Dentre todas as coisas que já havia visto e vivido, aquela ganhava de longe como uma das mais estranhas, era uma pista de pouso e decolagem, uma clareira no meio da floresta densa, perguntei mais de dez vezes ao comandante se era seguro decolar e a reposta era sempre um robótico “sim”. Elliot nesse momento não falava mais nada, aquilo me assustou, normalmente ele é o que estaria mais desesperado, berrando aos quatro ventos que não poderia morrer sem conhecer o amor da sua vida antes, mas não, ele estava apenas olhando pela janela, refletindo alguma coisa.
– O que você tem? Pensei que nesse momento estaria mais escandaloso que uma cigarra.
– Sabe, Geovana, eu cansei de espernear, gritar, fazer birra, sempre me coloca nessas situações e estou aqui agora, quieto, apenas rezando e fazendo promessas.
– Para se sobreviver?
– Claramente que não, para caso eu morra ser sua alma penada até o fim dos tempos. – Suspirei aliviada, apesar de estar quieto ele ainda deseja ser minha alma penada. Segurei sua mão.
– Sem você tudo isso não teria a menor graça, obrigada!
– Amor, sua vida não teria menor graça, me dê o valor correto e só me agradeça quando minha linda bunda hidratada estiver sentada no melhor restaurante em Paris.
– Pagarei a conta.
– Menos que a sua obrigação.
– J 437, pronto para a decolagem.
– Esse aviãozinho vai mesmo conseguir sair desse lugar?
– Não sei, mas é hora de nos apegarmos a todos os santos possíveis para que isso seja possível. – E o coração estava disparado, de tão rápido nem deixaria perceber a pulsação, estávamos perto demais das árvores quando começamos a pegar altura.
– Minha amada Santa Cher, prometo nunca mais cometer o pecado da gula hombre.
– Gula hombre?
– É, querer comer homem demais. – Revirei os olhos, como uma pessoa é capaz de falar tanta sandice num único capítulo?
Foram mais de três horas de viagem, eu tentava ler os mapas de entradas para o submundo Inca, cada uma, mais difícil acesso que a outra, teríamos que pousar numa “hacienda” fantasma em Lima e de lá seguir com algum guia turístico até a cidade perdida. Teríamos menos de uma noite de descanso, passava das onze quando nos registramos num pequeno hotel na capital do Peru.
Dormir era algo que eu havia deixado de fazer há anos, apenas sono leve e alerta para qualquer barulho. Durante meus sete anos de trabalho em campo arranjei alguns inimigos nada simpáticos, por vezes era surpreendida com atiradores de elite, assassinos de aluguel e até mesmo emboscadas, já estava mais que calejada para saber que um sono profundo é sinal de morte eminente.
O hotel por si também não me ajudava a relaxar, a cama dura e mosquitos a todo momento zumbindo em meus ouvidos, desisti de rolar e levantei indo até o banheiro, a água era fria e me ajudaria a acordar um pouco mais, passava das duas da manhã e Elliot dormia sereno com sua máscara esverdeada, como uma pessoa consegue se preocupar com beleza num fim de mundo desse?
Ao longe observei alguns faróis de carro subindo a trilha de Machu Picchu, eles haviam chegado e sem parada para descanso, pedi mentalmente para que eles não tivessem nenhum rastro de pistas para alcançar algumas da entrada antes de nós.
– Elli, está na hora de partir, acorda. – Um resmungo, suspiro e nada. – Elli, precisamos partir agora. – Mais resmungos. – Elli, não queria te persuadir a ir, mas se você olhar nosso guia aqui pela janela nunca mais vai querer voltar para cama.
– Onde? – Ele me olhou com uma cara zangada. – Você me enganou, não dá pra ver nada pela janela, está tudo escuro, assim confirmo que ainda seja hora de dormir.
– São quatro e meia da manhã, há umas duas horas atrás vi alguns carros subindo a trilha.
– Você deveria estar dormindo nesse horário.
– Eu não consegui, mas achei o melhor caminho para nos levar à Trilha do Imperador Inca, ela deve estar entre o marco alto e estreitos ao noroeste.
– O nome disso é falta de sexo. – Jogou uma toalha no ombro. – Vou tomar banho primeiro.
– Eu já tomei o meu, apenas não demore muito.
– Sim, Lady Croft. – Soltei um longo suspiro. – Estou morrendo de fome, sabe se quando sairmos vai ter algo para comer?
– Muito provável que não, mas o guia disse que irá providenciar café e barras de cereal.
– Então realmente é um guia e não uma guia?
– Creio que sim, a menos que se for mulher tomou uma grande quantidade de testosterona.
– E realmente não poderia arranjar algo mais substancial que barras de cereal?
– Bem, eu não perguntei, mas caso houvesse ele iria optar por isso.
– Depende, se for mais um dos homens misteriosos que aparecem como num conto de fadas, acredito que ele só coma barras de cereal e malhe o dia todo, do contrário é apenas mais um louco. – Saiu enrolado na toalha. – Onde foi que eu deixei mesmo essa porcaria?
– O que foi? Esqueceu a calcinha fio dental?
– Elas ficam ótimas no meu corpo, mas não encontro meu hidratante com protetor solar, imagina queimar essa linda pele de seda.
– Você existe mesmo?
– Claro, sou reencarnação de algum Deus Grego. – Começou a se vestir após cansar de buscar pelo hidratante. – Sabe uma coisa que gostaria de saber?
– Vou me arrepender de perguntar?
– Muito provavelmente, só que eu preciso externar essa dúvida. – Levantou abotoando a blusa e dando uma olhada pela janela. – Será que o nome do país faz jus aos homens.
– E L L I O T. Isso soa quase que nojento.
– O que foi, amor? Não se perguntou isso também?
– Claro que não, estou mais preocupada com o que está por vir.
– Sim, sim, trabalho sempre em primeiro lugar, não consegue pensar em sexo em nenhum momento? Nenhum homem te deixou com aquele gostinho de “quero mais”?
– Você, melhor que ninguém, sabe de todo meu complexo mundo sexual e sabe também que prefiro pensar no meu trabalho do que nisso.
– Por isso toda essa amargura com meu pobre corpinho. – Colocou um chapéu no estilo Indiana Jones. – Prontíssimo, vamos minha cara Lady Croft, um belo tesouro nos espera para salvá-lo.
– Você não é normal. – Coloquei a mochila nas costas e uma alça da bolsa no ombro. – Deveria pelo menos ser um pouco mais gentil.
– Querida, estou levando mala por nós dois.
– Com suas coisas apenas.
– Precisamos equilibrar, não é mesmo? Você é o macho alfa dessa expedição e nós dois estamos de acordo com isso. – Descemos dois lances de escadas até o furgão que nos aguardava.
– Senhorita Smith, sou o Tenente Rodriguès, vou levá-los até onde desejam ir. – Pegou as bolsas que estava carregando.
– Tenente, perdoe o que vou lhe perguntar, mas eu pensei que fosse um guia a nos levar.
– Senhorita, ninguém conhece essas trilhas melhor que eu, nasci em Cusco e minhas aventuras de fim de semana era subir a montanha e explorar todas as entradas e saídas.
– Quando eu era criança gostava de brincar de Barbie. – Elliot não pôde se segurar.
– Bem, eu deixei essa diversão para minhas irmãs. – Ele respondeu com um sorriso amigável e passei a observar um e outro por apenas três segundos.
– Tenente, pela madrugada vi alguns carros seguindo a trilha principal para a Cidade Perdida.
– Fui informado que um grupo de homens conseguiu uma autorização para uma pequena expedição, mas não se preocupe, iremos pela trilha secundária que nos levará ao lado oposto, apenas teremos que fazer um longo caminho a pé, mas não deve ser novidade para vocês.
– Não é mesmo, às vezes a Gio me faz andar tanto que meus pés criam cascos, quase como cavalo.
– Deveria criar uma boa carcaça pra que eu pudesse montar em você, se bem que levaríamos o dobro do tempo, lento do jeito que é.
– Ingrata.
– Reclamão.
– Vocês parecem se dar muito bem, minhas irmãs têm algumas implicâncias comigo até hoje, mesmo sendo alta patente no exército.
– Dentro de casa você deve ser apenas o irmão, mas Elliot é apenas um criado, como Sancho Pança.
– Bem que você gostaria de uma pança como a minha, não é mesmo? – Revirei os olhos e me pus a observar o caminho e checar no mapa.
– Senhorita Smith, desse ponto precisamos ir a pé, vamos por um caminho que não é utilizado há centenas de anos.
– Não é perigoso?
– Sim, é perigoso, mas com atenção devida, conseguiremos sem maiores imprevistos. – Antes de sair do carro tomei um bom copo plástico de café e comi duas barrinhas de cereal. – Além de serem energéticas não nos deixa lentos e pesados.
– Viu, Gio, eu falei que era melhor mesmo barrinhas de cereal e você querendo pão e coisas pesadas.
– Eu, Elli? Pff. – Coloquei minha mochila nas costas, deixei toda roupa que havia levado dentro do furgão e levava apenas ferramentas e os mapas, Elli carregava apenas um caderno para anotação junto de uma bolsa com água e mais barras de cereal, enquanto o tenente Rodriguès levava as armas e mais alimentos e água.
– Bem, vamos agora, está começando a amanhecer e num bom ritmo, sem muitas paradas, conseguiremos chegar antes das dez da manhã. Devo adverti-los, há várias lendas sobre o povo “Quechua”, dizem que muitos após sua morte vagam hoje por essas terras tentando proteger sua cidade.
– Ok, homens armados e fantasmas, realmente é tudo que precisamos para uma boa história. – Disse Elliot atrás de mim, dando lentas passadas sobre as pedras que não se acabavam.
– Tomem cuidado, vamos começar o trecho mais íngreme da caminhada, daqui por diante olhos fixos no chão e apenas sigam meus passos. – E assim foi por horas, perto das nove já estávamos relativamente adiantados e ao leste era possível começar a visualizar parte da cidade. – Vamos parar um pouco aqui, se hidratem, irei observar o caminho mais adiante e logo volto. Não usem binóculos, as lentes podem chamar atenção.
(Trilha usada para chegar à Cidade Perdida. É o risquinho preto bem no meio da montanha, essa trilha é real, porém não mais utilizada.)