Caçadora

7. Tito

 

— Já faz muito tempo.

Diana sorriu, exibindo uma confiança que não sentia naquele momento. Porém, não deixaria que Vanessa percebesse o quanto a abalava, afinal não estava ali para romance e, sim, para protegê-la. Contudo, era inevitável não sentir um palpitar forte no peito, já que era a primeira vez que se viam e conversavam em onze anos.

Vanessa permaneceu com a mão erguida, o metal do gancho refletindo a luz da lua, fracamente. De repente, tinha perdido o poder de se manter de pé e buscou algo em que se apoiar, mas tirando o caixote sobre o qual Diana sentava, não havia nada próximo. 

Notando o descontrole do seu corpo, Diana avançou para ampará-la, entretanto ela deu passos arrastados para trás, desejando poder estar a quilômetros dali.

— Fique longe de mim! — Exigiu, num fio de voz.

Durante aqueles dias, após a conversa com o mentor do seu sequestro, desejou que tudo não passasse de um terrível pesadelo. Então, olhava a fotografia que Gillian tinha lhe dado e desejava que aquela fosse apenas uma estranha, muito parecida com a falecida namorada. Colocava o dedo sobre a imagem da tatuagem nas costelas dela e ficava mais fácil, a ideia lhe parecia plausível.

Mas agora que estava diante dela e tinha certeza de que tudo era real, seu corpo não conseguia sustentar tantas emoções. O ar lhe faltou e o mundo girou diante de seus olhos. Curvou-se, uma das mãos no joelho, e, aos poucos, recuperou o oxigênio que a emoção lhe tomou.

Devagar, endireitou o corpo, obrigando-o a obedecê-la, e a encarou novamente. Uma parte sua queria correr para abraçá-la, sentir seu cheiro, seu calor e esquecer todo o passado. A outra, desejava poder ecá-la, despejando sua raiva e dor para que ela sentisse, fisicamente, o que ia em sua alma e soubesse quão devastada a deixou.

— Mesmo com tudo que ele disse, — uma lágrima escapou de seus olhos e sentiu-se grata pela pouca luz que privava Diana de vê-la — mesmo com esta foto… — puxou um papel amassado do bolso e o atirou aos pés dela. — Mesmo assim, quis acreditar que era mentira, que tudo não passava de um terrível engano. Uma parte de mim se apegou à lembrança da mulher que amei e que nunca me faria sofrer assim.

Avançou alguns passos, ficando a poucos centímetros daquele fantasma que tanto amou e, agora, só desejava odiar com todas as suas forças. O vento lhe trouxe o aroma do perfume dela, atormentando-a com a saudade que sentiu. No entanto, afastou aquela sensação e agarrou-se à raiva que revolvia em seu interior.

— Há uma explicação? — Perguntou.

— Não sei o que Aquiles lhe disse, Van. Mas sim, há uma explicação.

A voz dela era apenas um sussurro, mas a forma como a chamou de “Van”, abriu, um pouco mais, a ferida em seu peito. Somente Diana a chamava assim.

Vanessa esperou que ela continuasse, ansiosa pela verdade e desejosa de encerrar esse capítulo da sua vida, arrancando, de vez, aquela mulher do seu coração. Mas, em vez disso, Diana recuou, buscando manter uma distância segura e lutando contra o desejo de abraçá-la forte.

— Mas não agora, não aqui. E, com certeza, não com você segurando isso.

A morena olhou para a mão que segurava o gancho, percorrendo as linhas que moldavam sua forma ameaçadora. Não tinha percebido que a erguera novamente. Indecisa, a desceu, contudo não largou o gancho, cujo frio do metal parecia estar lhe dando forças para se manter firme, diante daquela estranha conhecida.

— Até o momento, percebo que ele só me disse verdades. — Vanessa declarou.

O som de vozes chegou até elas, carregado pelo vento frio que anunciava a aproximação de nuvens chuvosas. Vanessa se voltou para a direção de onde os sons vinham.

— Os motoristas da nossa “limousine” chegaram. — Diana abriu os braços, indicando que falava do barco. Tinha um tom brincalhão na voz, que mudou na frase seguinte. — Volte lá para baixo. — Apontou para o local de onde ela viera.

Um grupo de homens se aproximava com passos pesados, que faziam as tábuas do píer estalarem à sua passagem. Irritada, Vanessa respondeu:

— Não vou a lugar algum até que me conte a verdade.

Diana olhou para o céu estrelado e sorriu, perturbando a ex, outra vez.

— Sempre amei a sua teimosia, mas este não é o momento para ela. — Disse a ladra.

O vento bagunçava seus cabelos, trazendo para Vanessa recordações da adolescente brincalhona que esbarrara nela na entrada da biblioteca e, com um sorriso maroto, lhe convidara para tomar um sorvete como pedido de desculpas, dando início a uma grande história de amor.

Aquela mulher se parecia com a sua Diana, mas com certeza, era uma estranha.

— Teimosia?! — Vanessa aumentou o tom da voz. — Você morreu! Pior, fingiu a própria morte. É justo que me conte a verdade e eu a quero agora! E, depois disso, você pode sumir da minha vida e morrer de uma vez por todas!

Alguns segundos de silêncio se passaram, interrompidos pelo som da água e as vozes que se aproximavam. As palavras dela pareceram surtir o efeito contrário em Diana, que prendeu os cabelos em baixo de um boné esfarrapado, que segurava desde o início daquela conversa. A ex colocou os óculos de grau, que estavam presos na camiseta, e, de alguma forma, Vanessa teve a certeza de que estava diante de outra pessoa.

A pouca luminosidade não ajudava muito, mas seus gestos lhe pareceram mais bruscos quando vestiu um dos casacos que estavam jogados sobre a mochila, ao lado do caixote que ocupava minutos antes. Diana lhe atirou os outros dois casacos.

— Vista isso e coloque o capuz. Volte lá para baixo e mande a Bela Adormecida fazer o mesmo. Se alguém lhe perguntar algo, não responda, não ria, não olhe.

Vanessa fitou os casacos, incrédula. Depois, percorreu a figura dela com um misto de admiração e horror.

— Céus! Isso é loucura. Quem você pensa que é? A droga do James Bond?

— Com tantos personagens interessantes, você me compara justo ao 007, cujo o único disfarce é um terno caro e um charminho vagabundo? Nós precisamos mesmo conversar! — A ex brincou, a irritando ainda mais.

De repente, ela sorriu causando, outra vez, um efeito devastador em Vanessa. Era o mesmo sorriso que a visitava nos sonhos.

— Nossa, como senti falta disso! Até o seu ódio te deixa mais linda! — Diana se aproximou e lhe sapecou um beijo no canto da boca.

Foi um gesto tão rápido e inesperado, que Vanessa só compreendeu o que tinha se passado quando ela já estava a um metro de distância.

— Vá agora! — Diana ordenou, se dirigindo para o lado do barco ladeado pelo píer.

Furiosa, Vanessa atirou o gancho no chão e avançou para ela, com o punho cerrado.

— Como você ousa?! — Gritou. Os lábios tremiam de ódio, assim como as mãos.

Ágil, Diana se afastou, evitando o soco.

— Você era mais doce, me lembro bem disso. — Ela riu, provocadora.

— Não há mais espaço para doçura em mim, desde que descobri que a minha ex-namorada fingiu a própria morte e anda pelo mundo cometendo crimes! E agora acha que pode retornar dos mortos e me beijar assim, como se não houvesse acontecido nada! Eu não sou seu brinquedo, Diana!

— Sem dramas, Van. Foi só um beijinho. — Diana deu de ombros.

Apesar da seriedade da situação e da raiva que ela externava, não conseguia evitar a provocação. Vanessa ficava ainda mais linda exalando toda aquela fúria, todavia deixá-la assim também a ajudava a manter o foco do que tinha se proposto a fazer e evitava que cedesse a vontade de se jogar nos braços dela, implorando um perdão que não chegaria.

Vanessa tentou acertá-la de novo, cada vez mais irritada com o cinismo no seu sorriso. Desta vez, Diana a segurou com firmeza e falou:

— Eu entendo. De verdade. Você está com medo, com raiva, triste e magoada, e a culpada sou eu. Você me odeia e é perfeitamente compreensível, mas este não é o momento para termos essa conversa, também não é o lugar.

— Só quero a verdade, nada mais. E, depois, você pode ir para o inferno! — Vanessa tentou se libertar.

Diana a puxou para mais perto e a ferida em seu abdômen lembrou-a de que ainda estava ali, aberta e sangrando. No entanto, continuou prendendo Vanessa firme, junto ao seu corpo.

— Você a terá todas as respostas quando estivermos seguras. Algumas são boas, outras não. Algumas lhe parecerão mentiras, mas garanto que não são. Até lá, faça o que digo. Se Aquiles nos encontrar, irá nos matar.

Foi a vez de Vanessa sorrir, cética.

— Pelo que entendi, é você quem ele quer morta. E, sinceramente, não ligo a mínima pra isso. Afinal, você já está morta mesmo.

Diana deixou um suspiro escapar. Não tinha tempo para aquilo, precisava fazê-la entender.

— Não se iluda, Van. Se ele nos encontrar, vai me fazer assistir a sua morte como vingança.

Vanessa engoliu em seco com o terror que a ideia lhe trouxe, mas não desistiu:

— Por que faria isso? Não sou nada para ele.

— Mas é tudo pra mim! — Diana revelou sem titubear, então a soltou.

Tão logo se viu livre, Vanessa lhe encheu a face com um sonoro e doloroso tapa. Os óculos de grau deslizaram pelo piso de madeira da embarcação, fazendo ruído, enquanto a dor tomava a face dela.

Estavam muito próximas e ambas respiravam pesadamente. Os olhos fitos um no outro, travando um duelo mudo de sentimentos à flor da pele. Por um breve instante, só existia aquele momento, só existiam aqueles olhares, onde a raiva, saudade e paixão se misturavam.

Diana se recuperou primeiro, apanhou os óculos que tinham caído próximo ao papel que ela jogara no chão e também o recolheu, enfiando no bolso da calça.

— Espero que esteja se sentindo melhor — disse, recolocando os óculos e ajustando o boné.

Vanessa fitava a própria mão, sentindo a ardência da agressão. Estava surpresa com a força do seu ódio. Nunca foi uma mulher violenta e descontrolada, pelo contrário. Mas, desde a noite do sequestro, vinha experimentando uma gama de emoções que lhe eram alheias e, às vezes, encontrava dificuldade em se controlar, como naquele momento.

Cerrou o punho e voltou a fitar a ex-namorada, desta vez, segurando as lágrimas que ameaçavam dominá-la.

— Como… — respirou fundo e limpou a garganta. — Como pode dizer que sou tudo para você, se me abandonou?

— Não te abandonei, Van. Eu escolhi por você, é diferente. Mas isso não muda nada. — Diana a empurrou, gentilmente, indicando as escadas, de onde a cabeça loira de Cristina surgia. — Vá. Conversaremos depois.

Confusa e abalada com aquela declaração, Vanessa decidiu dar-se, momentaneamente, por vencida. Precisava de um tempo para organizar seus pensamentos. Não podia exigir verdades de Diana, quando não conseguia se controlar diante de frases como aquela.

Os homens entraram no barco segundos depois e, Diana, outra vez, tinha se tornado a estranha.

— Amigos, estava me perguntando quando chegariam — disse ela para os pescadores e Vanessa se voltou para Cristina, empurrando-a de volta para o piso inferior do barco.

Trechos da conversa lhes chegavam aos ouvidos e pôde notar, com clareza, que a voz dela estava diferente, mais grave e anasalada. Falava rápido, atropelando algumas letras nas palavras ou emendando-as, como se fosse alguém de pouco estudo.

Só preciso de uma carona, amigos. E tenho um passe livre — dizia ela.

A resposta se perdeu no vento, mas no instante seguinte, risadas se propagaram e Diana continuou a conversa em voz baixa, sendo, vez ou outra, interrompida por uma risada ou palavrão que se sobressaía aos murmúrios.

Cristina esfregou a testa devagar. Um galo se elevava do local em tons arroxeados. Vanessa passou a mão sobre ele, indagando como a namorada se sentia. Cristina tentou esconder o desconforto, fazendo uma piada sobre a dor de cabeça e Vanessa lhe sapecou um beijo nos lábios, envolvendo-a em um abraço apertado.

Estava aliviada por vê-la bem, na medida do que era possível. Além disso, precisava da força dela, do seu calor. Necessitava da certeza e segurança que Cristina sempre lhe dava.

— Onde estamos? — Cristina indagou.

— Não sei — Vanessa respondeu se afastando. — Diana não me disse, aliás, ela não falou nada de útil.

Cristina a encarou de volta, entre surpresa e preocupada.

— Ela está aqui? — Perguntou.

— Em carne, osso e muito deboche. — Vanessa confirmou, enfiando uma mão trêmula entre os cabelos fartos. — Eu não sei como, mas o cara com quem lutamos, naquela garagem, era ela.

O rosto de Cristina se contraiu, em desagrado.

— Somos prisioneiras aqui? — Quis saber ela, passando os olhos pelo local.

Vanessa suspirou, fazendo uma careta ao olhar para as escadas como se estivesse diante de algo nojento.

— Acho que não. Ela deu a entender que só quer nos “proteger”. — Fez um gesto com os dedos indicador e médio de ambas as mãos para dar ênfase à última palavra.

Ela tentava não demonstrar o desconforto que sentia. Muito mais do que as emoções do reencontro, foram as palavras de Diana que a abalaram. Seria mesmo verdade? Após tantos anos, ainda era importante para ela? Preferia acreditar que não passava de outra mentira.

— Vamos embora! Não te quero perto dessa mulher. — Cristina tomou a mão dela, se dirigindo para a escada, entretanto, Vanessa fincou os pés, forçando-a a parar.

— Não vou a lugar algum sem as respostas que ela me deve! Sinto muito, Cris.

A namorada a focalizou em meio ao silêncio, que não durou muito:

— Sei que quer a verdade, Vanessa. É um direito seu. Porém, ficar perto dela é perigoso. Veja o que nos aconteceu. — Abriu os braços, ligeiramente. — O mais certo a fazer é partir, enquanto podemos.

— Você tem razão, Cris. Não nego isso. Também desejo estar a quilômetros daqui. Se fosse possível, colocaria um planeta de distância entre nós. Contudo, o fantasma da ignorância me perseguiria. Então, não posso partir sem a verdade que ela me deve.

Exasperada, Cristina argumentou:

— Ela é uma criminosa!

— Prefiro me definir como uma “artista”, pois o que faço é arte e eu sou a melhor. Pode apostar. — Diana a fitava do alto da escada.

Ela tinha um sorriso presunçoso nos lábios, sem perceber o quanto vê-la surgir assim era assustador para Vanessa. Desceu os degraus que as separavam com agilidade, apenas para não demonstrar a dor que sentia fisicamente. Tanto para elas, quanto para os homens no convés.

— Olá, Bela Adormecida! Achei que perderia a viagem. — Recostou-se à parede de madeira, desprezando as lascas de tinta que caíram em seu ombro. Retirou o boné e os óculos, permitindo que vissem seu rosto com perfeição e Cristina reconheceu a mulher da fotografia.

A lanterna pendurada sobre suas cabeças, iluminava uma face jovem, cuja beleza não tinha sido retratada adequadamente naquela foto. Os olhos castanhos brilharam, desafiadores, como se convidassem Cristina a tentar descobrir os seus segredos mais profundos.

Vanessa sentiu a pressão da mão da namorada aumentar sobre a sua. O ciúme era evidente no olhar dela e a professora admirou aquela expressão com satisfação, já que Cristina raramente a demonstrava. Nem por isso, sentiu-se menos incomodada com a chegada de Diana.

Em silêncio, Cristina puxou Vanessa para mais perto e fez questão de subir o primeiro degrau, porém Diana esticou uma das pernas, impedindo seu avanço.

— Vão a algum lugar? — A ladra perguntou.

— O mais longe de você, de preferência.

O motor do barco roncou. Um dos homens gritou algo para outro e começaram a se locomover.

— Ops! Tarde demais, loirinha. É melhor se acomodar e curtir a viagem. — Diana sorriu, debochada.

Cristina tentou avançar novamente, mas ela se interpôs com mais eficiência em seu caminho. As duas se encararam, como se estivessem em um duelo silencioso.

— Isso é outro sequestro, então. — Cristina falou.

Ela olhou para a namorada em busca de algum apoio, embora Vanessa já tivesse deixado clara sua vontade de não partir até obter respostas sinceras da ex-namorada. Surpreendeu-se ao ver o brilho do olhar que a morena dedicava à Diana. Vanessa, com certeza, a odiava e estava magoada com a traição, contudo, o fel de suas palavras era traído pela forma como a fitava.

Cristina sentiu um aperto no peito, uma dor que não sabia explicar, mas que a jogou em uma espiral de angústia. Percebendo que Vanessa, agora, a observava com apuro, ela tratou de se mostrar firme. Por sua vez, Vanessa soltou a mão dela e caminhou até os limites das paredes que as cercavam. Outra vez, desejava estar a quilômetros dali, de preferência sozinha, para encontrar o equilíbrio que Diana lhe tirou naqueles poucos minutos.

— Você pode encarar assim, se te faz sentir melhor. Mas tudo que estou fazendo é para protegê-las. — Garantiu Diana.

Recuperando-se das novas percepções, Cristina voltou-se para ela.

— A única coisa de que precisamos nos proteger, é de você! Por sua causa, fomos sequestradas! — Acusou.

— Errado. — Diana ergueu um dedo, fazendo uma expressão que vagava entre o deboche e a presunção. — Vocês foram sequestradas porque Aquiles precisava me atrair. Ele necessitava de algo que me fizesse ir até ele e usou a única pessoa pela qual eu me arriscaria.

Seu olhar castanho cruzou com o verde de Vanessa, que deslizou para a parede mais próxima, na vã tentativa de escapar da presença dela. Finalmente, Diana desceu o último degrau, ficando a poucos centímetros de Cristina e analisando-a, de alto a baixo, com um sorriso pueril. Então, caminhou até um amontoado de lonas e jogou-se sobre ele.

— Coloquem os casacos e os capuzes. — Ordenou. — Não conversem, se um dos homens vier até aqui. Se lhes perguntarem algo, não respondam e nem fiquem a sós com eles.

Puxou o boné sobre os olhos e virou-se para dormir, embora soubesse que não conseguiria.

— Só isso? — Cristina indagou, zangada. — Você finge a própria morte, causa nosso sequestro e tudo que tem a dizer é “fiquem caladas”?!

Por cima do ombro, ela respondeu:

— É isso aí, loirinha! Agora, vista o casaco e cale a boca, não tenho dormido mais que três horas por noite, desde que soube do sequestro e quero aproveitar a viagem para descansar!

Cristina a fitou, incrédula. No canto oposto, Vanessa fez o mesmo, compartilhando da sua irritação. No entanto, a morena conhecia Diana, ou, pelo menos, achava que conhecia a mulher que ela tinha sido no passado. Apesar do seu desejo de obter as respostas que procurava o mais rapidamente possível, sabia que ela só às daria quando fosse a sua vontade.

Além disso, a ex parecia mesmo necessitar de um descanso e resolveu lhe dar aquela trégua. Porém, quando aquele barco atracasse e estivessem “seguras”, como ela afirmou, lhe arrancaria a verdade por bem ou por mal.

Indignada, Cristina caminhou até Diana e a fez se voltar para si, sendo surpreendida pela pistola apontada para o seu peito.

— Percebo que obedecer não é a sua praia. — Diana a empurrou para trás e Vanessa temeu uma tragédia.

— Vanessa merece saber a verdade. Vou arrancá-la de você e depois vou jogá-la para fora deste barco e das nossas vidas — Cristina respondeu, passando a mão como um gancho em uma manobra para desarmá-la, mas Diana estava atenta aos seus movimentos, deixou a arma cair e a pegou com a outra mão, ainda no ar, um instante antes de Cristina tocar a outra.

— Espero que você seja melhor de cama do que é na ação. — A ladra provocou, balançando a pistola. — São belas palavras e boas intenções, mas não será necessário que se esforce tanto. Vanessa terá a verdade quando estivermos em segurança. E antes que pergunte, “segurança” implica em ter minha adorável companhia por um tempo.

Ela sorriu largo e torto, girando a arma no dedo, como se fosse um cowboy. Então, surpreendeu Cristina, oferecendo-a para ela.

— Pegue.

Cristina olhou com desconfiança para o objeto e tentou imaginar o que ela planejava. Todavia, pegou a arma e não pensou duas vezes para mirar o peito dela. No entanto, Diana não pareceu surpresa. Em vez disso, ela voltou a sorrir e tornou a deitar.

— Não teria me dado se estivesse carregada. — Cristina observou.

— Ah, ela está carregada, sim. — Diana afirmou.

Preocupada com o que poderia acontecer, agora que havia um objeto mortal envolvido, Vanessa se aproximou e pousou a mão sobre a da namorada, forçando-a a baixar a arma.

— Por quê? — Ela deu voz a pergunta que Cristina fazia mentalmente.

A ex remexeu-se sobre as lonas, dando soquinhos nelas para tornar seu repouso mais confortável. Disse:

— Duas razões. A primeira é que preciso mesmo descansar e não dá para confiar 100% nos caras lá em cima. — Mirou o início das escadas que levavam ao convés.

Um vinco se formou na testa de Vanessa, quando ela ergueu uma das sobrancelhas antes de perguntar:

— Por quê?

Um exalar cansado escapou de Diana, e ela retornou o olhar para o casal.

— Apesar do cheirinho de peixe, não acham este barco limpinho demais? — Ela perguntou, então apontou para o entorno. — As lonas são novas, as redes também. Não há uma escamazinha de peixe pelo chão.

O casal passeou os olhos pelo local, concordando. Voltaram a mirá-la.

— Exatamente. São traficantes. — Diana concluiu, respondendo a pergunta que elas não chegaram a formular. — Não me olhem assim! Se tem alguém que sabe como ficar fora do radar, é um traficante. Esta carona vai nos livrar dos capangas de Aquiles, por algum tempo.

Vanessa explodiu, indignada:

— Não consigo acreditar! Primeiro, sequestradores. Agora, traficantes. O que virá depois? Assassinos de aluguel? Ninjas? Espiões?

Diana sorriu, largamente.

— Cara, senti mesmo muita falta disso! — Disse marota, divertindo-se com o rubor que nem a pele morena de Vanessa conseguiu esconder. Sabia, com certeza, que ela devia estar lembrando o beijo que lhe dera minutos antes, no convés. — O que vier depois, não interessa o que seja, é para a sua segurança.

As duas mulheres bufaram e Cristina disparou:

— Segurança! Segurança! Tenho uma novidade pra você, Gasparzinho. Nos sentiríamos mais seguras no meio de um campo minado!

A ladra bocejou, rindo da forma pela qual foi chamada. Por fim, deu de ombros e se voltou para a parede, silenciosa.

— E a segunda razão? — Cristina indagou, à contragosto.

Diana puxou o capuz do casaco sobre rosto, respondendo:

— Não dava para dormir com esse negócio duro e gelado pressionando minhas costelas.

 

***

 

Will afrouxou o nó da gravata, o suor escorria por sua fronte, apesar do ar-condicionado ligado a todo vapor. Com a energia restabelecida, Gillian, Miles e Juan se espremiam com ele na sala minúscula em que os monitores ficavam.

Desde o início da manhã, analisavam as fitas da segurança em busca da forma como Diana tinha entrado e saído da mansão com as duas mulheres, e esse trabalho estava se mostrando tão inútil quanto uma lanterna sem pilhas.

Will esfregou os olhos, desejando estar a quilômetros dali, com o rosto enfiado entre os seios fartos de Paulina e ouvindo seus gemidos. No entanto, o azar tinha tomado as rédeas da sua vida nas últimas vinte e quatro horas e, agora, pela forma como Gillian o fitava, estava a um passo do cadafalso.

— Pare! — Miles ordenou.

Assistiam a fita da câmera de um dos corredores que levavam ao quarto das mulheres. Já tinham visto todas elas, mas nenhuma movimentação estranha lhes chamou a atenção. Aquela câmera estava posicionada de forma a capturar a imagem de toda a extensão do corredor, restando, apenas, um espaço mínimo para a visualização do corredor adjacente, onde não haviam câmeras.

Era para aquele ponto que Miles apontava. Congelada na tela, estava a imagem de um homem que passava por aquele ponto.

— Quem é esse cara? — Perguntou Miles.

Todos se curvaram em direção ao monitor e Juan apertou os olhos, respondendo:

— Ah, esse daí é o Silas. Fumamos um cigarro na garagem, na outra noite. Cara legal. Tem um sotaque engraçado! — Sorriu.

Miles e Gillian se entreolharam, deixando suspiros longos escaparem.

— Que foi? — Juan questionou, notando os olhares coléricos em sua direção.

Gillian respondeu, com os punhos cerrados:

— Não existe nenhum Silas na equipe, imbecil. Aquele era Malena!

 

***

 

As tábuas do píer rangeram quando elas desceram do barco. Outra vez, Diana tinha se tornado a estranha de boné, óculos de grau e voz anasalada. Caminhava devagar à frente do casal que, obedientemente, usava os casacos com capuz, assim como ordenou.

A manhã nublada e um pouco chuvosa tornava aquele visual aceitável e as pessoas ignoraram sua passagem sem lançar mais que um olhar distraído.

Um rapaz baixo e mal-encarado, vestindo um terno fino e caro, as aguardava quando chegaram à terra firme. As duas mulheres, que o julgaram perigoso à distância, se surpreenderam ao vê-lo sorrir com simpatia e apertar, calorosamente, a mão de Diana.

— Não imaginava que você estaria aqui — disse ela, sorrindo também. A voz dela soou levemente arrastada e ofegante.

A ladra tinha mesmo tentado dormir, mas era uma tarefa impossível quando a mulher dos seus sonhos estava a poucos metros de distância, abraçada a outra mulher e com o coração preenchido de ódio por si. No fim, a necessidade de descansar, embora fosse uma realidade, foi apenas uma desculpa para fugir dos questionamentos de Vanessa.

Ainda que demonstrasse tranquilidade e confiança, no fundo, Diana se sentia uma pilha de nervos graças ao último ano de sua vida e a perseguição implacável de Aquiles, mas principalmente, por ter, finalmente, reencontrado o amor de sua vida.

— São apenas três estados até aqui. — O rapaz respondeu e pousou a mão no ombro dela.  — Na verdade, estava fazendo negócios do outro lado do país e retornava para casa quando recebi sua ligação. Como era caminho, resolvi vir vê-la. Os rapazes cuidaram bem de vocês? — Indagou, mirando o barco do qual tinham acabado de sair.

Um dos homens, aos quais se referiu, fumava um cigarro, recostado na amurada do barco e enviou um inclinar de cabeça para o rapaz, antes de se virar para conversar para o olhar o mar. 

— Não foi uma viagem cinco estrelas, mas não temos do que reclamar. Agradeço muito por isso, Tito.

Tito meneou a cabeça, mostrando um breve sorriso e voltou a fitá-la.

— Depois da sua ajuda naquele episódio, não poderíamos deixá-la na mão. — Declarou.

Ele baixou o olhar, aparentemente perdido em lembranças por um instante.

— Eu sei! O que você fez foi por ela, para ajudá-la. — Demonstrou um breve pesar, então voltou a sorrir. — É uma pena que, no fim das contas, depois de tudo que ela fez para largar a organização, a morte a levou sem que pudesse desfrutar dessa liberdade.

Diana engoliu em seco, parecendo, aos olhos de Vanessa, tão consternada quanto Tito, o que fez a professora se perguntar sobre quem falavam.

— A vida cobra seu preço. — A ladra respondeu, simplesmente. Então, afastou a vista para longe.

Três anos antes, tinha se envolvido em uma disputa pelo poder de uma das maiores organizações criminosas do país. Foi contratada para roubar documentos sigilosos, mas teria feito o serviço de graça, já que era para provar a inocência de uma amiga, a única que teve naqueles onze anos de crime. O resultado daquela disputa fora um banho de sangue e Marcos Alvarenga, o homem que fundou aquela organização, conseguiu se manter no poder.

— Marcos lamenta não poder fazer mais do que lhe oferecer um transporte seguro. Aquiles é muito influente e mantém relações com muitos de nossos associados. Você entende que, depois do que houve, ele está evitando conflitos. — Tito explicou, deixando claro que concordava com a atitude do chefe.

— Não se preocupe com isso. — Diana garantiu. Tudo o que menos desejava era se meter nos negócios de Marcos Alvarenga, outra vez.

Tito permaneceu em silêncio por um instante, então deu de ombros, como se tomasse uma decisão.

— Escuta, Diana…

Ele era uma das poucas pessoas que conhecia seu verdadeiro nome e, isso, apenas porque o ouviu da boca da sua falecida amiga, na noite em que se viram pela última vez. 

— Não sei o que você fez, mas a sua cabeça vale uma fortuna. Tem muita gente à sua procura. — Ele tirou uma fotografia do bolso e lhe mostrou. — Isto anda circulando por aí. Se antes ninguém sabia qual a real aparência da Caçadora, agora vai ficar difícil de se esconder.

Diana pegou a fotografia e viu-se sentada à mesa de um restaurante a beira mar. Usava óculos de sol e sorria para a mulher ao seu lado, cujo rosto, diferente da fotografia que Vanessa atirou aos seus pés, estava nítido e exibia um sorriso tão claro quanto o dela.

Curiosas, Vanessa e Cristina esticaram os pescoços sobre o ombro dela para olharem a foto e, outra vez, a morena sentiu o bichinho do ciúme revolvendo suas entranhas. Contudo, afastou o sentimento depressa. A mulher de quem tinha ciúmes era a Diana que conheceu na adolescência, a garota que namorou por sete anos, e não aquela estranha criminosa. Além disso, havia Cristina. Se tinha de sentir ciúmes de alguém, era dela.

Tito recuperou a foto, dizendo:

— Espero que não se importe, mas quero guardar esta foto. Ela parece feliz aqui. Diferente do que normalmente se mostrava. — Deslizou o dedo sobre a face da loira que acompanhava Diana naquela recordação. — Era uma boa mulher, à sua maneira. Só estava sobrevivendo com as armas que a vida lhe deu.

Diana concordou com um inclinar de cabeça, incomodada com aquela demonstração de sentimentalismo e começou a suspeitar que ele guardava um amor platônico por sua falecida chefe.

— Carla era mesmo especial, sempre será. — Ela afirmou.

O rapaz riu, concordando, e guardou o retrato no bolso do paletó.

— Me desculpe por isso, mas revê-la me fez recordá-la. — Confessou. — Principalmente, porque você estava lá na última vez em que nos vimos.

Após passear o olhar pelos barcos atracados, Tito acalmou as expressões e retornou à seriedade. Então, retirou um chaveiro do bolso e entregou para Diana, dizendo:

— Este é o outro motivo de ter vindo até aqui. O carro que esta chave liga, está estacionado no centro da cidade. Nele você encontrará roupas, dinheiro, algum armamento e um cartão no porta-luvas. O cartão contém a data e hora em que um determinado contêiner será embarcado para a Guatemala. Esteja lá nesse horário e ganhará uma carona segura para fora do país e longe das vistas de Aquiles.

— Isso é bem mais do que eu pedi — ela disse.

O mafioso enfiou as mãos nos bolsos e começou a se afastar com um meneio de cabeça. Respondeu:

— Você pediu uma passagem segura para este fim de mundo e estou, em nome dos velhos tempos, se é que posso chamar assim, lhe dando uma alternativa. Faça um favor a si mesma, embarque naquele navio e desapareça. Não me entenda mal, mas espero não ouvir falar de você outra vez. Boa sorte!

 



Notas:



O que achou deste história?

Uma resposta para 7. Tito

  1. Tattah,

    A cada cap. q leio me dou cta de qta saudade eu tava desta história.
    A cada linha alimento a memória.
    Bom D++++

    bjs,

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