11.

I

Carolina afastou o olhar do teto. Havia passado metade da noite olhando para ele. Ainda estava abalada por tudo que havia acontecido naquele dia e por ter se permitido chorar nos braços de Carla como se fosse uma criança e do quanto se sentiu reconfortada ao fazê-lo.

Depois da discussão que tiveram e do choro, não haviam trocado mais qualquer palavra e se sentiu grata por isso, pois não conseguia olhá-la nos olhos. Ainda a odiava, era certo e, definitivamente, preferia culpa-la por Bento, era mais fácil do que admitir para si mesma seus próprios erros. Mas, agora, não conseguia mais fazê-lo e se sentia meio sem rumo naquele instante.

Nem conseguiu ficar surpresa quando, ao chegarem em casa, Carla chamou por Maria e sem nenhuma cerimônia lhe entregou o embrulho da joalheria.

— Feliz Aniversário, Maria. Espero que goste! — lhe deu um beijo na bochecha. — Comemoraremos no fim de semana. Você escolhe o programa.

A índia a envolveu em um abraço demorado, enquanto a agradecia. Com um meio sorriso, Carla se retirou rumo ao seu escritório e Carolina observou, por um longo e incomodo minuto, Maria desembrulhar o presente com um sorriso largo e cristalino. Aquela tarde havia sido tensa e desgastante. Mas, também, foi curiosa e lhe mostrou alguns aspectos de Carla que jamais imaginou. Ela tinha amigos, ajudava alguns com dinheiro, gostava de torta e era capaz de pagar uma pequena fortuna em um par de brincos para a empregada.

Realmente, não queria pensar em Carla como alguém que tinha coração, era mais fácil odiá-la e tinha muitos motivos para isso. Deu os parabéns a Maria, um tanto envergonhada, e pediu desculpas por não saber que era seu aniversário. A índia lhe agradeceu, dizendo que não tinha problema e saiu da sala, feliz, com seu presente em mãos.

Carolina ainda permaneceu um longo tempo na sala, fitando o vazio, até que se obrigou a ir para o quarto tomar um banho e foi com alívio que, uma hora mais tarde, ouviu Maria lhe informar que Carla havia saído e não tinha hora para voltar.

 — Você está bem? — a índia saiu de seu silêncio costumeiro.

Carolina a observava mexer, lentamente, o molho de uma macarronada, enquanto brincava com o copo de água quase vazio em suas mãos. Sentou-se à mesa, demorando-se ao processar a pergunta.

— Não — respondeu, por fim.

— Seus olhos estão inchados — observou Maria.

Carolina deu de ombros.

— Meus olhos estão sempre inchados — respondeu, sem forças para se irritar com sua curiosidade repentina e ergueu-se para se retirar. De fato, chorava quase todos as noites na solidão de seu quarto, mas nunca se permitia fazê-lo na presença dela ou de Carla como havia acontecido naquela tarde.

— O que aconteceu?

Já cruzava a porta quando ouviu a pergunta e se voltou para responder com olhar marejado.

— Tomei decisões erradas e, agora, não sei o que fazer com as consequências.

II

A manhã de sábado chegou ensolarada. Desde a discussão com Carla, na cafeteria, Carolina não saía do quarto. Havia se deixado cair em um torpor mental interrompido por momentos de fúria e choro. Olhava-se no espelho e desejava rasgar seus pulsos como um animal selvagem, então recordava-se do quanto Bento estimava a vida e voltava a chorar por ter sido responsável pelo fim da dele.

Carla não a incomodou durante aqueles dias, pelo contrário, manteve-se afastada de suas vistas. Saía cedo e voltava tarde. Mas, naquela manhã, enviou Maria até seu quarto com ordens para que a acompanhasse no café da manhã.

— Bom dia!

— Bom dia! — Carolina respondeu sem vontade e forçou-se a sentar-se ao lado dela na mesa.

Com mãos firmes, Carla serviu-lhe uma xícara de café, adicionando duas colheres de açúcar, exatamente como gostava, deixando-a levemente surpresa por ter observado isso, enquanto ela, Carolina, só sabia que ela gostava de torta e nem imaginava qual o sabor.

— Obrigada — agradeceu num sussurro. Sentia-se sufocada em sua presença.

— Não acha que está na hora de parar com isso?

Carolina ergueu o olhar para ela e percebeu que parecia mais sombria do que geralmente era. Algo estava diferente em seu olhar, parecia ligeiramente inquieto.

— Isso o que?

— Sentir pena de si mesma.

Irritada, Carolina estapeou a mesa e algumas gotas de café macularam o branco da toalha que a cobria. Seu humor andava negro e com picos de agressividade quase gritantes. Seu quarto havia se tornado reduto de vários objetos quebrados, rasgados e espalhados durante ataques de fúria.

— Sinto muito, mas nem todo mundo pode ser uma assassina fria e calculista como você!

Carla tomou um gole de seu próprio café, engolindo o nó que a raiva das palavras dela lhe trouxe a garganta, compreendendo que Carolina ainda não havia absorvido a essência da conversa que tiveram naquela tarde.

— Não se trata de ser fria ou calculista, Carolina. Trata-se de ser capaz de encarar a verdade e admitir seus próprios erros. Se perdoar e seguir em frente.

Carolina riu com escárnio.

— É sério que estou ouvindo isso de você?!

Carla recostou-se na cadeira, tamborilando os dedos na mesa.

— Você já se perdoou? Não, espera! Me deixa reformular a pergunta. Você, alguma vez, sentiu remorsos ao ponto de desejar encontrar o perdão? — Carolina questionou com voz um pouco alterada.

Carla deixou um sorrisinho vir aos lábios em meio a um suspiro e pegou a mão dela. Carolina ainda tentou se afastar, mas seu aperto era firme e quente.

— Você está com raiva e não sabe como lidar com isso, exceto pelo lixão em que transformou seu quarto.

— Droga! Eu te odeio! Será possível que você nunca perde a calma? — tentou puxar a mão outra vez.

— Está tentando me provocar. Quer que eu faça o que não tem coragem de fazer consigo mesma — afirmou. Podia ver no olhar dela o quanto desejava se destruir.

Carolina baixou os olhos, envergonhada por ser tão transparente e Carla continuou:

— Nunca desejei encontrar o perdão porque nunca me arrependi, Carolina — as safiras em seu olhar brilhando intensamente.

— Então, você está confirmando o que sempre pensei ao seu respeito. Você não tem alma, não tem coração.

Carla apertou um pouco mais a mão dela, sustentando seu olhar.

— Palavras tem poder, Carolina. Sua mãe sabia disso, as usava com maestria e enxergava através delas. Às vezes, gostaria que você fosse um pouco mais parecida com ela e, talvez, conseguisse enxergar o que está bem diante de seus olhos.

Soltou a mão dela devagar, sentindo sua pele queimar, ansiando poder manter aquele contato por mais tempo e Carolina engoliu o choro que ameaçava dominá-la outra vez. Falar sobre sua mãe havia sido um golpe baixo, ainda mais porque ela não estava por perto para se despedir quando ela faleceu.

 A viu erguer o olhar e deixar um sorriso largo se formar nos lábios, então se voltou para a direção em que olhava.

— Ei! — disse a moça parada à porta com um sorriso e uma piscadela. — A porta estava aberta — informou se aproximando da mesa.

Carla se colocou de pé e Carolina percebeu, finalmente, que estava de camiseta e shorts, deixando à mostra suas pernas torneadas e alvas. Era a primeira vez que a via tão informal e isso foi quase tão surpreendente quanto o que se seguiu.

— Mesmo que estivesse fechada, você encontraria uma forma de entrar — Carla respondeu antes da moça envolver seu pescoço e tomar seus lábios em um beijo suave e carinhoso.



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