Um aviso antes que iniciem a leitura:

O capítulo a seguir contem cenas fortes de violência. Caso não se sintam bem lendo algo do tipo, recomendo aguardar o capítulo seguinte.

Um beijo e boa leitura! 


21.

I

O motor do carro roncou alto quando o motorista pisou mais fundo no acelerador forçando-o a avançar mais rápido pelas ruas escuras e desertas. Carla e Carolina sacolejavam no banco traseiro com as mãos atadas às costas. Ao lado da loira, um dos capangas de Santiago mantinha uma pistola semiautomática Ruger apontada para suas costelas. No banco do carona, ao lado do motorista, outro capanga segurava uma pistola Bereta, o que a fez se lembrar do filme Duro de Matar, já que aquela era arma que o protagonista usava. Achou engraçado pensar em filmes na situação em que se encontravam, mas logo voltou ao foco. A Bereta também era a pistola de sua preferência, embora usar as mãos fosse sempre a sua primeira opção. Para ela, nada se comparava a emoção do combate corpo a corpo.

Um solavanco a jogou em cima de Carolina e a moça gemeu ao bater a cabeça no vidro da janela.

— Você está bem? — Carla questionou, voltando ao seu lugar. Ajeitando-se da melhor forma que podia.

O brutamontes ao seu lado lhe enviou um olhar atravessado e fincou um pouco mais o cano da arma em suas costelas. Ocultando uma careta de dor, ela se voltou para ele com um sorriso distorcido.

— Quando isso acabar, vou fazer você engolir todas as balas dessa arma.

Ele lhe enviou um rosnado em resposta junto com um sorriso de superioridade pelos papéis que exerciam naquele momento, mas afastou a arma de suas costelas e ela se voltou para Carolina repetindo a pergunta, enquanto notava a expressão de dor em sua face.

— Vou sobreviver. Irei curtir muito os quarenta minutos que ainda tenho de vida — respondeu ela sem conseguir evitar o sarcasmo e notou uma leve ruga no canto da boca de Carla, um meio sorriso fugidio.

— Devia ter me obedecido e ficado no quarto — Carla a repreendeu. Ela havia voltado a ser fria, inexpressiva e assustadora.

Carolina a olhou magoada, pois ir até a sala havia sido um impulso de seu coração preocupado com o bem-estar dela.

— Duvido muito que ficar no quarto me mantivesse…

— Protegida — Carla completou. — É provável que não, já que Santiago foi bem enfático em afirmar que nosso caso e envolvimento neste… — seus olhos se fecharam brevemente como se buscasse a palavra correta e Carolina completou a frase como ela havia feito segundos antes.

— Plano diabólico?

— Eu ia usar a palavra “circo”, mas acho que “plano diabólico” também serve. Enfim, ele foi categórico em afirmar que estávamos nisso juntas. Dificilmente, Marcos deixaria isso passar. Aliás, seria estupidez se o fizesse. Acabaria por se mostrar fraco diante de seus associados, já que lhe poupou a vida uma vez.

Era o que realmente pensava, mas não conseguia deixar de sentir um pouco de raiva do chefe por ter arrastado Carolina junto naquela história.

— Ele disse que havia provas… — Carolina a fitou com intensidade, recordava-se bem de suas próprias palavras ao afirmar, noites antes, que ela não era do tipo que traía.

Carla capitou a dúvida em seu olhar e isso a abalou um pouco, pois sabia que tudo que tinha feito ao longo daqueles treze anos à serviço de Marcos e o que viesse a fazer no futuro, por mais bem-intencionado que fosse, sempre seria pesado e avaliado diante dos olhos de Carolina. Isso, claro, se ela viesse a aceitar o seu amor, já que tudo que tinham até aquele momento era apenas sexo. Todavia, para Carla, era a realização de seus sonhos mais puros.

— Elas existem — afirmou. — E, tenho certeza, são bem mais comprometedoras do que imagino.

Carolina olhou, através da janela, para as poucas estrelas no céu, sentindo o medo crescer em seu íntimo e descobriu o quanto ele podia ser mais intenso quando se temia pela vida de quem amava. O medo que sentiu, meses antes, quando Marcos quase a matou, não era nada comparado ao medo que sentia naquele instante por si mesma e, principalmente, por Carla.

— Você confia em mim?

Carolina afastou o olhar da janela para encontrar o azul gélido dos olhos dela à espera de uma resposta. Seu coração bateu forte, nem precisou pensar para responder.

— Sim.

Por um instante, Carla abandonou sua máscara de frieza e um sorriso se desenhou em sua face.

— Então, tudo ficará bem — afirmou.

A velocidade do carro foi reduzida e adentraram na propriedade de Marcos. Foram guiadas até os fundos do jardim e Carolina não pôde evitar o calafrio que percorreu sua espinha ao perceber para onde se dirigiam. A porta do barracão rangeu ao ser aberta para sua passagem e ela se viu novamente como a menina assustada que espiava pela fresta na parede, mas, desta vez, ela seria a vítima daquele lugar amaldiçoado.

Carla olhou o local com curiosidade. Havia treze anos que não entrava ali. Mesmo após começar a trabalhar para Marcos, nunca voltou a entrar naquele lugar. As lembranças lhe chegaram com impetuosidade e se viu ajoelhada sobre o plástico que recobria o tapete com Marcos andando à sua volta balançando a arma na mão, enquanto fazia seu discurso sobre a surpresa que foi descobrir que uma garotinha havia matado um de seus melhores homens.

— E voltamos ao começo de tudo — Carolina sussurrou ao seu lado, olhando em volta com um pouco de tristeza.

Nunca havia entrado ali, mas sabia que tudo permanecia igual ao dia em que Carla fora levada até lá, mesmo após o padrasto ter voltado a realizar seus negócios na casa, depois que sua mãe faleceu.

— O que vai acontecer conosco agora? — questionou, mesmo sabendo a resposta.

— Creio que você já sabe.

— Sim, mas preciso ouvir de você.

Carla a fitou com intensidade por um instante. Sabia que Carolina estava apavorada, mas amou a sua tentativa de se mostrar corajosa.

— Com você, provavelmente, não irá acontecer nada. Pelo menos, por enquanto.

— O que quer dizer?

— O foco de toda essa história está sobre mim. Você entrou nela de gaiata. Tudo foi cuidadosamente planejado para me atingir. O que vai acontecer agora é simples: Santiago irá me interrogar sobre os roubos, quem me ajudou, como fiz, onde escondi a mercadoria, entre outras coisas.

— Mas, você não sabe de nada.

— Pelo contrário, eu sei de tudo, mas não da forma que está imaginando. De qualquer modo, Santiago irá realizar seu maior sonho. Isso tudo, claro, não passa de uma farsa. Por enquanto, não passa de uma desculpa para que ele satisfaça seus desejos de vingança contra mim.

Carolina engoliu em seco, compreendendo que falava de tortura e morte.

— Não consigo entender como pode estar tão tranquila. Aliás, é isso que me confunde. Olho para você agora e me pergunto onde está a mulher que me beijou com tanto calor horas atrás.

A resposta de Carla se perdeu, presa em sua garganta, quando a porta do barracão se abriu outra vez para dar passagem a Marcos, Santiago e os outros dois associados estrangeiros, além de dois capangas que ataram Carolina a uma cadeira e, em seguida, a ladearam prendendo seus braços com mãos firmes.

— Álvaro e Juliana. Por que não estou surpresa? — a loira questionou.

Juliana se aproximou dela, devagar. Seus quadris movendo-se graciosamente, quase como um felino. Tinha um sorriso provocante nos lábios vermelhos, recordando a Carla alguns momentos de luxúria que tiveram anos antes. Ela pegou uma mecha de seus cabelos loiros e a enrolou no dedo por alguns instantes, então desferiu um soco violento em seu rosto arrancando um pouco de sangue de seu nariz e um risinho de Santiago.

— Acho que isso quer dizer que ainda está chateada com nossa última “conversa” — concluiu Carla e Juliana a fuzilou com o olhar.

O que tinha acontecido entre elas era só sexo, mas Carla não teve escrúpulos em usar o interesse de Juliana para conseguir passar a perna nela e roubar um de seus melhores clientes enviando Tito para fechar o negócio, enquanto a levava a loucura em um quarto de hotel.

Marcos teve vontade de rir com a frase, mas conseguiu se manter sério. Quando perguntou a Carla, anos antes, como havia conseguido fechar negócio com um dos maiores cartéis de El Salvador, cliente fiel de Juliana havia anos, ela não demonstrou o menor pudor em lhe contar o que tinha feito.

— Você faz piada, mas sua ambição tola a trouxe até este momento. Diga-me, o que fará agora que está indefesa?

Carla sorriu-lhe, não de forma ameaçadora ou tosca. Era um sorriso tranquilo, como se soubesse de algo que estava além dos conhecimentos dela e notou o efeito do seu gesto nos presentes, devido a raridade dele.

— Antes que esta noite chegue ao fim, você saberá — respondeu calma.

— Está muito confiante para alguém que não verá o dia raiar — comentou Álvaro, fazendo com que Juliana se afastasse com um gesto.

Carla o avaliou com pouco interesse, então decidiu ignorá-lo e seu olhar cruzou com o de Marcos. Apesar da ausência das palavras, os dois se entenderam e ele se adiantou fazendo seu papel.

— Quero saber de tudo — falou, enfiando uma das mãos no bolso da calça. Com olhar colérico, a estapeou com a outra mão. — Lembra-se do que lhe disse neste lugar há treze anos?

Ela ergueu o rosto, desafiadora, enquanto ele andava à sua volta e parou às suas costas. Como ela nada disse, ele puxou seus cabelos, forçando sua cabeça para trás e se aproximou o suficiente de seu corpo, ainda falando com voz carregada.

— Não tolero traição! Você, mais que qualquer outro, deveria saber disso! — ele puxava seus cabelos com uma das mãos, enquanto a outra escorregou um objeto até o bolso traseiro da calça dela, então a soltou e voltou a se posicionar à sua frente.

— Trabalhamos juntos por muito tempo. Você deveria saber do que sou capaz.

Seus olhares duelaram por um instante, então ele voltou a falar friamente para Santiago:

— Quero saber todos os detalhes, principalmente, onde estão as minhas drogas.

— Já lhe disse que sou inocente — Carla repetiu.

— Ninguém é inocente — ele respondeu e se retirou, acompanhado por Álvaro e Juliana. Esta última, jogou um beijinho provocante e deu um tchauzinho com um sorriso malvado para ela.

Santiago se aproximou de Carla devagar, mal cabia em si de tanta satisfação. Arregaçou as mangas da camisa branca que usava e retirou o relógio do pulso.  Finalmente, aquela mulher desprezível e irritante pagaria por todas as humilhações que o fizera passar.

Ele curvou-se um pouco até que seus rostos ficassem bem próximos e tocou-lhe o queixo.

— Vamos nos divertir um pouco? — perguntou e antes que ela abrisse a boca para responder, a golpeou na linha da cintura.

II

— Tomou a decisão correta, Marcos — Juliana lhe sorriu.

— Logo saberemos quem a ajudou e nos livraremos desses vermes — Álvaro completou. — Meus homens estão ansiosos por um pouco de ação.

Marcos lhes dirigiu um inclinar de cabeça, sem deixar de notar o olhar cumplice que os dois trocaram, nem o modo como todos os seguranças com os quais cruzou no caminho de volta para casa pareciam nervosos e mantinham as mãos sobre as armas. Serviu-se de um copo de uísque e saiu da sala em que conversavam com a desculpa de que tinha que dar alguns telefonemas. Se trancou em seu escritório com a cabeça fervendo de preocupação, não apenas por Carla, mas por ele mesmo também.

A maioria dos homens que protegiam sua casa, estava sob ordens diretas de Santiago; não havia como saber quem lhe era fiel. Riu-se com o pensamento. Não havia fidelidade naquele ramo. O dinheiro era quem mandava. Mas, Carla era uma exceção. Achou graça nisso, assim como sempre acontecia quando pensava a respeito.

Aquela moça que um dia ele quis matar, havia sido mais fiel que um cão. Apesar de sua frieza e desprezo pela vida e as pessoas, ele gostava dela assim como Lizandra, sua falecida esposa.

Seu olhar pousou carinhosamente sobre a fotografia na mesa. Lizandra odiava ter de andar escoltada, reclamava de todos os seguranças que ele colocava à sua disposição, mas foi diferente com Carla. Ela gostava do silêncio da moça, do seu jeito sério e atento, do fato dela não interferir quando desejava fazer algo e do modo como caminhava ao seu lado despreocupada em contradição aos outros que sempre caminhavam alguns passos atrás ou à frente dela.

Por vezes, ele as via conversando no jardim e questionava-se o que teriam de tão interessante para falar. Quando comentou isso com Lizandra, ela lhe respondeu que conversavam sobre a vida e ele riu, mas a esposa foi categórica em afirmar que havia muita vida por trás daqueles olhos frios.

Afastando essas lembranças, pegou o telefone e tomou um gole do seu uísque, enquanto ouvia os toques de chamada. Quando se aproximou de Carla, minutos antes, não precisou ouvir sua voz para interpretar o movimento de seus lábios. Ela lhe dizia um nome.

— Oi! — a voz grave de Tito chegou-lhe através do aparelho.

III

Tito desligou o celular e o guardou no bolso da calça. Em seu rosto, havia uma ruga de preocupação. Havia chegado a casa de Carla poucos minutos antes e Maria o inundou de informações em meio a um choro entrecortado.

— Era sobre elas? Estão bem? — questionou Maria que, ao se ver sozinha na casa tratou de chamar o rapaz.

— Por enquanto — ele respondeu fazendo uma careta e olhou para os dois seguranças que o ladeavam. Os homens de Santiago os deixaram em paz após capturarem as duas mulheres. No meio daqueles dois brutamontes, mais parecia um anão e se pôs mais ereto, enquanto acendia um cigarro.

Com uma careta, ele observou a moça que cruzava a porta. Seus lábios vermelhos sustentavam um largo sorriso que se desfez no instante seguinte ao perceber o clima entre eles.

— O que aconteceu? — Diana perguntou e Maria se atirou nos braços dela contando o que se passou.

Diana aumentou a pressão dos braços em volta dela sentindo-se inundar pela preocupação também, mas logo seu sangue frio tomou conta de suas veias e ela mirou Tito liberando Maria de seu abraço.

— O que pretende fazer? — questionou ao rapaz.

Maria fungou ao seu lado e repetiu a pergunta dela com voz firme.

Ele retirou a arma da cintura, conferiu as balas no pente e voltou a guardá-la com um olhar quase animalesco. Não havia dúvida que sempre teve um ar ameaçador o que, de fato, ele era. No entanto, também sabia ser um homem dócil e admirava Carla apesar de admitir que também a temia. Sempre a achou enigmática e o fato de não conseguir ler seus gestos e expressões o deixava um pouco desconfortável, mas a seguiria de olhos fechados onde ela desejasse ir.

Lhes dirigiu um sorriso brejeiro que o fez parecer muito mais jovem do que era e disse:

— Vou buscar as duas.

IV

Carla cuspiu um pouco de sangue e Carolina fechou os olhos para não ver a nova saraivada de golpes que Santiago lhe infligia. Sentia-se estupida e impotente. Seu coração sangrava a cada golpe que ela recebia ao mesmo tempo que se digladiava cheio de ódio por Santiago.

Carla curvou-se um pouco e foi sustentada pelos capangas, respirava com um pouco de dificuldade, mas manteve-se firme e esboçou um sorriso, notando que Santiago já dava indícios de cansaço.

— Uma garotinha de cinco anos bate melhor que você. Incompetente até nisso — provocou.

— Maldita! — ele berrou. — Você não é humana! Como pode, depois de tudo isso, sequer deixar um gemido escapar?

Pelo contrário, ela era muito humana. Sentia a dor de cada golpe irradiando para todo o corpo, mas estava decidida a não dar a Santiago o que ele queria. Enquanto assim o fizesse, Carolina ficaria bem e Marcos teria tempo de entrar em contato com Tito.

— Frustrado? — ela perguntou com voz entrecortada.

— O que você é? — ele berrou. — Como pode?!

Ele havia maquinado tudo cuidadosamente. Tinha se aliado as pessoas certas, conseguiu tirar a maioria dos obstáculos de seu caminho e logo comandaria aquela organização. Havia chegado o seu momento de tomar a cadeira de Marcos e se vingar daquela víbora em forma de mulher depois de tantos anos de servidão. Queria vê-la sofrer, esmagar seu orgulho, destruir a camada de gelo que a cobria, provar que não passava de uma estúpida mulher, no entanto ela insistia em privá-lo daquele prazer.

Carla forçou-se a ficar ereta diante dele. Não ousava olhar para Carolina, temia entregar a Santiago que a única coisa que ele poderia fazer para afetá-la era se voltar contra a moça. Marcos havia colocado um canivete em seu bolso, mas o modo que os dois capangas a seguravam impedia que o alcançasse sem ser notada e, mesmo que esboçasse alguma reação para se livrar de suas mãos, não havia garantias de que conseguiria se livrar das cordas antes que pegassem as armas.

— Lembra de onde eu vim? — questionou baixinho.

Santiago deu um passo atrás, enxugando o suor da testa.

— Da sarjeta — respondeu enojado, olhando para as mãos manchadas com seu sangue.

— Das ruas, das lutas clandestinas. Qualquer que seja a dor que está tentando me infligir, eu já a senti inúmeras vezes e me acostumei a ela. Socos, chutes, facas e tiros! Não há nada que já não tenha experimentado.

Ele liberou um suspiro profundo e ela notou a veia saltitante em sua testa.

— Você pode estar saindo vitorioso após toda essa armação, mas não vou lhe dar o que quer. Meus gritos, minhas lágrimas, só a mim pertencem.

Com uma careta de ódio, Santiago saiu do galpão batendo a porta atrás de si, mas voltou um minuto depois, trazendo uma caixa não muito maior que um estojo para canetas. A abriu devagar e se aproximou para que Carla pudesse ver seu conteúdo. Várias agulhas de diferentes tamanhos e formatos brilharam diante de seus olhos.

Santiago pegou uma delas, a maior. Sorriu com maldade e Carla o provocou um pouco mais.

— Pretende fazer tricô?

Santiago bufou um pouco, mas logo voltou a sorrir.

— Garanto que não estará fazendo piadinhas daqui a pouco. Já faz muito tempo que não uso essas belezinhas. Sei que você gosta de usar as mãos e tal, mas sempre apreciei algo mais… invasivo. Logo, seus gritos irão me pertencer.

Ele deu alguns passos pelo local admirando o brilho do objeto em suas mãos, então estacou diante dela e o enfiou lentamente em seu ombro direito. A dor que a atingiu era estonteante, mas forçou-se a manter-se firme e silenciosa, embora não tenha conseguido ocultar uma careta. Tinha de dar um jeito de alcançar o canivete antes que estivesse debilitada demais para usá-lo.

Santiago continuou forçando a agulha através de seu corpo até que, cansada de assistir aquilo, Carolina gritou:

— Por favor, pare! Por favor! — seus olhos estavam vermelhos e levemente marejados, mas não ousou chorar.

Mas o bandido não parou, riu alto e forçou um pouco mais a agulha no ombro da loira. Carolina tinha as mãos atadas a cadeira, mas seus pés estavam livres e fez a única coisa que lhe veio à mente. Conseguiu ficar de pé, ainda presa a cadeira e correu para cima dele. Surpreso, Santiago deu um passo atrás, mas não conseguiu evitar que ela o derrubasse e caísse sobre ele.

Um dos capangas soltou Carla e correu para ajudá-lo. Era a oportunidade que a loira precisava e respirou aliviada quando sentiu o frio do metal do canivete em suas mãos. Mesmo assim, o medo por Carolina era gritante em seu peito.

O capanga ergueu Carolina e a colocou sentada na cadeira novamente.

— Estúpida! — Santiago a estapeou e socou arrancando sangue de seus lábios carnudos, então percebeu, por um breve instante, o olhar que Carla lhe dirigiu.

Havia sido rápido, mas foi o suficiente para que percebesse que ela não era tão desprovida de sentimentos quanto gostava de parecer.

— A sua vez vai chegar, não tenha pressa — cuspiu as palavras venenosamente para Carolina, então foi até a mesa, onde havia depositado a caixa e escolheu outra agulha, caminhando em direção a Carla outra vez. — Talvez, você esteja certa. Não posso atingi-la fisicamente, mas existem outros tipos de dor.

Com dois passos largos, ele alcançou Carolina e fincou a agulha que segurava em sua coxa, ela gritou de dor, enquanto lágrimas pesadas ganharam passagem para sua face. Carla engoliu em seco, sentindo a dor dela tocar sua alma, mas não ousou olhar. Em vez disso, manteve o olhar baixo e fixo no chão.

— Sempre pensei que não tinha alma, que não havia humanidade em você, — continuou Santiago, o olhar negro como petróleo preso na rival, cheio de maldade — mas o jeito que a olhou há alguns instantes… Dizem que um olhar diz muito mais que palavras. Ela é sua amante, se preocupa com você e você com ela! — afirmou, e pressionou um pouco mais a agulha fazendo Carolina gritar outra vez.

 Ele aguardou qualquer palavra sua ou olhar, mas Carla se manteve em silêncio, os olhos fixos no chão, então, lentamente, um riso começou a se espalhar pelo ambiente até que se tornou uma gargalhada alta. Surpreso, Santiago percebeu que vinha dela. Nunca a tinha visto rir e isso era quase tão devastador quanto o fato de que ela ignorava a dor que havia lhe causado.

— Você é mesmo patético! — Carla falou, deixando claro o desprezo que sentia por ele. — Acha que me importo com ela?

Santiago se empertigou.

— É sua amante, pediu pela vida dela…

— Quando pedi por sua vida, estava apenas cumprindo a promessa que fiz a Lizandra no leito de morte. Sou uma mulher de palavra, só isso. Mas, ela é linda, gostosa, e eu não sou de ferro.

Santiago contraiu o maxilar sentindo o gosto da vitória lhe abandonar.

— Ah, não me olhe assim. Sei que sempre arrastou uma asa para ela, sempre vi seus olhares de cobiça. É uma pena que tenha perdido tanto tempo, afinal ela prefere outra fruta — ampliou o sorriso e o viu cerrar os punhos. — Mas, não se preocupe, você ainda pode tentar, afinal não temos nenhum compromisso. Prefiro encarar nosso relacionamento como diversão!

— Ela não parece encarar assim — pontuou ele e a viu dar de ombros.

— Se ela passou a gostar de mim ao ponto de se preocupar com meu bem-estar, então é mesmo tão idiota quanto demonstrou quando fugiu com o dinheiro do Marcos. Para mim não passa de sexo.

Carolina engoliu em seco, sentindo uma pedra afundando em seu estômago e uma dor ainda mais profunda que a física em seu coração. Não havia qualquer emoção nas palavras de Carla, nem calor em seu olhar e sentiu-se realmente idiota por ter se deixado envolver por ela e percebeu o velho ódio retornando ao seu coração, brigando com o amor que sentia.

— Oh, decepcionado? — Carla sorriu toscamente, ignorando as lágrimas nos olhos de Carolina, fingindo que vê-las não lhe partia a alma.

 Santiago arrancou a agulha da perna de Carolina e esta gritou alto novamente, então se aproximou de Carla.

— Você é mesmo um monstro, uma víbora! — gritou e fincou a agulha no seu abdômen em um golpe rápido e pouco profundo.

Carla engoliu um gemido, enquanto voltava a provoca-lo.

— Já ouvi coisas piores. Suas palavras assim como sua tortura ridícula, não me atingem.

Um tiro foi ouvido do lado de fora e logo após outros. Santiago olhou em direção a porta e mandou que um dos homens que seguravam Carla fosse verificar o que estava acontecendo.

— É uma pena que tenha tido tanto trabalho para nada, Santiago.

— Pena? Você não verá o dia raiar e está com pena de mim? Está ouvindo os tiros? São os meus homens dando um fim ao Marcos e aqueles dois patetas estrangeiros. Tudo que eu precisava era tirar você do caminho. Sem você por perto, ele é fraco e indefeso.

Fez uma careta, enxugando o suor em sua testa com a manga da camisa.

— Ao longo dos anos, ele foi depositando cada vez mais confiança em você. Aumentou suas responsabilidades, seus lucros, seu poder dentro da organização. Tentei fazê-lo enxergar o erro que estava cometendo, mas cada vez que erguia minha voz contra você a confiança dele em mim se abalava. Então, percebi que em breve seria descartado e decidi que seriam vocês dois a caírem em vez de mim. Planejei com cuidado cada fase do meu plano. Sempre fui responsável pela contratação de homens para a segurança dele e trabalhos da organização. Aos poucos, comprei sua lealdade, então comecei a formar alianças com alguns cartéis, gangues, máfias. Espalhei alguns boatos. Estava fazendo as coisas devagar, mas quando essa daí fugiu — apontou com o queixo para Carolina — e Marcos lhe poupou a vida, encontrei a oportunidade perfeita para adiantar meus planos.

Ele deu alguns passos até Carolina e tocou uma mecha dos seus fios negros, recebendo desta um olhar quase mortal.

— Marcos sempre foi impiedoso, nunca poupou ninguém, exceto você. Ninguém o questionou a respeito na época porque você veio a ser valorosa para a organização. Mas, esta daqui era diferente. Quando ele a deixou viver a seu pedido, demonstrou fraqueza e só confirmou os boatos que eu havia começado a espalhar. Então, dei o passo seguinte…

— Roubou de Joaquim e do Marcos e começou a distribuir as drogas deles sussurrando, aqui e ali, o meu nome — Carla completou.

Santiago riu, concordando com a cabeça e ela continuou:

— Era suficiente para plantar a dúvida em Marcos e nos seus associados na América do Sul. Mas, Marcos e eu sempre tivemos uma relação de confiança muito forte e mesmo com esses sussurros, ele não se abalou.

— Sim, é verdade. Então, reformulei algumas partes do meu plano. Usaria o temperamento explosivo de Joaquim a meu favor. Voltei a roubar dele e reforcei seu nome nas ruas. Quando falei para ele que você estava por trás dos roubos, planejava usá-lo para tirá-la do meu caminho. Infelizmente, ele a subestimou e quebrou o nosso acordo indo até sua casa naquela manhã. Quando você o capturou, imaginei que ele abriria o jogo com Marcos, então facilitei para que fugisse durante o caminho até aqui e meus homens o mataram, enquanto corria pela estrada em desespero. Idiota!

Carla cuspiu um pouco do sangue que se acumulava em sua boca, sentindo um pouco de vertigem. O sangue vertia fartamente de seu ombro, apesar da agulha fina que Santiago havia usado. Passou a língua nos lábios antes de falar:

— O seu plano não deu certo, mas você tinha outra carta na manga, não é mesmo? Há algum tempo, forjou documentos que comprovavam minha traição, maquiando o saldo de minhas contas bancárias quando, na verdade, os dados contidos nesses documentos são das suas falcatruas. Você tinha os documentos, mas ainda precisava de reforço. Necessitava me fazer cair em desgraça diante de Marcos sem que ele voltasse atrás em sua decisão, então se aproveitou do frágil momento que Carlos Rivera estava vivendo para mata-lo e assumir o comando do tráfico na fronteira da Bolívia, usando novamente o meu nome. Foi o suficiente para convencer Álvaro e Juliana a entrarem na jogada. Tenho certeza de que eles viram nisso uma oportunidade de tomar o poder de Marcos e assumir os negócios deste lado da fronteira. Não sou a pessoa mais querida para eles e, com certeza, ficaram muito satisfeitos em pressionar Marcos para dar um fim a mim. Você os iludiu com maestria, pois eles jamais imaginaram que também faz parte dos seus planos assumir os negócios deles — ela deu um passo para o lado posicionando seu pé bem atrás do pé do homem que a segurava. — Foi com a promessa de dominar o tráfico nessas regiões que convenceu outros a se unirem a você. Os fez assinar um documento dividindo o território de Marcos; uma promessa de união, mas, também, uma forma de garantir que eles não voltariam atrás e que o auxiliariam em uma fuga caso seus planos falhassem já que tinha em seu poder uma lista de traidores que Marcos não hesitaria em eliminar.

Santiago a fitava estupefato. Lá fora, os tiros continuavam acompanhados de gritos e sons de motores e pneus cantantes.

— Como sabe disso?

— Você é tão cheio de si que acabou se descuidando. O primeiro dos seus erros foi guardar o carregamento que roubou de Joaquim em um dos depósitos sob minha responsabilidade. Imagino que tenha pensado que o local era perfeito já que estava desativado por alguns meses e seria mais uma prova contra mim — ela ficou um pouco mais ereta, falava com voz um pouco arrastada e o sangue que escorria do seu ombro e nariz maculava o branco da camiseta que usava.

Apesar da raiva que sentia, Carolina estava preocupada com ela. Seu coração batia descompassado de medo, pois percebia o esforço que fazia para se manter de pé e o tom pastoso de sua voz. Irritada com sua incapacidade de fazer algo, tentou forçar as cordas que a prendiam na cadeira, mas tudo que conseguiu foi sentir mais dor.

— O segundo erro, foi tentar convencer Carolina a me vigiar. Que motivos você teria para tal se trabalhamos juntos há tantos anos? — soprou alguns fios louros que lhe caiam sobre os olhos e fez um pequeno muxoxo. — Óbvio que isso me deixou desconfiada, mas não me levaria a verdade. Foi aí que descobri que você cometeu outro erro. Quando forjar a morte de alguém, certifique-se de amarrar bem todas as pontas, não deixe testemunhas. O capanga que você pagou para realizar o serviço, cantou como um passarinho quando “conversei” com ele. Aí pensei, porque você se esforçaria para forjar a morte de alguém que odiava?

Ela tomava cuidado para não tocar no nome de Bento.

— Então, bati um papo com Antunes. Imagino que tenha sentido a falta dele — sorriu maldosa. — Foi uma conversa bastante esclarecedora — deixou um suspiro pesado escapar.

Santiago deu um passo atrás, trincando os dentes.

— Se sabia de tudo, como veio parar aqui?

— Confesso, não era a minha intensão. Você realmente me surpreendeu esta noite e me deixou em uma situação bem complicada. Entretanto, parece que as coisas estão dando certo.

— Como assim? Você ainda está amarrada diante de mim e meus homens estão…

— Correção: não são seus homens dando cabo da vida de Marcos, são os meus cuidando dos seus e eu estava amarrada — ela ergueu uma das mãos, mostrando o canivete que Marcos lhe dera, passou uma rasteira no capanga ao seu lado e cravou a lâmina no peito dele antes que chegasse ao chão.

Santiago procurou a arma em sua cintura, mas assim que a apontou, Carla já estava próxima e se atirou em cima dele. Brigaram pela posse da arma rolando pelo chão entre socos, deixando marcas de sangue e suor até que ele a soltou.

Santiago fincou o polegar na ferida do ombro dela e Carla sentiu uma dor estonteante que a desconcentrou por alguns instantes. Foi o bastante para que ele conseguisse empurra-la para o lado. Ele correu em busca da arma que havia ido parar debaixo da cadeira que Carolina ocupava. A moça o chutou na barriga quando ele se aproximou, jogando-o no chão novamente com um gemido alto, mas o patife voltou a se erguer, contudo Carla agarrou sua perna e o atirou no chão outra vez, grudando-se as suas costas, enlaçando seu pescoço com braços firmes, mas ele acertou suas costelas com o cotovelo algumas vezes e ela acabou por soltá-lo em busca de ar.

Desta vez, ele alcançou a arma desviando de um novo chute de Carolina e se voltou para Carla, mas esta lhe passou uma rasteira e ele caiu sentado aos pés de Carolina, ainda segurando a pistola. Santiago apontou para a rival, mas foi surpreendido por Carolina que enlaçou seu pescoço com as pernas usando de toda a força que possuía, tentando ignorar a dor dilacerante que o ferimento em sua coxa causava.

Tentando se livrar de Carolina, Santiago apontou a arma para ela, mas Carla se jogou em cima dele segurando seu braço com uma das mãos, enquanto o enchia de socos no abdômen com a outra até que ele perdeu os sentidos.

Carolina ainda continuou apertando o pescoço dele, cheia de ódio. Diante de seus olhos só via um homem cruel que a havia machucado e tentado matar a mulher que amava apesar dela só a ter usado. Carla a chamou e deu-lhe algumas tapinhas na perna para que o soltasse, mas a morena continuava firme. Então, sentiu o toque suave das mãos dela e fixou o azul dos seus olhos que não eram mais frios e desprovidos de sentimentos.

— Não faça isso, Carol — disse com voz entrecortada. — Não há volta desse caminho. Você não é assim.

Lentamente, Carolina afrouxou as pernas e Carla empurrou Santiago para o lado. Ele não estava morto, mas iria desejar estar dali algumas horas. A criminosa respirou profundamente durante alguns segundos, o olhar fixo no amor de sua vida. Lá fora, os tiros haviam cessado.

Com esforço, Carla se colocou de pé e soltou Carolina, enquanto lágrimas pesadas banhavam o rosto moreno desta. A loira a puxou para um abraço, que ela aceitou por alguns segundos, mas logo foi empurrada.

Carla não precisava se esforçar para saber o que se passava e sentiu o peso de suas palavras erguendo um muro entre elas, enquanto nos ouvidos de Carolina a palavra diversão fazia eco.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2021 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.