16.

— Diana sempre consegue te deixar com um sorriso, mas desta vez exagerou. Pelo visto, a noite foi boa — comentou Maria ao encontrar Carla na cozinha logo após o raiar do dia, notando que ela havia feito café e sorvia a bebida lentamente com olhar fixo na parede à sua frente.

Ela não havia dormido bem, embora seu corpo clamasse por descanso. Carolina não lhe saía dos pensamentos, nem o beijo que trocaram, principalmente o fato dela a ter correspondido o que acendeu a chama da esperança em seu coração.

— Eu a beijei — falou em um sussurro, mas alto o suficiente para que Maria captasse as palavras.

— E fez outras coisas também, imagino! — disse a índia com um sorriso brincalhão, ainda supondo que se referia a Diana.

— Carolina.

— Que tem ela?

— Eu a beijei — explicou, assentando seu olhar sobre ela.

Maria absorveu essa informação junto com um gole de café e ela lhe pareceu tão amarga quanto a bebida. Fez uma careta e despejou o líquido na pia, tomando a xícara das mãos dela e fazendo o mesmo. Carla era boa em muitas coisas, mas era quase um desastre na cozinha e o café estava horrível.

— Droga, está querendo nos envenenar? — perguntou tentando sorrir, enquanto preparava outro café.

— Não estava tão ruim — Carla fingiu estar ofendida.

— Já te falei para ficar longe da minha cozinha — queixou-se.

A loira sorriu, dando de ombros e reconhecendo que sua alimentação não era das melhores antes de Maria morar com ela.

— Ela não enfartou? — Maria brincou, voltando ao assunto e lembrando-se da discussão que teve com Carolina no dia anterior e da raiva que a moça lhe inspirou na ocasião.

Carla tamborilou os dedos na mesa um pouco absorta, enquanto explanava.

— Diana tinha essa teoria maluca. Disse e repetiu que achava que Carolina gostava de mim. Você a conhece, sabe como é observadora, mas não pude acreditar no que me disse; me parecia impossível. No entanto, quando encontrei Carolina mais tarde, decidi que iria tirar a prova.

Balançou os ombros.

— Inspirar mais ódio da parte dela, não iria fazer muita diferença para mim — reconheceu.

Maria dedicava-se a preparação de alguns ovos mexidos, mas prestava atenção a cada palavra dela com o cenho franzido à medida que contava os pormenores do que aconteceu. Carolina era mesmo uma pessoa confusa e ela temia que essa confusão trouxesse ainda mais problemas para a vida da amiga.

Carla podia parecer uma rocha fria e dura por fora, mas seu interior era um mar revolto de sentimentos. Sabia que se escondia por trás daquela frieza para suportar sua dor, sua solidão e seus medos.

Quando a reencontrou, cinco anos antes, nem de longe parecia a menina com quem brincava em sua aldeia na infância. Não conseguiu reconhecer naquela mulher fria e inexpressiva a menina que ria solto e vivia encontrando aventuras para compartilharem. Nunca esqueceu aquela amizade infantil e doce e se perguntou muitas vezes, enquanto crescia o que lhe havia acontecido após a morte dos pais.

Revirou os ovos algumas vezes na frigideira, recordando o quanto o amor podia cegar. Ela, que sempre fora centrada e avessa a esse sentimento que sempre julgou inútil, foi fisgada por ele quando menos esperava e não olhou para trás quando abandonou sua família e amigos para seguir Jonas com uma gama de sonhos que jamais se realizaram. Foram felizes por um tempo, então ele perdeu o emprego e se envolveu com pessoas de índole duvidosa.

O rapaz de sorriso cativante e modos gentis logo desapareceu entregue à bebida, drogas e jogatina. Ela lutava para trazê-lo de volta, para lembra-lo de quem era, mas ele nunca voltou e pulverizou o amor que um dia lhe dedicou.

A índia encontrou seu reflexo na janela e admirou suas feições por alguns segundos, recordando-se do quão diferente dele estava quando reencontrou Carla. Suas histórias de amor eram bem distintas, mesmo assim, não queria que ela sofresse, não suportaria ver suas ilusões serem esmagadas pela criancice e cegueira de Carolina.

— O que pretende fazer agora? — perguntou, voltando sua atenção à tarefa a que se dedicava.

A resposta de Carla foi rápida e não deixava margem para dúvidas.

— Me arriscar! Tentar conquista-la, lutar por ela. Mas, antes preciso resolver algumas coisas.

A índia apagou o fogão e se voltou para fita-la. A felicidade estava no brilho de seus olhos, mas era quase imperceptível. Ela havia vestido sua máscara de indiferença outra vez; se colocou de pé abotoando o casaco do terninho preto que usava. Seus cabelos estavam presos em uma elegante trança embutida que escorregou de seu ombro quando colocou os óculos escuros.

— Não vai tomar café?

— Tenho um encontro importante, não posso me atrasar — respondeu após dar-lhe um beijo na bochecha e já se encaminhando para a porta, no entanto, se voltou antes de alcança-la ao ouvir o chamado da índia.

Maria venceu a distância entre elas com passos rápidos e tomou-lhe as mãos.

— Faça o que seu coração lhe pede, mas não o deixe cegá-la.

Carla aumentou a pressão nas mãos dela, afirmando:

— Nunca me apeguei a ilusões, mas, pelo menos uma vez, quero acreditar que sonhos se tornam realidade.

***

Os portões se abriram para que Carla avançasse com seu carro de encontro a rua. Em pouco mais de uma hora, estaria diante de Marcos e Joaquim. Tinha certeza, seria uma reunião muito complicada, principalmente porque sabia que Joaquim era estupidamente ambicioso e tentaria se livrar da concorrência.

Seria um idiota se não tentasse”, ela pensou, trocando a marcha do veículo e avançando alguns metros, no entanto, teve de pisar no freio repentinamente para evitar atropelar Carolina que cruzou seu caminho.

Por alguns segundos, Carolina apenas a olhou de forma desafiadora, parada diante de seu carro com uma mochila nas mãos. Havia passado a noite em claro envolta em um turbilhão de emoções conflitantes.

Sempre que fechava os olhos se via mergulhada no sabor do beijo que trocaram, nas sensações que lhe tomaram ao sentir seu calor, sua pele, seus lábios e no desejo insano de que aquilo nunca acabasse, de que ela fosse mais além e que a fizesse sua.

Era quase insano a querer daquela forma se sempre a odiou.

Caminhou quilômetros em seu quarto, analisando suas emoções, brigando com elas sempre que se revolviam em seu interior quando lembrava do calor nos olhos de Carla.

Então, deu-se conta de que o que sentiu naquele único beijo, jamais sentiu com ninguém, nem mesmo Bento que por muito tempo povoou seu coração. Nem mesmo Leonor, por quem nutriu uma paixão platônica na faculdade e marcou sua memória com uma noite de paixão avassaladora após uma festa. Havia sido fantástico, mas no dia seguinte seu interesse havia desaparecido.

Aos poucos, percebeu com um gosto amargo na boca e uma pedra afundando em seu estômago que estava apaixonada por Carla.

Compreender isso foi como ser jogada de volta àquele quarto imundo em que ela e Santiago a espancaram. Sentia-se mutilada e despedaçada por ter permitido que isso acontecesse e chorou como nunca pensou que fosse capaz de chorar. Foi um choro diferente do que derramou por Bento ou sua mãe, ou pela culpa que sentia pela morte do amigo. Era como se sua alma estivesse sangrando.

Entre às lágrimas que derramou, perguntou-se quando começou a querê-la.

Na noite anterior, um pouco antes de conversar com Diana, divagava sobre as reações que vinha tendo em relação a ela naquele dia especificamente, mas, também, sobre coisas que andava sentindo desde o encontro com Joaquim no estacionamento da transportadora e convenceu-se de que havia sido ali que tinha começado a vê-la como mulher.

No entanto, as lembranças das horas e conversas longas que tinha com a mãe também se insinuaram em sua mente e recordou de como sua genitora ria quando expressava seu desprezo por Carla ou como ela gostava de brincar dizendo que todo aquele ódio era amor a deixando indignada e furiosa.

“Não pode ser verdade”, repetiu-se dezenas de vezes recordando o momento em que a viu pela primeira vez, caminhando em direção à morte. Como a tinha achado linda apesar da aparência maltrapilha e dos hematomas. Naquele momento, sentiu seu coração bater um pouco descompassado e temeu por ela, torceu para que encontrasse o perdão dentro daquele galpão e não a morte.

Sentada, aos pés da cama, com a cabeça entre as mãos em um pranto convulsivo, recordou o quanto se sentia sempre incomodada em sua presença, do medo que lhe inspirava quando seus olhares se cruzavam, o quanto torcia para não a encontrar rondando a casa ou em companhia de sua mãe. Reconheceu que aquele sentimento latente que a incomodava quando constatava sua ausência, na verdade, era decepção por não poder vê-la.

Carla já era dona de seu coração havia muito tempo, porém, o medo e o desprezo pelo que ela fazia serviram como uma barreira para que não enxergasse o que realmente se passava em sua alma.

Ela, Carolina, a amava.

Amava uma assassina, uma mafiosa, traficante, uma mulher que seguia os passos da morte de perto e que não tinha remorsos em destruir uma vida ou muitas.

Chorou muito mais quando reconheceu esta verdade e, quando o dia raiou, havia tomado uma decisão. A amava, mas jamais se deixaria se envolver por ela outra vez, como na noite anterior. Não sabia se era correspondida, era mais certo que não, e não estava disposta a descobrir.

Não seria como sua mãe, fingindo-se de cega diante do monstro que Marcos era porque o amava demais para deixa-lo. Não era capaz desse desprendimento. Carla era um monstro, uma loba em pele de cordeiro e não podia se entregar a alguém assim.

Iria embora.

Partiria, assim como Carla havia dito dias antes “iria com a cara e a coragem” e não voltaria a pôr os pés naquela cidade. Apagaria de sua memória quem era aquela mulher e o que significava para seu coração.

A porta do carro fez um barulho alto quando Carla a trancou com força e caminhou devagar até Carolina, o coração batendo descompassado por estar diante dela após o sonho que havia sido beijá-la. No entanto, não deixou de reparar nas olheiras profundas e nos olhos inchados, o olhar febril.

— Estou indo embora — ela informou.

— Do que está falando? — Carla arqueou uma sobrancelha e retirou os óculos escuros, curiosa.

Carolina se pôs um pouco mais ereta, querendo demonstrar o quanto estava resoluta e evitando lembrar da pressão dos lábios dela nos seus.

— Bem, Maria parece pensar que sou livre para ir e vir desta casa quando o desejar e, já que é assim, estou indo e não pretendo voltar nunca mais.

Todo o enlevo em que Carla estava desde que a tinha beijado a abandonou.

— Você não vai a lugar algum — informou, sentindo uma fina camada de gelo em volta de seu coração, destruindo todo o calor que sentira na noite anterior.

Carolina cruzou os braços vendo a frieza marmórea se apossar do olhar dela, tentando negar para si mesma que não achava aquilo atraente. Respirou fundo, colocando a mochila sobre os ombros.

— Não fico nem mais um minuto nesta casa!

Carla avançou alguns passos em sua direção, tentando diminuir a distância entre elas, mas Carolina recuou a mesma quantidade de passos. Pretendia ficar a uma distância segura dela, não porque tivesse medo de ser ferida, mas porque temia que suas emoções se apossassem de seu corpo e buscasse abrigo em seus braços outra vez.

— Ou me mata ou me deixa ir. É simples.

Estava decidida, não iria ceder. Aguardava a decisão dela com o queixo erguido e a viu dar-lhe as costas e regressar para casa com passos largos e pesados ecoando em contato com as pedras que calçavam o caminho.

Carolina a seguiu de perto.

— Eu quero ir embora! Está me ouvindo? Não pode mais me obrigar a ficar aqui. Não vou mais ser sua prisioneira!

Carla estacou no meio do caminho e esbarrou nela, surpresa. A loira se voltou em tempo de impedir sua queda a puxando para si, unindo seus corpos como na noite anterior, sentindo que seu corpo reagia a proximidade do dela, enxergando em seu olhar o quanto isso a perturbava, achando gracioso o vermelho que tomou sua face.

Seus rostos estavam tão próximos que Carolina podia sentir seu hálito mentolado acariciando sua face e seu olhar deslizou para a boca carnuda e sensual na qual um sorriso se desenhava chegando cada vez mais próxima da sua.

— Por favor, não faça isso — pediu em um sussurro, temendo entregar sua alma se ela a beijasse outra vez.

— Por que? — ela perguntou no mesmo tom.

Era difícil pensar com clareza com ela colada ao seu corpo daquela forma, mas respondeu mesmo assim, sem muita convicção.

— Porque eu não quero.

O sorriso de Carla se ampliou, tornando seus lábios ainda mais convidativos para Carolina.

— Não é isso o que seus olhos dizem e vou provar — capturou seus lábios com volúpia, sentindo-a estremecer em seus braços regozijando-se por poder prova-los de novo.

Carolina ainda tentou agarrar-se a um estreito fio de sanidade e se afastar, mas Carla a puxou para mais perto e entreabriu os lábios dando-lhe passagem, deixando que ela explorasse sua boca e fazendo o mesmo com a dela, travando uma deliciosa batalha.

Carla interrompeu o beijo com sorriso e Carolina se afastou o suficiente para acertar um tapa em sua face alva.

— Eu te odeio!

Ainda abalada por seu beijo, a viu jogar a cabeça para trás em uma gargalhada alta e gostosa, apagando de vez a convicção de suas palavras. Seu riso era lindo e ela não era mais a assassina que conhecia desde a sua infância.

Carla a puxou para perto novamente, ainda tentando conter o riso, enquanto falava:

— É o que seus lábios dizem, mas não o que demonstram quando me beijam — e tomou sua boca novamente em outro beijo sôfrego e apaixonado. Carolina ainda tentou empurrá-la, mas logo se deixou ser sugada pelo prazer contido nos lábios dela, odiando-se por se deixar envolver por aquela mulher desprezível e linda, amaldiçoando seu tolo coração por se apaixonar por ela.

Carla encerrou o beijo novamente, sentindo uma felicidade gritante em seu peito.

— Admita, você gosta disso.

Carolina a fitou ainda em busca do ar que ela lhe roubou.

— Nunca! — negou-se fracamente e Carla mergulhou em sua boca outra vez, explorando-a com calma, mordiscando sensualmente seus lábios e Carolina sentiu seu ventre se contrair, ansiando por algo mais.

Desta vez, o som de pneus cantando no asfalto e tiros as separou. Ofegante, Carla viu os guardas no portão trocarem tiros com os homens que desceram de um dos carros que haviam acabado de estacionar.

— Vá para casa! — ordenou a Carolina.

A moça olhou para o portão em tempo de ver um dos rapazes, Raul era seu nome, ser atingido por um tiro e cair tingindo o chão com seu sangue.

— Vá para casa! Encontre Maria e esconda-se! — Carla ordenou novamente.

Desta vez, Carolina obedeceu, mas voltou-se no meio do caminho.

— Você não vem?

Carla a mirou séria.

— Se eu não for, eles não terão motivos para entrar e estarão seguras — respondeu carrancuda. — Encontre Maria e se protejam.

Obediente, Carolina correu para o interior da residência, mas não foi muito além da porta e encontrou uma Maria apreensiva agachada junto a janela com uma faca nas mãos. Quando seus olhares se encontraram havia a mesma apreensão neles, temiam pela vida de Carla.

Fora da casa, Carla retirou a arma de seu coldre axilar e a destravou, enquanto observava Éder cair ao lado de Raul. Seus algozes cruzaram os portões com armas em punho, mas não foram muito além dele, sendo alvejados por ela que sequer tremeu a mão diante do coice que a arma lhe deu.

Não gostava de armas de fogo, sempre considerou suas mãos e corpo a melhor arma, no entanto havia aprimorado suas habilidades com o objeto desde a fatídica noite em que matou João Saldanha e companheiros.

Com passos firmes, caminhou até o portão e se deparou com Joaquim a espera-la, dois homens o ladeavam fortemente armados.

— Esta não me parece uma visita nada cordial, Joaquim — comentou.

— E não é — ele respondeu fazendo um movimento com a mão, pedindo que largasse sua pistola, o que ela fez já que não tinha outra opção.

Maria se encolheu ao vê-la se desarmar e Carolina praguejou baixo, enquanto pegava o telefone na mesinha próxima e digitava o número da sua antiga casa. Uma empregada atendeu e passou a ligação para Santiago.

— Ora, ora se não é…

— Quero falar com o Marcos — o interrompeu.

— Acho que ele foi claro quando disse que não queria saber de você, amorzinho. Sinto muito, mas…

— Cala a porra da sua boca e passa o telefone pra ele!

Irritada, ela ouviu o telefone ficar mudo.

— Filho de uma puta! — xingou e Maria lhe dirigiu um olhar nada amigável.

Forçando um pouco a memória, digitou o número do celular de Marcos. Quase nunca o fazia, então torceu para que estivesse correto.

— Alô! — a voz grave dele se fez ouvir do outro lado da linha e ela deixou um suspiro escapar, aliviada.

— Sou eu! — falou apressada para que ele não desligasse. — Carla está com problemas.

Do outro lado da linha, Marcos sentiu o desespero em sua voz antes de ouvir o som de um tiro. Havia acabado de entrar no carro para ir ao local do encontro com Joaquim. Tinha muitos planos para aquela reunião e estava ansioso para ver o que Carla havia planejado. Mas, aparentemente, ela é que havia sido surpreendida.

Santiago se acomodou ao seu lado no exato instante em que ele desligou o celular e ordenou que o motorista o levasse o mais rápido possível para a casa de sua associada.

— Uma serpente, hein? — perguntou Joaquim com deboche. — Achou mesmo que iria cair nessa conversinha?

Ele se mantinha a uma distância segura de Carla, evitando qualquer manobra que lhe permitisse reagir.

— Aparentemente, o julguei inteligente o suficiente para somar dois mais dois — ela respondeu com escárnio.

Joaquim trincou os dentes, irritado pela ofensa e pelo fato de que, mesmo naquela desvantagem, àquela mulher ainda mantinha seu ar de superioridade e não se abalava.

— Eu tinha muitos planos para nosso encontro de hoje — revelou ele com satisfação. — Confesso, pretendia pôr um fim à sua miserável existência e a do seu chefe, porém, acabei me precipitando e perdendo as estribeiras quando meus informantes chegaram com a informação de que você havia me roubado. Fazer o quê? Sou meio temperamental e impulsivo.

Coçou a cabeça com o cano da pistola que segurava.

— Foi uma ótima estratégia piorar a frágil relação entre mim e o velho Marcos. Não que eu me importe, há muito tempo quero pôr uma bala entre os olhos dele. Mesmo assim, não gosto de ser enganado.

Carla enfiou a mão no bolso da calça, assumindo um ar despreocupado apesar da frieza marmórea em sua face. Com cuidado para não rasgar o tecido, liberou a lâmina do canivete que sempre carregava no bolso. Seria arriscado, mas pior seria se ficasse parada à espera de que Joaquim se cansasse de conversar e partisse para o grand finale.

Com certeza, teria sido mais sábio se abrigar em sua casa, onde poderia montar uma estratégia coerente de defesa e solicitar o auxílio de Marcos. Porém, teria duas preocupações extras: Carolina e Maria. Jamais colocaria a vida delas em risco.

Zangada, apertou o canivete com firmeza.

— Sim, foi uma ótima estratégia, mas não foi minha. Sinto frustrá-lo, Joaquim, mas a tal serpente não sou eu. Devo admitir que o fato desse inimigo está desviando o foco de seu ataque para mim até me deixa lisonjeada — deu de ombros, virando um pouco de lado, enquanto retirava o canivete do bolso.

A distância que os separava não era maior que três passos longos. Era suficiente para fazê-lo se sentir seguro, mas estava bem longe disso. Carla passeou o olhar pelos três homens à sua frente e escolheu sua primeira vítima sentindo a adrenalina da ação iminente a possuir.

— Pensa que sou estúpido?

— Para ser sincera, penso — sorriu, desfigurando seu belo rosto em uma máscara diabólica e correu em sua direção, atirando o canivete que atingiu, certeiro, o pescoço do capanga à esquerda.

O capanga da direita, segurava uma pistola que tentou mirar na sua direção, mas ela já estava próxima o suficiente para golpear seu pescoço e roubar-lhe a arma. Joaquim atirou nela, mas ela usou o capanga como escudo e o empurrou em cima do traficante que deu um passo atrás e pisou no capanga morto pelo canivete dela. Atrapalhado, ele escorregou e caiu sobre o corpo, dando tempo para que Carla lhe acertasse um chute no rosto e tomasse sua arma.

Havia sido uma ação arriscada, mas havia da do certo.

Joaquim cuspiu alguns dentes misturados com sangue e ergueu o olhar para ela que lhe acertou um novo chute. Eventualmente, se encontrariam em uma posição semelhante no encontro que tinham marcado para aquele dia.

— Confesso, estou surpresa por sua audácia, Joaquim — disse ofegante, sentindo a dor se espalhar pelo abdômen. Não saíra ilesa de sua ação, mas não havia se ferido com gravidade.

Joaquim ergueu as mãos, cuspindo um pouco mais de sangue e Carla o acertou novamente, ouvindo o som de pneus cantando às suas costas. Marcos surgiu acompanhado por Santiago e homens fortemente armados.

Ele fitou sua associada com um sorriso largo.

— Me disseram que estava com problemas, mas parece que se enganaram.

Ela meneou a cabeça.

— Você se atrasou para a festa.

— Olha, tenho certeza de que podemos resolver isso racionalmente — Joaquim falou com certa dificuldade pela ausência dos dentes e o sangue que vertia farto de seus lábios.

Carla o mirou com desprezo.

— Alguém coloque este verme de pé — pediu e dois dos homens que acompanhavam Marcos atenderam-na, enquanto ela recuperava seu canivete.

Caminhou lentamente até Joaquim, sentindo a dor se espalhar um pouco mais, enquanto andava.

— Esta é minha casa, Joaquim. Qualquer racionalidade acabou quando a invadiu!

Joaquim deixou um urro gutural escapar quando a lâmina rasgou sua perna, então ela se voltou para Marcos, enquanto os capangas o carregavam choramingando e o atiravam na mala de um dos carros em que vieram sob a supervisão de Santiago.

Ainda respirando com um pouco de dificuldade, Carla alisou o casaco que usava e Marcos apontou para os dois furos no tecido.

— Isso deve ter doído.

— Um pouco — admitiu.

Ele sorriu, alisando a barba.

— Acho que vou falar com o meu alfaiate e pedir alguns desses.

— Sábia decisão — concordou. — Como soube?

— Carolina ligou. Foi interessante… — recordou a aflição na voz da enteada, sabia que ela tinha verdadeira aversão a Carla e isso o deixou curioso. Sua associada estaria dobrando o coração indomável da moça?

Carla passou a mão nos cabelos, alinhando alguns fios que escaparam de sua trança, satisfeita por saber que Carolina havia tentado ajuda-la, ainda que a ajuda tivesse chegado tardiamente.

— Bem, já que nosso compromisso foi cancelado, gostaria de tomar café comigo? — ela convidou.

Ele riu como sempre, achando divertido a sua frieza diante dos recentes acontecimentos e reconheceu para si mesmo que sentiu verdadeira preocupação por seu bem-estar quando Carolina ligou.

— Um outro dia. Tenho um assunto a tratar graças a você — declinou do convite olhando para a mala do carro na qual Joaquim havia sido jogado, mesmo estando curioso para conhecer o lar dela e verificar o que se passava entre ela e sua enteada.

Carla assentiu, mirando com pesar os corpos dos seguranças mortos. Estavam aos seus serviços havia cinco anos. Eram bons homens, afinal. Não faziam parte da organização de Marcos diretamente, pois respondiam somente a ela.

— Poderia me ceder alguns homens para limpar esta bagunça até que Tito venha assumir essa função? — questionou, ajoelhando-se ao lado de Raul e fechando seus olhos com uma mão ligeiramente trêmula.

Ela sempre encontrava beleza na morte, mesmo assim, não conseguia se desvencilhar da ideia de que algumas vezes ela era realmente injusta. Marcos fez um gesto com a mão e quatro de seus homens se apresentaram, enquanto ele se afastava.

— Marcos — chamou e ele se voltou para mirá-la. — Esta é a primeira dívida.

Não era daquela maneira que havia planejado, mas havia cumprido o que havia se proposto a fazer: entregar a cabeça de Joaquim para Marcos.

Ele inclinou a cabeça, assentindo.

***

Maria e Carolina a esperavam quando adentrou na casa com passos lentos. A índia se jogou em seus braços, envolvendo-a em um abraço apertado no qual rilhou os dentes para não deixar que nenhum gemido de dor lhe escapasse. Não a queria preocupada sem necessidade.

— Eu estou bem — repetiu pela quinta vez, fugindo da análise minuciosa da amiga.

Carolina as observava desejosa de a abraçar também, mas receosa de fazê-lo e a viu se afastar em direção ao quarto dizendo que precisava de um banho e roupas limpas. De fato, precisava mesmo, pois tinha uma certa quantidade de respingos de sangue em seus trajes e alguns em seu rosto.

— Céus! Vai logo falar com ela — Maria a empurrou de leve — ou prefere ficar aí feito uma pateta? Sei que sentiu tanto medo quanto eu, pelo menos assuma isso.

Pensou em dar-lhe uma resposta malcriada, no entanto a obedeceu.

— Espera — Maria a chamou quando já se afastava, desapareceu em direção a cozinha e voltou um minuto depois com uma bolsa de gelo. — Leve isto, ela vai precisar.

Carolina caminhou diante da porta por um minuto, indecisa se devia ou não bater. A noite havia sido longa e cheia de descobertas e o dia se iniciava com uma tempestade de sangue. Apesar disso, sua mente insistia em lhe recordar os beijos trocados minutos antes de toda aquela confusão e seu coração batia alegre por saber que Carla se encontrava bem.

Por fim, resolveu entrar sem bater e se deparou com Carla somente de calça e sutiã diante do espelho. Seu olhar foi rapidamente atraído para as duas manchas vermelhas que começavam a ganhar tons arroxeados em seu abdômen.

— Você está bem? — perguntou se aproximando e Carla identificou certa preocupação em sua voz o que levou um pouco de conforto ao seu coração.

— Vou ficar.

— O que… — apontou para as manchas.

— Tiros.

— Céus! Você estava com colete?

— Não exatamente. Mandei revestir algumas das minhas roupas com um tecido especial chamado Kevlar*, resistente como um colete, muito mais leve e discreto. Esperava ter confusão hoje, mas não na porta da minha casa — admitiu com pesar, evocando a lembrança dos corpos de Raul e Éder.

Carolina lhe estendeu o gelo, mas Carla não o pegou. Em vez disso, aprisionou sua mão e a levou até o machucado, deixando que percebesse uma microexpressão de dor quando o gelo que segurava tocou a região.

— Você é uma idiota! — reclamou.

Carla riu, pressionando uma pouco mais a mão dela contra o machucado e Carolina estremeceu ao vê-la rir como fizera mais cedo após beijá-la. Seu riso era, definitivamente, lindo.

Juntou as sobrancelhas, confusa. Sempre a desprezou pelo que fazia, no entanto não conseguia sentir aquela aversão naquele momento, apesar dos acontecimentos. E concluiu que, de certa forma, não a julgava por saber que ela havia apenas se defendido.

No entanto, o medo que sentiu ainda ressoava em seu peito.

— E você é uma graça quando está zangada e com vergonha também — Carla respondeu, ainda rindo.

Carolina tentou se afastar, mas a loira não permitiu aumentando a pressão sobre sua mão.

— Quero mesmo ir embora daqui — disse, abrindo seu coração, deixando que suas palavras demonstrassem a intensidade de seu desejo.

— Eu sei — Carla abandonou o riso.

Carolina fixou seu olhar.

— São coisas como a que acaba de acontecer que não quero para a minha vida. Por favor, me deixe ir.

Carla tocou sua face e, embora desejasse muito, Carolina não se afastou.

— Maria disse a verdade, você sempre foi livre aqui.

— Então, porque me deu a entender que não era?

— Porque sou egoísta e queria tê-la por perto por mais algum tempo, cuidar de você, protege-la de qualquer perigo, até de si mesma.

— Por que?

Carla voltou a sorrir e Carolina percebeu que seus olhos ficaram marejados, mas não permitiu que as lágrimas encontrassem o caminho para além deles.

— Porque eu te amo.



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