ANTES QUE ELA VÁ EMBORA

CAPÍTULO 8. Sapatilha 37

ERIS

Pode o ano passar e até nevar

Pode chover, relampejar

Da sapatilha número 37 eu vou lembrar

Vou lembrar de sapatilha, porra nenhuma.

Um forró pé de serra antigo toca ao fundo no karaokê do Quimera.

Misha rodopiou mais uma vez no salão nos braços de Haru. Já é a terceira música que as duas estão dançando. Qual o problema nisso? Nenhum problema com isso. Misha tem a cintura solta assim como o seu sorriso. Tem os pés leves como o toque de suas mãos. E Haru é uma das melhores dançarinas que eu conheço. Como eu sei disso? Ela aprendeu a dançar comigo.

Ela puxou Misha para mais perto, pressionando ambos os corpos para que assim consiga falar bem rente ao seu ouvido. De novo, como eu sei disso? Porque ela também aprendeu isso comigo.

Uma sensação de déjà vu me consome. Não é a primeira cena da noite que me proporciona memórias nostálgicas. Tudo no dia de hoje é uma eterna nostalgia. Todas nós no Quimera, Haru tendo companhia no salão para dançar e Adria para os papos cabeça. Que noite fodida.

Como se não bastasse todas as lembranças péssimas que tenho com o dia de hoje, eu também carrego minhas melhores lembranças amarradas nessa época do ano. O universo sempre te presenteia com uma forma diferente de ferrar sua vida, confie em mim, porque esse ano ele caprichou comigo.

A garrafa de água na minha mão ficou toda amassada, expulsando o restante do líquido dentro dela.

— Solta a garrafinha, solta — Adria falou suavemente enquanto tragava seu tabaco — ela não te fez nada — completou.

Saio do meu transe e volto para a realidade, a varanda do Quimera. Daqui conseguimos ter uma visão privilegiada, incluindo os banheiros, o bar e a porra do salão onde as duas estão…

É completamente impossível ignorar o fato de que era em mim que ela estava naquele dia, no jardim dos fundos. É impossível.

— Ficar assim não vai adiantar nada.

Olho para Adria confusa. Ela sabe sobre a Misha? Não, ela não sabe.

— É ela, não é? — mas agora percebo que ela não está falando sobre o par de Haru no salão do Quimera.

Não é apenas isso, Adria, mas é isso também. Fiquei em silêncio.

Você falou com ela?

Continuei em silêncio.

— Sabe que não vai poder fugir a vida inteira, não sabe? — ela insiste em seu monólogo.

Você quer mesmo falar sobre isso comigo, Adria? — troco meu olhar da garrafinha de plástico destroçada sob a mesa para a reta de seu olhar.

Falando assim, nem parece que Adria foi a mulher que fugiu da cidade porque não conseguiu lidar com a paixão pela Barbie, deixando toda a vida para trás, um ótimo emprego e a gente, literalmente, a única família que ela tem.

— Só estou dizendo que fugir não adianta nada. Nós duas sabemos disso — e como sabemos.

— Cuida da sua Barbie que eu já tenho problema demais para cuidar essa noite — volto o meu olhar para a pista mas as duas sumiram.

Como eu disse, problemas demais, olha o problema.

— Fale com ela — ela pôs a mão sob a minha — feche a porta de vocês. Ciclos novos só conseguem ser iniciados quando os antigos são fechados — bebeu um gole na garrafa de água com gás.

Mais alguém não vai beber essa noite. A gente sempre se fode para carregar as bebuns para casa.

A Adria é a minha razão, sensata demais, o problema é que ela pensa demais. Ela sempre me ajuda, mesmo quando nem se dá conta disso. É o jeito dela. E acho que foi por isso que nos demos tão bem quando cheguei aqui há alguns anos.

— Preciso ir ao banheiro — minto, penso na resposta mais rápida que consigo.

Passado. Natal. Misha. Eu preciso respirar. Já disse que odeio o Natal?

Mas assim que encosto na porta de madeira para fechar o banheiro, encontro Misha lavando as mãos na pia.

— O que você pensa que está fazendo? — ela pergunta me olhando através do grande espelho.

— O que você pensa que está fazendo? O que foi aquilo lá fora?

— Aproveitando o meu convite para me divertir na noite de Natal?

— Você sabe muito bem do que eu estou falando, Misha.

— Não, eu não sei. Você quer me explicar?

Ela vira de costas para o espelho e eu paro de andar em sua frente. Apoio meu celular na pia do banheiro e a encaro.

— Você estava flertando com a minha melhor amiga — me aproximo mais — e aceitando o flerte dela.

— Algum problema nisso?

— Como se — subo até a altura de seu queixo e percorro até seu ouvido — você — amparo minha mão direita sob a pia e ela segura minha blusa pela lateral, como se precisasse de equilíbrio — não tivesse me beijado na fazenda mais cedo — termino a minha fala.

Ela engole a seco e percebo que a sua respiração está levemente alterada.

E não é apenas a dela.

— Aquele beijo não significou nada — responde de uma vez só, como se estivesse prendendo sua respiração.

Desço as minhas duas mãos sob a lateral de seu corpo e aperto-a até me encaixar na base de sua bunda, erguendo-a do chão e colocando-a sentada na pia, a minha frente. Ela rapidamente abre as pernas e consigo me acomodar entre elas. Suas mãos continuam na lateral do meu corpo puxando minha camisa de forma mais forte.

Encurto ainda mais a nossa distância.

— Diga, olhando dentro dos meus olhos, que não significou nada — sussurro, sem tirar os olhos dos dela.

Mas eu tenho a sensação que existe algo não dito dentro do seu olhar.

— Está com ciúmes, Eris? — solto uma risada seca.

— Não fuja do assunto, assim como fugiu daqui sábado passado.

— Eu não fugi.

— Fui atrás de você, Misha.

— Você foi atrás de mim?

— Você sumiu.

— E a menina?

— Que menina?

— A menina de cabelo vermelho que você…

— Que eu… — menina de cabelo vermelho, inferno?

— Estava — engole a seco — beijando.

Ela está nervosa.

Ela está fodidamente nervosa.

Pera, o quê?

— Mas eu não beijei ninguém — foi então que eu fui transportada para aquele dia, nesse mesmo bar, com a mesma companhia.

É claro que ela viu e entendeu tudo errado. Como eu não pensei nisso antes?

Puxo meu celular e vasculho minha galeria de fotos enquanto Misha se explica dizendo que ela não tem que me perguntar nada sobre minha vida pessoal, que sou livre para fazer o que bem entender da minha vida, mas que eu poderia ter sido mais discreta.

Aqui eu vejo a guarda sendo abaixada.

Aqui eu vejo o álcool falando mais alto.

Misha já está no quarto drink com a Catarina e pela minha memória elas estão pedindo os exclusivos da casa, todos fodidamente fortes.

— […] e eu sei, sabe. Você poderia ter me dito que namorava ou sei lá, aquela ruiva…

Estendo o celular na reta de seus olhos.

— Essa era a guria que estava me beijando? — mostro uma foto minha, de Adria e Haru, naquela mesma mesa onde estamos sentadas.

A foto é de um típico churrasco de domingo com as gurias do bar. Nossa tradição semanal.

— Eu não acredito que você está esfregando isso na minha… Calma aí, a de cabelo vermelho é — ela franze os olhos, deixando-os pequenininhos no intuito de enxergar a foto melhor. Será que ela usa óculos?

É a Haru, com o os fios do cabelo tingidos de vermelho, um vermelho escuro até bem desbotado. A última cor que esteve em seus fios antes do loiro totalmente descolorido de agora.

Assim que Misha foi ao banheiro naquele dia, Catarina me ligou perguntando onde eu estava, porque ela e Haru estavam chegando, naquele momento eu soube que minha paz tinha ido para a casa do caralho.

Enquanto Adria estava viajando nós ficamos de babá da Catarina que estava insuportável por conta da formatura e pela viagem de Adria. Naquela época a loirinha não fazia ideia do plano da nossa amiga em pedi-la em namoro. Até agora eu não faço ideia de como aceitei entrar nessa missão maluca.

E, claro, assim que Haru chegou hoje ao Quimera, ela me cumprimentou do jeito que sempre nos cumprimenta, puxando minha nuca e me dando um selinho. O famoso jeitinho Haru de ser.

— Com um beijo… — balanço a cabeça em afirmação — assim como ela fez mais cedo, por isso vocês a chamam de beijoqueira — Haru tem essa mania idiota, desde sempre foi assim, sempre— então… — engole a seco — não era…

— A minha namorada? Uma completa desconhecida? Não, Misha, era só a minha melhor amiga. A mesma que estava dançando forró e flertando contigo a noite inteira — encaro sua fisionomia totalmente incrédula pela constatação que teve — por isso você foi embora do bar sem falar comigo?

— Eu não sabia o que fazer.

— Fiquei me sentindo uma idiota.

— Me perdoe. Mas em minha defesa, você foi super grossa comigo na formatura da Catarina.

— Você queria que eu fizesse o que? Pensei que eu nunca mais fosse te encontrar. E eu tentei conversar com você ontem, mas

— Mas eu sou a filha do futuro marido da sua irmã.

— Sim, você é.

— E nós seremos da mesma família agora.

— Sim, nós seremos.

— E..

— E você quer me beijar de novo — olho em seus olhos, depois sua boca, depois em seus olhos de novo.

Inegavelmente linda.

Inegavelmente com vontade de me beijar de novo.

— Eris, o que aconteceu mais cedo na fazenda — engole a seco — não pode… — pressiono nossos corpos contra a pia — foi errado.

— Até que para uma nerd — espalmo minha mão em sua coxa — você gosta bastante de fazer coisas erradas.

— Eu não sou nerd.

— Então você gosta de fazer coisas erradas? — arqueio um sobrancelha e ela suspira. Ela está nervosa. E por algum motivo é gostoso saber disso.

— Pare de fazer isso — me repreende.

— Fazer isso, o que?

— Me bagunçar, Eris, me bagunçar.

Aproximo meu rosto do seu e falo bem baixinho na reta do seu ouvido, ainda segurando sua coxa e sentido seu cheiro forte de perfume e o leve aroma do último drink que bebeu.

— Ainda não te baguncei — deslizo, sutilmente, minha mão para dentro de sua coxa — fadinha carioca.

Nossos olhos ainda estão conectados, nossas respirações descompassadas em sintonia mas me afastei dela. Assim que dei um passo para trás, ela segurou meu pulso, olhando minha garrafa de água quase vazia.

— Por que não está bebendo?

— Porque eu sou a motorista de hoje.

— Não precisa disso, não vou voltar com você.

— Isso é o que veremos, fadinha.

*

Depois de beberem metade da carta de drinks, Catarina puxou Misha pelas mãos e as duas subiram no palco do Quimera. É claro que isso ia acontecer. A Catarina não perde uma oportunidade de cantar nesse karaokê, aposto que já cantou todas as canções dele.

As duas cochicham.

— Ela dança super bem — Haru disse, empurrando mais uma dose de whisky — muito, muito bem — que bom que achou, Haru, guarde essa opinião para você.

— Minha garota dança muito bem também. E canta, olha, como ela é linda — Adria baba na direção da loira que joga um selinho para ela.

Fico feliz em ver que as duas finalmente estão bem e juntas. Pensamentos felizes, pensamentos felizes, pensamentos feliz. Mas Haru resolve me atentar mais o juízo, claro que resolve.

Por que estou dando tanta importância para isso?

— Deliciosamente macia também — macia vai ser a minha mão na sua cara se você não parar com isso, inferno.

Não é como se fosse a primeira vez que Haru comenta das garotas que está afim. Adria e eu não ligamos mais para isso. É sempre assim. As paixonites da Haru nunca sobrevivem mais que uma madrugada. Haru sempre está com alguém e parece que as gurias tem data de validade, ela nunca fica mais que uma vez com a mesma mulher. Não é como se nós duas não soubéssemos o porquê disso.

Todas nós três temos nossas merdas, mas Haru escolhe lidar da pior forma possível com as dela.

— Não aprende nunca né, Haru — Adria estala a língua, imitando o estalar dela — garotas não são objetos, sabia?

— Sabia — Haru me fuzila com os olhos — mas a Misha… tem algo diferente. Acho que é porque ela é do Rio.

— Nunca gostou do Rio de Janeiro, Haru — Adria solta — sempre detestou a vibe carioca.

E só eu sei. Era um porre com isso quando você morava em São Paulo — solto a fumaça no ar, batendo o cigarro no cinzeiro.

— Isso é bem verdade — meneia o olhar para nossa amiga — mas acho que estou começando a mudar de opinião a respeito disso — ela me encara mais uma vez.

Filha. De. Uma. Puta.

— Se ela estiver disposta a… — mas não permito que termine a frase.

Nem fodendo que a Misha vai para casa com a Haru.

— A Misha volta comigo para a fazenda — mas nenhuma das duas esperava essa resposta.

Sabe como eu sei disso?

— Quer contar alguma coisa pra gente, Eris? — Haru me encara como quem espera que eu fale com todas as letras algo que eu não quero falar.

Encaro a mulher de pele dourada e cachos que rodopia no palco com a Catarina e me permito soltar todo o ar preso em meus pulmões. Não quero mais esconder o que está acontecendo. Então eu resolvo lidar com as consequências do que vem me consumindo a semana inteira.

— Paloma está no Brasil — Adria respirou fundo e Haru engoliu o whisky a seco — e ela me ligou.



Notas:

Olá, mais um capítulo para vocês!

Já conferiram a nossa playlist com todas as músicas do livro?

Até a próxima.

Beijão, Mabel




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