23.
I
Santiago mordiscou os lábios feridos ao ver a porta do quarto minúsculo em que estava ser aberta. Estava atado a uma cadeira desde que o levaram para lá, sentindo o cheiro e o gosto do seu próprio sangue, remoendo a derrota com o coração cheio de ódio, enquanto observava o tom amarelo pálido das paredes.
Um homem entrou e colocou uma cadeira diante dele, saindo em seguida. Minutos depois, a porta foi aberta outra vez para dar passagem a Carla que tomou assento na cadeira à sua frente, recordando-se que na última vez em que estivera naquele quarto tinha espancado Carolina até que perdesse os sentidos.
Enojado com sua presença, Santiago cuspiu no chão e recebeu um meio sorriso dela que segurava uma das agulhas que ele usara para tortura-la.
— Veio terminar o serviço? — questionou ele com voz grave, a garganta seca e dolorida pelo estrangulamento que Carolina lhe infligiu.
Carla girou a agulha entre os dedos, capturando seu brilho torturante por alguns segundos, então o mirou, deixando um suspiro entediado escapar.
— O ciúme e a inveja são parasitas que se alimentam de nossa alma. Se não estivesse tão cego por eles…
— Me poupe desse discurso idiota! Por que não vamos logo para a parte em que você me mata com aquele sorriso diabólico? Poupe seu tempo e o meu.
Ela sorriu, arqueando um dos cantos de sua boca, dizendo:
— Não serei eu a mata-lo, embora não me falte vontade para fazê-lo.
— Então, veio apenas para me torturar? — sorriu com ironia, embora se sentisse aliviado por saber que ainda não havia chegado sua hora apesar da pressa que havia demonstrado.
— Tortura não faz meu estilo. Prefiro ir direto ao ponto — ela declarou com voz cansada e se colocou de pé. — Só vim aqui para dizer que você tinha razão.
O olhar negro de Santiago demonstrou surpresa e suas sobrancelhas espessas se uniram momentaneamente.
— Como assim?
Carla curvou-se até que seus rostos ficaram a poucos centímetros. Ele sentiu seu hálito mentolado e o perfume silvestre que exalava de seus cabelos soltos e viu-se preso no mar cristalino em seus olhos.
— Eu me importo com ela.
Os olhos de Santiago se arregalaram ao compreender que fora enganado e que assim tinha perdido a oportunidade de vencê-la.
— Ela é a minha vida! — Carla completou e fincou a agulha até o fim na perna dele da mesma forma que fizera com Carolina.
II
Carla sentou pesadamente na cadeira. Seu corpo inteiro reclamava por um descanso mais que justo, mas ela precisava concluir o que se propusera a fazer. O grito de Santiago ainda ecoava em seus ouvidos. Não tinha intensão de mata-lo, isso cabia a Marcos, por isso apenas lhe devolvera uma de suas “gentilezas”.
Passou a mão pelos olhos, esfregando-os como uma criança. Havia dormido apenas três horas, mas sentia que poderia ter dormido uma semana, ainda mais nos braços de Carolina. Ali, sentia que poderia morrer de tão feliz.
A tinha deixado em um sono profundo com um sorriso leve nos lábios e desejou ser o sonho que lhe trazia aquele sorriso.
Mexeu-se um pouco incomodada com a tipoia que mantinha seu braço imobilizado e enxugou um pouco do suor na testa. Se encontrava febril, mas nada que pudesse lhe atrapalhar, afinal, logo estaria longe dali.
— Não devia estar repousando? — Marcos a questionou.
Seu olhar cruzou com o dele e o achou um pouco abatido também. Tinha olheiras profundas e o cabelo estava um pouco desalinhado, assim como a gravata. Tinha certeza de que não havia dormido.
— Sim, mas tenho um pouco de pressa em resolver as coisas entre nós.
Ele concordou sorrindo e juntando as mãos sobre a mesa. Carla sempre foi objetiva, sabia que não demoraria a procura-lo.
— Entendo. Naquele penhasco, você me contou algumas coisas, mas não me explicou como soube delas. Que tal começarmos por aí?
Ela focalizou o céu azul do meio da manhã que se apresentava poético e convidativo através da janela às costas dele e lhe contou tudo que havia descoberto ao longo dos últimos meses vendo uma tempestade se formando em seu olhar. Preferiu ocultar alguns detalhes, a fim de se poupar. Ao fim de seu relato, Marcos permaneceu alguns minutos em silêncio, digerindo tudo que lhe contou.
— Então, o garoto ainda está vivo? — quis saber, finalmente.
— Não mais — ela afirmou sem emoção.
Ele se recostou na cadeira e acariciou a pistola que sempre estava sobre a mesa, próxima ao retrato de Lizandra. Sentia-se muito cansado e isto nada tinha a ver com seu físico.
— Quando o questionei sobre assumir o lugar do pai, ele se negou. Disse que não sabia falsificar, que não tinha interesse. Sempre soube que era mentira. Rutger enchia a boca para falar, cheio de orgulho, como o filho era habilidoso e que um dia seria melhor que ele. No entanto, não o forcei. Se ele não queria participar, que assim fosse — coçou o queixo e Carla notou o quanto tantas traições estavam lhe pesando, ele aparentava estar dez anos mais velho. — Fui bom para ele, em memória de seu pai. Por que ele me traiu?
A última frase foi pronunciada quase sussurrada. Seu semblante, naquele instante, era quase de derrota.
— Ele amava Carolina — Carla respondeu simplesmente, sentindo o ciúme a consumir.
— Isso não é razão para ajudar Santiago — ele pontuou com raiva.
— É mais que o suficiente — Carla afirmou, recordando o modo como os olhos de Bento brilharam quando falou o nome de Carolina. — Ele quase morreu de verdade. Antunes o acertou no peito, mas ele foi sortudo. Usava um medalhão de prata no pescoço e foi ele que a bala de Antunes acertou. As chances disso acontecer são tão baixas que demorei muito tempo para acreditar na sorte que teve.
— Por que mandou que procurassem seu corpo?
Ela abriu um dos botões de sua blusa para aliviar o calor que sentia e fez uma breve careta.
— Porque não gosto de pontas soltas. O fato é que Santiago soube que o estava procurando e foi mais rápido. O encontrou, escondeu, convenceu a ajuda-lo. Ele queria proteger Carolina, queria salvá-la de mim, então fez o que Santiago lhe pediu.
Ela ajeitou-se melhor na cadeira, sentindo o efeito dos remédios que o Dr. Pontes lhe dera começarem a desaparecer. Uma dorzinha incomoda começou a se insinuar em seu ombro e cabeça e fez alguns movimentos circulares com a mãos nas têmporas.
— Santiago cometeu muitos erros. Forjar a morte de Bento foi um deles. E isso me permitiu descobrir seus planos.
— E quanto aos documentos? Como os conseguiu?
— Aquiles — respondeu secamente.
Marcos riu, abandonando um pouco de sua apatia.
— Pensei que vocês se odiassem. Aliás, pensei que você tivesse jurado mata-lo.
— Jurei. Talvez ainda o faça — admitiu com um leve dar de ombros que lhe arrancou um gemido baixo.
— Nunca me disse o motivo.
— Aquiles tem regras das quais não gosto — respondeu sem deixar margem para que ele continuasse no assunto. — A moça que me entregou o envelope, na noite passada, trabalha para ele. É uma velha amiga e uma das melhores no ramo de Aquiles. Você já a conheceu há alguns anos.
— Não me recordo.
— Exatamente por isso, ela é a melhor — sorriu levemente.
Ele voltou a ficar em silêncio, enquanto a observava com cuidado. Não lhe importava mais saber como as coisas haviam acontecido. Traição sempre seria traição. A verdade era que estava apenas protelando a pergunta que realmente lhe interessava.
— Acabou, não é mesmo? — perguntou finalmente, deixando que um pequeno suspiro lhe escapasse.
— Sim — Carla confirmou sentindo-se um peso abandonar seus ombros.
Ele cofiou a barba, fazendo um pouco de barulho.
— Você poderia ter ido sem nada me cobrar — afirmou ele. — Confiaria em você e em seu silêncio, assim como confiei nessa história toda com Santiago.
— Eu sei que sim.
— Então, porque me cobrar àquela dívida e me criar outra?
Ela sorriu dolorosamente. Um sorriso de verdade, bonito, tranquilo, charmoso e, pela primeira vez, ele a viu como Lizandra afirmava: cheia de vida.
— Para garantir que você não se oporia a Carolina ir comigo.
Ele absorveu suas palavras calmamente relembrando o dia em que ela havia pedido por Carolina e a conversa que tiveram depois. Recordou a apreensão na voz da enteada quando lhe pediu ajuda para ela, o rosto sereno de Carolina em sua cama e a forma como Carla a olhava na noite anterior em sua sala de estar.
Então, sorriu lentamente.
— Quer dizer que o seu coração não é tão gelado como pensam?
Carla ampliou o sorriso, encantando-o.
— Ele já foi — afirmou.
— Você a ama?
Ela se colocou de pé com uma careta.
— O que você sentia por Lizandra? — questionou.
A resposta foi rápida e sem hesitação.
— Eu a amei mais que a minha própria vida, ainda a amo — ele falava com o coração, não tinha medo de expressar o amor que sentia pela falecida esposa e muitas vezes isto lhe custou caro. — Por isso, quando você salvou a vida dela naquele tiroteio, disse-lhe que tinha uma dívida com você. Você salvou o meu bem mais precioso — sorriu, passando o dedo indicador carinhosamente no retrato da esposa, percebendo que Carla não era mais a moça fria que conhecia, seus olhos azuis tinham um brilho diferente, quase carinhoso, assim como as palavras que lhe disse em seguida.
— É por isso que o admiro — colocou algumas mechas de seu cabelo solto, atrás das orelhas, adquirindo um ar mais sóbrio. — Somos pessoas ruins, mas encontramos um pouco de luz em nossos caminhos. Talvez, um dia, Carolina ainda me olhe da mesma forma que Lizandra o olhava. Se este dia chegar, a Carla que você conhece, morrerá.
Ela começou a se afastar em direção a porta, mas ele a chamou.
— Voltaremos a nos ver algum dia? — caminhou até ela com passos largos.
— Não — Carla respondeu, apertando a mão que lhe era oferecida e foi surpreendida quando ele a puxou para um abraço.
Quando a soltou, seus olhares se cruzaram. Neles, havia a compreensão de que, mesmo sendo pessoas que caminhavam em um mundo sombrio, havia afeto entre eles. Embora nunca tenha pronunciado aquilo em voz alta, Marcos a tinha como uma filha e sentia-se um pouco desolado com sua partida.
— Cuide-se — pediu ele.
— Você também. Adeus.
III
Diana sorriu para Carolina quando a viu entrar na cozinha mancando um pouco. A morena vestia uma camiseta preta e um short que deixava à mostra o curativo onde uma mancha de sangue seco se destacava.
— Carolzinha!
— Não me chame assim — Carolina lhe enviou um olhar mortal e a ladra ampliou o sorriso.
— Deixa disso! É só um apelido carinhoso — se colocou de pé, abandonando o suco que tomava. Usava apenas um biquíni preto e tinha o corpo molhado. Caminhou até ela e enlaçou a sua cintura. — Vem, vamos tomar um pouco de ar puro e sol.
Carolina ainda tentou protestar, mas foi praticamente arrastada para fora de casa. Diana a ajudou a sentar em uma das esteiras em volta da piscina e se jogou em outra ao seu lado, deixando que o sol do meio da tarde acariciasse sua pele dourada.
Indiscretamente, Carolina a observou. Diana era tão alta quanto Carla, tinha coxas grossas e musculosas, seios médios, lábios vermelhos e convidativos. Notou que seus olhos não eram negros como havia pensado inicialmente, eram de um tom castanho escuro que ficou um pouco mais claro naquela luminosidade.
— Está gostando? — Diana perguntou com um sorriso traquina ao perceber que era analisada.
Carolina ficou um pouco vermelha e se deitou na esteira sem lhe responder.
— Acho que não, você prefere as loiras. Não é mesmo? — provocou Diana.
Carolina a achava irritante, mas sorriu ao lembrar de Carla, sentindo o coração mais leve e aquecido. Suas palavras fazendo eco em seu coração apaixonado. Ela a amava e o que viveram havia sido sincero.
Quando acordou, não a encontrou na cama, mas o seu perfume estava impregnado nos travesseiros e perdeu-se no tempo aspirando-o com um sorriso nos lábios.
— Então, me conta! — Diana sorriu maliciosa, chamando sua atenção.
Carolina a mirou e arqueou a sobrancelha, confusa.
— Ela é mesmo uma delícia, não é? — perguntou a ladra.
O olhar que Carolina lhe enviou poderia ter lhe partido ao meio se fosse possível e Diana deixou uma gargalhada cristalina escapar.
— Sabe, já vi muitas coisas bonitas nesta vida, mas o sorriso de Carla foi uma das mais lindas — Carolina semicerrou os olhos e ela continuou achando divertida a atitude da moça. — Não falo dos sorrisos que sempre me dirigiu. Sim, são bonitos e carinhosos, mas não se comparam ao sorriso que tinha nos lábios mais cedo, quando a vi sair de seu quarto. Aquele sorriso era perfeito, deslumbrante e foi você a causadora.
Diana lhe enviou um sorriso largo, meigo e muito branco e voltou seu rosto para o céu, fechando os olhos, enquanto continuava a falar.
— Acabei de ver o mesmo sorriso em seus lábios e isso me deixa muito feliz.
Carolina voltou a sentar-se na esteira, curiosa.
— Por quê?
Diana seguiu seu exemplo, sentando-se também.
— Por que ela merece ser feliz. Ora, sabemos que não é um anjo, mesmo se parecendo com um ou, pelo menos, imagino que sejam parecidos com ela. Enfim, Carla é um produto do meio em que viveu, teve de se adaptar para sobreviver e, no processo, deixou algumas emoções de lado.
— Como assim?
— Acha que ela foi sempre aquela geladeira? Que não se importa com o que faz? Ela pode não se arrepender, pois na vida que tem não cabe arrependimento, mas isso não quer dizer que não sinta também. Enfim, não sou eu que vou falar da vida dela para você, aliás, sei muito pouco a respeito, somente o que deixou escapar há muito tempo atrás. Mas, o que quero dizer é que a amo e desejo que seja feliz e você é essa felicidade.
— Se a ama, como pode estar assim tão calma? Não tem ciúmes?
— De Carla?! Sim, eu tenho um pouco, assim como sei que ela também tem de mim. Já fomos cliente e prestadora de serviços, inimigas, amigas-amantes. Hoje, somos só amigas.
— Não foi assim que me pareceu…
— As pessoas só veem o que querem. Eu vejo uma amizade com muitos benefícios, — riu — dos quais, alguns não são mais usados há um bom tempo.
Carolina sentiu o calor do ciúme lhe tomar e Diana percebeu isso.
— Deixe de besteira! A loira só tem olhos para você.
Como se o que ela disse tivesse de ser afirmado, Carla abriu a porta de vidro que dava para o interior da casa. Seus olhos azuis e cristalinos, brilharam alegres quando a viram. Nem por um segundo, ela se voltou para Diana. Esta, por sua vez, se colocou de pé e andou até a loira com o gingado de um felino, cheia de provocação. Beijou-lhe a face e entrou em casa.
Carla fechou a porta e caminhou até Carolina e sentou na esteira que Diana ocupava momentos antes.
— Oi — sua voz saiu rouca quando falou e Carolina a achou muito sensual.
— Oi.
— Sente-se bem?
— Sim e você?
Carla baixou o olhar para a tipoia, passou a mão nos lábios cortados e sorriu.
— Me sinto horrível! — admitiu.
Carolina riu e concordou.
— Verdade.
O silêncio se instalou entre elas por um minuto. Não era incômodo. Pelo contrário, era agradável, doce até, pois permaneceram em uma conversa muda com seus olhares. Havia neles, o brilho apaixonado de duas almas que se buscavam.
— Estou indo embora, Carol — Carla quebrou o silêncio, por fim.
— Embora? Como assim?
— Descobrir a traição de Santiago foi meu último trabalho para Marcos — ela pousou rapidamente o olhar nas águas da piscina que refletiam a luz solar assim como acontecia nos seus cabelos. — O que falei para você hoje cedo, é a verdade do meu coração. Por isso, gostaria que viesse comigo. Quero que me dê uma chance de provar os meus sentimentos por você, uma chance de conquistar o seu amor.
Ela ficou de pé e enfiou a mão livre no bolso da calça.
— Você é livre para ir para onde desejar, seja comigo ou não. Marcos não irá à sua procura, eu também não. Mas se vier comigo, saiba que farei de um tudo para lhe conquistar. E se, no fim, você ainda não me corresponder, não a impedirei de partir, mesmo que meu coração fique em pedaços.
Ela curvou-se e depositou um beijo suave em seus lábios, colocando em suas mãos um pequeno estojo que havia retirado do bolso e se afastou com passos lentos, voltando para o interior da casa.
Emocionada e um pouco confusa, Carolina abriu o estojo. Em seu interior, encontrou um cordão de ouro com um pequeno pingente em forma de borboleta cravejado com pedras coloridas. Era o mesmo que havia experimentado na joalheria quando foram pegar o presente de aniversário de Maria.
Sorriu, com uma lágrima a deslizar por sua face. Talvez houvesse esperança para elas, para aquele amor.