla poderia tê-lo lido se tivesse chegado minutos antes dela sair do banho. Felizmente, a sorte lhe favoreceu naquele momento, mas não voltou a ajuda-la quando chamou Carla, impedindo que saísse do quarto.

Sua carcereira se voltou e, por um instante, Carolina pensou ter visto raiva em seu olhar. No entanto, concluiu que havia sido apenas impressão.

— Sim? — ela disse, enfiando as mãos no bolso da calça.

Carolina se encolheu, escolhendo as palavras. Precisava ter cuidado para não demonstrar a raiva que a dominava naquele dia em particular.

— Posso lhe pedir um favor?

— Estou ouvindo.

Com cuidado, respirou fundo e falou, constatando que a frase soou bem melhor em sua mente do que em seus lábios.

— Gostaria de poder ir ao cemitério hoje e levar flores ao túmulo de Bento.

Se estivesse vivo, Bento estaria fazendo aniversário naquele dia e, desde que se lembrava, sempre comemoraram a data juntos. Encontrava-se em um dia ímpar e a certeza de que os jantares, brincadeiras e presentes naquela data jamais voltariam a se repetir a enchiam de dor e raiva. Naquele momento, fazia um esforço quase sobre-humano para não demonstrar o desprezo que sentia por Carla e o desejo que tinha de se vingar.

A loira a encarou duramente por alguns segundos, então se pronunciou:

— Não.

Carolina adiantou-se, engolindo a raiva, humilhando-se.

— Por favor! Hoje é…

— Não insista.

— Por favor, só desejo…

— Desejos nem sempre se realizam, Carolina. Acostume-se.

— Você poderia pedir ao Tito. Talvez ele ou Júnior…

— Sinto, mas não posso dispor de ninguém para acompanha-la.

Quando ela fechou a porta atrás de si, Carolina se permitiu chorar e, cheia de raiva, atirou a luminária, que ficava sobre a escrivaninha, na parede.

Havia passado parte do dia tentando se concentrar no trabalho, pensando em maneiras de fugir novamente, de alcançar sua vingança. Odiando-se por ser fraca e medrosa diante de sua inimiga.

— Então, é aqui que ela te esconde.

Carolina ergueu o olhar da tela do computador e focalizou a mulher parada à porta. Uma boca pequena e de lábios finos, lhe enviou um sorriso do meio de um rosto gorducho e muito maquiado.

— Perdão?

A mulher deu um passo à frente e o salto que usava fez sons secos no piso. Era baixinha, apesar dos quinze centímetros extras dos seus sapatos.

— Sou Marieta — apresentou-se. — Trabalho no departamento pessoal.

— Carolina, prazer.

Marieta sorriu, anotando algo na agenda que segurava.

— Posso ajuda-la em alguma coisa? — Carolina perguntou, incomodada.

— Na verdade, sim. Preciso falar com a chefa, mas ela está com a porta fechada, então é melhor deixar recado.

Franziu a testa e Marieta sorriu.

— Nunca viu a porta fechada? — ela questionou.

Carolina deu de ombros.

— Não. Qual o problema?

Marieta depositou um envelope em sua mesa, enquanto explicava:

— Não me leve a mal, as más e boas línguas desta empresa gostam de tê-la como assunto. Só estou repetindo o que ouvi. Alguns dizem que a porta fechada significa que ela está de mau-humor.

— E?

— Prefiro não estar por perto quando o humor dela estiver negro, se bem que…

— É bem difícil perceber — Carolina completou.

Marieta sorriu, sem graça, e suas bochechas ficaram vermelhas.

— Desculpe, ela é uma boa chefe, mas prefiro evitar problemas. Eu falo demais às vezes — fez uma careta. — Poderia lhe entregar o envelope? Ela me pediu urgência nisso.

Sem esperar a resposta, ela se despediu com um aceno e partiu, o som de seus passos desaparecendo aos poucos, enquanto se afastava pelo corredor.

— Mau-humor? Como se ela tivesse algum! — falou para os seus botões, voltando a se concentrar na tela do computador.

Quando Carla abriu a porta, meia hora depois, Carolina obrigou-se a cruzar o corredor e lhe entregar o envelope que ela pegou sem erguer o olhar e se colocou a analisar o conteúdo.

Carolina se demorou alguns segundos a observando, notando que lhe parecia exatamente igual a todos os dias: Fria como uma pedra de gelo. Mas, havia algo diferente, as mãos dela seguravam o conteúdo do envelope com firmeza, enquanto a arma que sempre usava em um coldre axilar por baixo do casaco repousava sobre a mesa, próxima ao telefone.

Carolina fitou o objeto imaginando se poderia pegá-lo sem que ela o notasse. Analisando suas chances de ser mais rápida que ela que, com certeza, não demoraria para reagir. Desejando pôr fim à sua existência nefasta.

Aquela parecia ser a oportunidade que esperava e, inconscientemente, deu um passo à frente e a arma ficou ao alcance de suas mãos.

— Carolina — Carla a chamou e ela se sobressaltou.

Voltou-se para ela, descobrindo que ainda matinha o olhar baixo e fixo nos papéis em suas mãos.

— S-sim?

— A realidade costuma ser bem diferente da imaginação. Há sempre consequências e elas nem sempre são agradáveis.

— Eu acho que não entendi.

Carla ergueu o olhar para ela.

— É apenas algo em que gostaria que você pensasse, enquanto adianta o que puder do seu trabalho, pois vamos embora daqui uma hora.

Carolina meneou a cabeça e se dirigiu para a porta, entendendo o recado que ela lhe dera: Estava sempre consciente de tudo que se passava à sua volta.

III

Carla havia pego uma rota diferente naquela tarde. Em vez de irem para casa, estavam se dirigindo para o centro comercial da cidade e, alguns minutos depois, estacionou o carro diante de uma joalheria.

Carolina a acompanhou, distraída. Ainda pensava no brilho da arma sobre a mesa de Carla, convidando-a a ceifar a vida daquela que a aprisionava. E, também, repassava suas palavras com a certeza de que ela havia lido seu desabafo naquele caderno e ficado ciente de seus planos.

Carla nunca deixou sua arma largada de forma displicente, nem mesmo em casa. Havia notado que, quando em casa, ela a colocava em um cofre no escritório. A estava testando, ou melhor, estava brincando com sua dor e desejo de vingança. Deixou a arma ao seu alcance para ter uma ideia do quanto estava disposta a se vingar. Provavelmente, havia tirado as balas também.

— Srta. Maciel, é um prazer revê-la!

A voz do atendente chamou a atenção de Carolina e a curiosidade latejou em sua mente quando percebeu onde se encontravam. Carla vestia-se com bom gosto, mas a única joia que usava, além de um par de brincos, era um anel. Vasculhou sua memória em busca de alguma lembrança dela usando algo mais que aquilo e nada encontrou, então fingiu observar as joias expostas, enquanto prestava atenção em toda a conversa que se desenrolava entre Carla e o homem que não abandonou o sorriso forçado em nenhum instante.

Carla havia encomendado brincos. Eram lindos e perfeitos. Confeccionados pelo melhor artesão… Entediada, Carolina parou de prestar atenção neles. Remoía sua raiva da loira, enquanto passeava o olhar sobre as peças expostas.

Não era uma grande fã de joias, ainda mais de valor tão alto. Contudo, sabia apreciar a beleza de peças simples e ficou encantada com um cordão de ouro com um pequeno pingente em forma de borboleta cravejado com pedras coloridas e até o experimentou com a ajuda de um dos atendentes, o que a distraiu por algum tempo. Quando se deu conta, Carla a chamava para partirem.

— Você não me parece o tipo de mulher que gosta de joias — comentou Carolina, um pouco azeda, enquanto Carla dava a partida no motor e arrancava com o carro.

— E que tipo de mulher eu sou?

Pensou em declinar da resposta, mas, às vezes, não conseguia evitar deixar seu desprezo por ela e pelo que fazia vir às suas palavras. Além disso, seu humor não estava dos melhores, graças a data e o que havia acontecido na sala dela horas antes. A todo instante, a imagem de Bento lhe vinha a memória.

— Assassina, traficante, psicopata? Qual você prefere? — sorriu com sarcasmo.

Carla pisou mais forte no acelerador. Era mesmo uma assassina, mas sempre que Carolina a lembrava disso, queria voltar no tempo e dizer não a proposta que Marcos lhe fizera treze anos antes.

— Estou em dúvida se gosto mais de assassina ou psicopata — respondeu sombria. — E você, qual prefere?

Carolina engoliu em seco, percebendo que havia ido, perigosamente, longe demais. Entretanto, respondeu:

— Definitivamente, psicopata — ampliou o sorriso.

Ainda tinha uma vingança a planejar e morrer antes de conseguir executá-la não era uma boa ideia. No entanto, estar ao lado de Carla, às vezes, aflorava seus piores sentimentos e ficava difícil se controlar.



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