13.

I

Marcos atirou o que restava de seu charuto no chão e o esmagou cheio de ódio, enquanto o vento bagunçava seus cabelos. Carla o observou dar alguns passos com a cabeça baixa, enquanto absorvia as notícias com os punhos cerrados.

Tinha quase sessenta anos e ainda mantinha o vigor e a aparência de um homem que havia acabado de entrar nos quarenta. Seu porte físico era invejável, assim como sua cultura. Embora fosse um criminoso, gostava de artes, livros, aprender outras línguas, entre outras coisas e Carla aprendeu muito com ele e sua falecida esposa. Enquanto ele era a tempestade, Lizandra era a calmaria e assim o amor deles se completava, em equilíbrio. Algo que ela esperava, um dia, encontrar.

Estavam à beira de um penhasco em uma interseção da estrada que levava até um de seus armazéns. Era uma visão magnifica e perigosa que tinham do vale abaixo.

— Você fez isso? — ele questionou, tentando controlar o seu ódio.

Ela dirigiu seu olhar para os capangas encostados no carro dele, trinta metros adiante, certificando-se de que estavam longe o suficiente para não ouvirem a conversa que estavam tendo. Havia lhe pedido que a encontrasse ali, onde ninguém poderia interferir em seu diálogo e não ficou surpresa ao ser interpelada sobre traição.

— Não e sim.

Ele a fulminou com o olhar e ela continuou:

— Não, eu não o traí, Marcos. Jamais o faria, não é da minha natureza.

— Mas acabou de admitir — ele rosnou.

Ela retirou os óculos escuros e deixou que ele mirasse seus olhos, esperando que ele encontrasse a verdade neles.

— Não admiti nada. O que disse é que eu fiz ou, pelo menos, é isso que vai parecer, que já está parecendo.

— Estou confuso — ele admitiu, abotoando o paletó, corrigindo sua postura com um suspiro impaciente, mas disposto a ouvi-la com atenção.

Ela se aproximou da beirada do penhasco e contemplou a centena de metros que a separavam de sua base.

— Também fiquei por algum tempo — admitiu e deixou um de seus raros sorrisos o atingir, enquanto contava os fatos.

Havia algumas semanas, estavam chegando nas ruas drogas oriundas de um fornecedor misterioso. Usando sua rede de aliados, Carla conseguiu pôr as mãos em alguns papelotes e pinos. Pediu que testassem a qualidade do material e descobriu que vinham do mesmo carregamento que Joaquim alegava ter sido roubado semanas antes, do qual encontrou uma parte em um dos seus depósitos e mandou queimar.

Chegou aos seus ouvidos que, nas rodas mais sombrias da cidade, onde os piores e mais desprezíveis tipos se reuniam, começou a surgir um nome: Carla Maciel. Era apenas um sussurro entre criminosos da mais baixa categoria, mas era o suficiente para causar algum furor e confusão entre os associados da organização de Marcos, o que ficou ainda pior quando uma de suas cargas foi roubada e seus homens executados com um teatral toque que lembrava o estilo de Carla agir.

A misteriosa serpente que havia mencionado para Joaquim, agora, direcionava o foco para ela, abalando a confiança que Marcos lhe dedicava e o respeito dos seus associados.

Com o olhar fixo no horizonte, ela contou para ele sobre suas suspeitas e o pouco que havia descoberto desde que haviam conversado em sua casa após a visita de Joaquim na transportadora.

— Você tem provas?  — ele questionou.

Ela riu em meio a um suspiro, as mãos enfiadas nos bolsos, o vento balançando os fios loiros de seu cabelo que haviam se soltado de seu penteado costumeiro e ele vasculhou sua mente em busca de um momento como aquele, em busca de uma lembrança dela rindo e com aparência tão tranquila como se nada pudesse afetá-la. No entanto, a situação em que se encontrava era terrivelmente inquietante.

Não, ele não acreditava que ela pudesse traí-lo, mas como homem de negócios, mais especificamente de um negócio traiçoeiro, estava sempre à espera de traição e disposto a punir os traidores. Não seria diferente com ela.

— Se tivesse, nós não estaríamos tendo esta conversa.

Era verdade e ele a reconheceu com um breve inclinar de cabeça.

— Então, como quer que eu acredite em sua inocência?

Ela recolocou os óculos que havia esquecido pendurados em sua camiseta e voltou a contemplar o vale abaixo do penhasco, admirando a vista, admirando a morte bonita que ela poderia proporcionar e lhe ocorreu que pensamentos como este sempre lhe surgiam em diversos lugares e ocasiões, até mesmo nas horas mais corriqueiras. Como Carolina havia escrito no desabafo que teve oportunidade de ler: a morte a acompanhava onde quer que fosse. Contudo, preferia pensar que estava apenas admirando a beleza daquilo que as pessoas consideram trágico e feio.

Havia muita beleza em encontrar o fim.

— Não quero — respondeu, por fim. — Estamos juntos nesta estrada há treze anos e, reconheço, às vezes gostaria de não tê-la seguido e escolhido a morte que você me ofereceu com prazer.

Ele a contemplou, emudecido, buscando nela os traços da adolescente que suas palavras evocaram e não sendo mais capaz de vê-la.

— A morte teria sido muito bem-vinda naquela época, — admitiu — mas você me deu uma escolha e, graças a uma pequena fração de segundos perdida na escuridão de um olhar, escolhi a vida.

— Onde quer chegar?

Um carro chamou a atenção dos dois por um instante, fez uma curva em alta velocidade e quase derrapou para fora da estrada, mas seguiu seu caminho sem problemas e os capangas, que haviam colocado as mãos sobre as armas antevendo algum perigo, voltaram a relaxar.

— A lugar nenhum, para ser exata. Estou apenas divagando — reconheceu, voltando à conversa.

Depois da discussão com Carolina e de acalentar seu pranto, sentia-se muito mais comunicativa do que geralmente era. De certo modo, até se sentia um pouco em paz e com um leve inclinar de cabeça, reconheceu para si mesma que era uma mulher estranha, mas que isso a definia como humana apesar do que pensavam.

Apesar da seriedade da conversa que estava tendo com Marcos e das possíveis consequências, não conseguia tirar o beijo que deu em Carolina da cabeça. Havia sido impulsivo. E ela, Carla, nunca fora impulsiva. Isso só deixava mais evidente o poder que Carolina exercia sobre si e a gama de sentimentos que explodiam em seu interior quando estavam próximas.

Fora um beijo infantil, mesmo assim, havia sentido o calor e maciez de sua pele com seus lábios e, isso, havia sido infinitamente melhor do que na sua imaginação.

Marcos sorriu para o vento forte que despenteava seus cabelos negros e grisalhos nas têmporas, achando divertido ver outra face dela, apesar da raiva que sentia diante do problema que se apresentava.

— O chamei aqui por duas razões — revelou, voltando a se concentrar nele. — A primeira, era lhe falar sobre o que anda acontecendo, mas você já sabia de quase tudo. A segunda, para lhe cobrar duas dívidas.

— Dívidas? — ele franziu a testa, não lhe devia favores.

— Sim — ela voltou a sorrir. — A primeira já tem dez longos anos.

Ele baixou a cabeça, olhando para a aliança em sua mão, sabia bem do que ela falava. Realmente, lhe devia um grande favor. Era algo que, tinha certeza, apesar do que viesse a lhe pedir, jamais conseguiria pagar da forma certa. Contudo, pensou que ela jamais o cobraria, já que não voltou a tocar no assunto por dez anos.

— Só tenho uma dívida com você, pelo que me lembro.

— Se o que planejo der certo, terá duas. Mas, tudo depende do quanto está disposto a confiar em mim, apesar da situação desfavorável em que me encontro.

II

Carolina observava o portão de ferro sólido e hastes retorcidas pelas mãos habilidosas que o fizeram. Através dele, enxergava a rua mal iluminada e sombria, convidando-a a se perder em sua escuridão, em seus segredos. E ela o desejava, mas temia não ser capaz de encontrar o caminho de volta.

Um vento frio atingiu sua face com impetuosidade e agitou as cortinas ferozmente, fazendo-a dar um passo atrás e fechar a janela com pressa. Contudo, permaneceu no mesmo lugar, observando em silêncio na penumbra no quarto.

Após a estranha conversa que teve com Carla, ela se obrigou a retornar ao quarto e, pouco a pouco, o colocar em ordem e notou a satisfação nos olhos de Maria quando ela veio chama-la para almoçar e a encontrou com uma pilha de roupas dobradas e alguns sacos de lixo recheados de objetos quebrados e papéis rasgados.

— Não me olhe assim — pediu, admitindo em seguida que nem ela mesma suportava a bagunça que havia feito no local.

A índia deu de ombros com um sorriso e desapareceu pelo corredor, dizendo que uma boa arrumação no ambiente ajudava a organizar a mente também.

Ela tinha razão.

Nos últimos meses estava no limite de suas emoções, indo de encontro as consequências de decisões egoístas, fingindo-se de cega para não ter que admitir seus erros. Então Carla, que sempre considerou amoral, atirou suas verdades em seu rosto como se soubesse o que se passava no local mais escuro de seu coração, como se pudesse ler sua alma e isso abalou suas crenças.

Aos poucos, o ódio que sentia por ela e as ideias pré-concebidas que tinha, iam sendo desconstruídas e isso era duro de aceitar.

Ainda a odiava, claro!

Odiava o que ela representava, o que fazia. Mas, ficava difícil manter esse ódio quando ela se comportava da maneira que havia feito naquela manhã, a consolando, sorrindo como alguém normal, lhe dedicando palavras de conforto e mostrando-se vulnerável quando falou de sua mãe, principalmente, quando falou de sua mãe.

— Você a teme sem conhecê-la — dizia Lizandra quando a filha expressava sua aversão à Carla.

— Já conheço o suficiente para isso. Não entendo como consegue dormir tranquila com ela por perto.

Lizandra sorria, balançando a cabeça como se enxergasse bem mais do que estava diante de si e Carolina revirava os olhos, indignada com sua resposta:

— Ela cuida de mim e eu dela, assim como acontece entre nós.

Agora, compreendia suas palavras, enxergava o que havia se negado a ver, pois procurava estar sempre distante quando a associada de Marcos vinha ter com sua mãe e perceber isso a deixou ainda mais triste.

Havia passado o dia nessa mistura de pensamentos, ideias, conjecturas, lembranças, sentimentos conflituosos e isso não passou despercebido pelos olhos intensamente negros e observadores de Maria quando se reuniu a ela para almoçar, apesar da fome que não sentia.

Procurou algum sinal de Diana, mas a moça não estava a vista e, segundos após se sentar à mesa, o som da água espirrando na piscina lhe indicou onde se encontrava.

— Você não parece bem — Maria comentou.

— Eu não me sinto bem — admitiu. — Não me sinto bem há muito tempo.

Fez um pouco de esforço para engolir um pouco da salada em seu prato, consciente de que o que havia dito datava de muito antes de ter ido para aquela casa.

— Talvez só precise relaxar um pouco, pôr os pensamentos em ordem.

— É um pouco difícil relaxar nesta casa quando não passo de uma prisioneira nela — respondeu azeda, embora não tivesse essa intenção.

Suas palavras, naquele momento, eram reflexo da mistura de sentimentos que ainda tentava controlar, mesmo admitindo que as lágrimas que derramou nos ombros de Carla, naquela manhã, aliviaram um pouco sua carga emocional.

Maria sorriu, um sorriso muito branco e descrente.

— Você nunca foi uma prisioneira nesta casa — afirmou.

Carolina depositou o garfo no prato com cuidado, olhando-a firme. Percebeu que ela, realmente, acreditava no que havia dito e fez um grande esforço para não gritar a chamando de estúpida.

— Vejamos, — respirou profundamente — sua patroa me trouxe para cá contra a minha vontade; vou e volto do trabalho com ela, aliás, trabalho para ela; tem dois “armários” vigiando o portão o tempo todo e, na única ocasião em que pedi a ela para sair e ir ao cemitério visitar o túmulo do meu amigo, se negou a enviar alguém comigo. Isso não lhe parece uma prisão?

Maria passou a mão na testa, escorregando-a entre os cabelos, enquanto reunia um pouco de paciência. Carolina era estupidamente cega.

— Certo, vamos ver isso por outro ângulo. Você estava inconsciente quando chegou nesta casa, para onde foi trazida para que não fosse jogada em uma cova rasa no meio de um matagal qualquer. Você trabalha naquela transportadora porque, assim, Carla pode garantir ao seu padrasto que está de olho em você e, já que estão indo para o mesmo lugar, não faz sentido não te levar junto ou trazer.

Fez uma pausa e tomou um pouco da água no copo à sua frente.

— Os dois “armários” no portão estão lá desde que vim morar nesta casa, são uma garantia de que ela não vai encontrar um grupo de loucos armados até os dentes para matá-la, como já aconteceu certa vez. Quanto à sua visita ao cemitério, esperava mesmo que ela lhe concedesse um acompanhante após ler o que você escreveu sobre ela?

Carolina apertou forte o copo que tinha entre às mãos. Então, suas suspeitas de que Carla havia realmente lido seu desabafo se confirmaram e Maria percebeu.

— Sim, eu sei disso. Ela me conta tudo.

— No leito, tenho certeza, como uma boa amante — destilou seu veneno, desejando jogar um pouco da sua raiva nela, embora soubesse que estava errada.

O carinho com que as duas se tratavam e as taças de vinho que gostavam de tomar no escritório à noite entre conversas sussurradas, nunca lhe passou despercebido. Obviamente, nunca as vira em situação mais íntima, mas, para ela, estava claro que eram amantes e com a chegada de Diana, percebia que Carla tinham um pequeno harém. Isso serviu de combustível para reavivar seu desprezo por ela.

Além disso, não acreditava naquela historinha de que era livre para ir e vir o tempo todo. Era ridícula, afinal, Carla sempre lhe impôs sua vontade.

— Você acha que acredito que ela tem um coração tão bom que dá presentes caros para a empregada?

Maria se colocou de pé, recolhendo seu prato com a comida ainda intocada. Pela primeira vez, entendeu o que Carla queria dizer quando lhe falou que Carolina levava suas emoções a extremos.

— Como amigas — respondeu grave, segurando a vontade de dar a volta na mesa e sacudi-la com força até perceber o quão idiota estava sendo. — Nunca fui empregada dela.

Sabia que não precisava, mas se sentiu na obrigação de lhe esclarecer.

— Ela me acolheu quando precisei. Os serviços da casa, faço porque gosto, apenas isso — sorriu com um pouco de desgosto. — Você nunca procurou vê-la como é de verdade e qualquer coisa que saia de sua boca sempre lhe parecerá vil.

Começou a se afastar da mesa, mas voltou-se. Os olhos negros brilhando intensamente, tentando, em vão, ocultar sua raiva.

— Já se perguntou se o único ser desprezível nesta casa não é você com sua cegueira e insistência em culpa-la por suas desventuras?

A salada, que não lhe parecia nenhum pouco apetitosa quando se sentou à mesa, lhe pareceu ainda mais desagradável após a partida de Maria. Contemplou sua mistura de cores por algum tempo, tentando digerir o impacto que as palavras da índia lhe causaram e sequer ergueu o olhar quando Diana cruzou a porta de vidro que levava aos jardins, completamente ensopada e com um sorriso provocante nos lábios. Não lhe dirigiu a palavra quando ela a cumprimentou e retornou para seu quarto envolta em nuvem negra de mau-humor, ciente de que havia sido, outra vez, a garota mimada e egoísta que Carla havia afirmado que era.

Quando a noite chegou, Maria não foi chama-la para jantar como era costume. Então, se deu conta de que a tinha ofendido de verdade e estava arrependida, mas não sabia como lhe pedir desculpas. Então, permaneceu no silêncio e solidão de seu quarto, contemplando a noite fria e quase sem estrelas.

No entanto, as palavras de Maria a tocaram mais fundo do que imaginou no momento. Ela seria mesmo livre durante todo o tempo em que ali estava? Se era assim, por que Carla sempre deu a entender que não tinha escolha?

Jogou-se na cama, fitando o teto, sentindo o rubor tomar conta de suas bochechas de novo ao lembrar da conversa que teve com Carla pela manhã, do beijo carinhoso que lhe dera e, consequentemente, a visão de seu corpo parcialmente desnudo. Era, realmente, linda.

O brilho dos faróis de um carro se insinuou pela janela e tocou o teto alertando-a para o retorno de Carla. Se colocou de pé e se aproximou da janela ainda em tempo de vê-la descer do veículo e entrar em casa com passos largos. Aguardou alguns minutos, à espera de ouvi-la entrar no quarto. Queria abordá-la e ter a conversa sobre a qual ela lhe falara, além disso, queria tirar a limpo o que Maria lhe disse.

Andou de um lado para o outro do quarto à sua espera por alguns pares de minutos e, como ela não veio, foi à sua procura e a encontrou no escritório conversando com Diana entre sussurros e carícias.



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