5.
I
Marcos observava a fumaça de seu charuto ser carregada pelo vento que entrava através da janela aberta, às suas costas. Sorriu, enquanto cofiava a barba negra e bem aparada.
Ao longo de sua vida, poucas coisas o surpreenderam. Nem mesmo a fuga de Carolina lhe foi uma surpresa, mas a conversa rápida que tivera com Carla naquela tarde foi.
— Dois minutos — ele informou a ela com voz zangada, quando saíram da sala deixando Carolina e Santiago.
— Um favor pessoal — ela dissera, sua voz havia voltado ao tom baixo e calculado de costume.
Ele teve vontade de rir, mas sabia bem que Carla não era dada a fazer piadas. Caminhou em volta dela com a arma pesando na mão.
— Por quê? — quis saber.
— É um pedido pessoal. Basta dizer sim ou não.
— E se a resposta for “não”?
— Então, faça o que tem que fazer.
Ele estacou diante dela, a mão no queixo largo, um olhar ferino. Estava duplamente irritado agora. Carolina o havia traído e isso merecia punição e Carla havia pedido para não o fazer o que implicava, caso aceitasse o pedido dela, que poderia perder sua melhor associada.
— Você conhece as consequências.
Ela inclinou a cabeça positivamente e ele lhe entregou a arma, tomando sua decisão.
Agora, andava de um lado para outro, curioso para saber o que havia feito uma mulher sem coração, sem qualquer tipo de emoção, que sempre considerou uma verdadeira geleira, agir da forma que agiu e implorar pela vida de Carolina. Estava mais curioso ainda, em descobrir o motivo dele, um homem que não se dobrava diante de nada ou ninguém, que comandava o tráfico naquela região e em outras partes do país com mãos de ferro, ter assentido ao pedido dela.
Nunca poupou a vida de ninguém que o traiu. Mas, na hora, não julgou uma má ideia, pois não desejava pôr fim ao único pedaço de Lizandra que ainda existia e sabia que sob os cuidados de Carla, Carolina não lhe oferecia qualquer perigo. Além disso, manter a enteada com ela, seria um bom castigo já que sabia da aversão de Carolina à sua associada.
No entanto, a curiosidade sobre as razões de Carla não lhe saía da cabeça e batia o pé no chão, incomodado, quando ela entrou em sua sala na manhã seguinte.
Ela usava um terninho risca de giz que a fazia parecer uma mulher saída de uma revista de moda. Sempre elegante, sempre altiva. De modo algum, parecia-se com a jovem que ele quis matar anos antes, após ela ter assassinado um de seus melhores homens. Jamais teria imaginado que àquela moleca de rua, suja e desgrenhada, o tornaria muito mais rico do que já era, nem que seria tão fiel quanto um cão.
A observou se aproximar. Estava sempre vestida de preto ou branco, o que a fazia parecer ainda mais branca do que era. Os cabelos longos, caiam-lhe até a cintura, presos por um rabo de cavalo rígido. Marcos admirava aquela figura com certa avidez. Para ele, Carla sempre se apresentava de um modo diferente a cada vez que se viam. No entanto, ele não a enxergava como uma mulher com a qual desejava ir para a cama. Pelo contrário, a respeitava como uma igual e até lhe dedicava algum afeto.
Sem pedir permissão, ela se acomodou na cadeira diante dele. Em seu rosto, a ausência costumeira de qualquer emoção.
Marcos apagou o charuto, ainda pela metade, com um pouco de pena. Fumar era um hábito recente, mas ele o apreciava. No entanto, naquele momento, não queria se distrair.
— Ainda não compreendo porquê pediu pela vida de Carolina. Por acaso se interessa por ela? — sorriu malicioso. — Sei muito bem do seu gosto pelo sexo feminino.
Marcos estava apenas mexendo com ela. Carla era um verdadeiro iceberg, não havia nada naquele coração. A frieza em sua superfície, era mil vezes pior em seu interior. As mulheres eram, para ela, um brinquedo assim como os homens que matava com aquele sorriso diabólico. Se ela queria brincar com Carolina, que brincasse então. Ela não era mais um problema seu e, de certo modo, havia respeitado a memória de sua esposa ao poupar-lhe a vida.
Como esperado, ela não respondeu. Não interessava a Alvarenga o que sentia ou não por Carolina.
— Santiago me disse que você não a castigou devidamente.
Ela cruzou as pernas, despreocupada.
— Como você bem sabe, Santiago é um pouco exagerado. Se tivesse prosseguido, como ele queria, acabaria por matá-la.
Ele alisou o bigode, observando-a com atenção, tentando imaginar seus reais sentimentos, tentando encontrar um pouco mais da humanidade que demonstrou ao pedir pela vida de Carolina, mas só encontrou o velho e costumeiro gelo.
— Certo — ele concordou, pensativo. — Não quero mais aquela ingrata tentando escapar. Nem a quero mais em minha casa. Você que se responsabilize por ela e trate de lhe ensinar que ninguém foge de mim e nem me rouba.
Ela inclinou a cabeça positivamente e ele continuou:
— Que ela saiba que se tentar novamente, morrerá. E, se isso vier a acontecer, nem mesmo você conseguirá me fazer mudar de ideia.
— Se isso acontecer, eu mesma tirarei a vida dela.
Ele fez um gesto com a mão e Carla se pôs de pé, indo de encontro a uma garrafa de uísque sobre uma mesa no canto da sala. Despejou o líquido em um copo com generosidade e o entregou ao chefe. Ainda era cedo para beber, mas para Marcos, nunca havia hora própria para degustar um bom uísque.
— Você nunca me pediu nada, — ele afirmou, tomando um longo gole da bebida em seguida — sequer reclamou de nada que lhe tenha mandado fazer. Por quê?
— É o meu trabalho.
— Mesmo assim, você não pode concordar com tudo o que faço.
— E não concordo.
— Então, por que nunca disse nada?
— Porque, geralmente, você está certo.
Ele riu, fazendo uma careta.
— Durante todos esses anos, você me foi fiel. Por isso, desta vez, lhe atendi o pedido. Mas, não se iluda, não haverá uma próxima vez.
Seus olhos estavam fitos nela e observou algo realmente raro acontecer, ela sorriu. Um sorriso de canto de boca, quase maldoso.
— Se Carolina tentar qualquer coisa do tipo novamente, as duas morrerão — ele completou, depositando o copo sobre a mesa com um pouco de violência. — Espero que tenha entendido.
— Perfeitamente — ela anuiu, erguendo-se da cadeira e lhe dando as costas para sair, mas se voltou. — Existem duas razões para ter pedido pela vida dela.
Ele se recostou na cadeira em que se encontrava, os olhos brilhando de curiosidade.
— A primeira, — ela continuou — é que Lizandra me pediu para cuidar de Carolina e eu prometi que o faria.
Carla observou o maxilar dele se contrair ao ouvir o nome da falecida esposa. Assim como ela, Marcos estava bem longe de ser um santo, mas o amor que sentiu por Lizandra era, definitivamente, algo que Carla admirava.
— Quando?
— Um pouco antes dela morrer — ela respondeu, quase sussurrando e os olhos marejados de Lizandra lhe vieram à mente.
— Por que nunca me disse?
— Faria alguma diferença?
Ele balançou a cabeça, negativamente. Mesmo assim, teria gostado de saber.
— Qual a segunda razão?
Ela o fitou por um longo instante, então se virou e caminhou em direção a porta, dizendo:
— Esta, não lhe diz respeito.
— Carla — ele a chamou antes que saísse. — Isso não muda nada.
Com um inclinar de cabeça, ela fechou a porta. Havia bem pouca coisa que temia em sua vida e Marcos Alvarenga não era uma delas.
II
A madrugada já ia avançada quando Carla voltou para casa. Estava cansada e suja. Suas roupas tinham uma fina camada de poeira e a barra da calça que usava, assim como os sapatos, tinha uma crosta de lama seca.
— Tentaremos de novo amanhã — informou Tito a ela antes que descesse do carro.
Ele era um de seus homens de confiança e a obedecia quase cegamente. Carla não apreciava ter capangas à sua volta como moscas, mas no submundo em que vivia, necessitava delegar algumas funções.
Sentados, lado a lado, no interior daquele carro, formavam uma dupla interessante e contrastante. Ela, muito loira e de pele alva, magra, alta e de aparência delicada. Ele, corpulento e ameaçador, baixo e de tez morena.
Ela fechou a porta do carro com força e olhou para a janela do quarto de Carolina. A luz estava acesa quando o carro cruzou os portões, mas havia sido apagada quando estacionaram.
— Reúna mais homens e ofereça uma recompensa — ela ordenou, inclinada na janela do veículo e ele lhe dirigiu um sorriso muito branco antes de manobrar o carro e partir.
Um pouco irritada, ela ainda se demorou a observar a noite estrelada antes de, finalmente, entrar em casa. Na cozinha, encontrou Maria à sua espera com o jantar recém aquecido. Ela abraçou a índia com carinho e estalou um beijo em sua bochecha.
— Já disse para não me esperar — reclamou na língua indígena.
A índia sorriu e lhe dirigiu uma piscadela, enquanto a obrigava a se sentar e lhe servia o jantar.
— Estava lendo um pouco e ouvi o seu carro — respondeu, satisfeita por poder conversar na língua de seu povo, embora soubesse falar o português com fluência.
Carla sempre fazia questão de conversar assim e Maria acreditava que isso lhe trouxesse boas recordações da infância.
— Mesmo assim — voltou a reclamar Carla.
— Sabe que tenho muita satisfação em fazê-lo.
Carla abriu a boca, mas a moça pousou a mão em seu braço.
— Não reclame, apenas coma e vá descansar.
Vencida, ela obedeceu e aceitou com prazer a taça de vinho que a índia lhe entregou. Era a única bebida alcoólica que apreciava.
— Como ela está? — perguntou, entre uma garfada e outra.
Maria sentou-se ao seu lado, se servindo de uma taça também.
— Dormindo.
— Sente dores?
— Estaria surpresa se não sentisse — sorveu um gole do líquido em sua taça. — Você nunca trouxe trabalho para casa.
— Ela não é trabalho. Além disso, ela sempre voltou para casa comigo, aqui — apontou para o peito e se serviu de mais uma taça.