MISHA
— Misha, é a sua vez — Nara disse, me entregando uma sacola de papel de uma loja que eu não conheço. Estamos na clássica troca de presentes natalinos, mas eu não comprei presente algum.
Leio o adesivo que está colado na parte de cima.
De: Misha
Para: Eris
Minha mente não estava aqui quando ela chamou meu nome. Estava exatamente em sua cozinha, com a irmã dela me pressionando contra a ilha e eu totalmente… volte para a terra, Misha.
Encaro o pedacinho de papel com nossos nomes. É claro que eles fizeram isso.
Sabe quando seus pais compram presentes para que você entregue aos seus primos nas datas comemorativas? Estou me sentindo exatamente assim.
É a cara da Nara fazer isso, mas eu não lembrava que era a cara do meu pai fazer isso.
Estiquei a bolsa de papel na direção de Eris, que estava sentada no sofá, com um copo de Coca-Cola na mão.
Eris está com uma blusa branca de alfaiataria, calça jeans de lavagem bem clara e um tênis de grife nos pés, combinando com a cor da blusa. O look em si cheira a dinheiro, mas ela me olha com poder. Esse poder me toma dos pés à cabeça. O ar de aristocrata não vem das roupas caras, do perfume ou dos anéis de prata que usa, ele vem de dentro e é algo apenas dela.
Ela tem algo que é apenas dela.
Ajustou a postura e, sem levantar de seu lugar, estendeu o braço para receber o presente. Nesse momento percebo a correntinha que ela está usando no pescoço, eu só consegui percebê-la por conta do ângulo que estamos. Será que é parecida com a minha?
— Eris, largue de ser preguiçosa e levante para receber seu presente — Nara disse, levantando sua taça de vinho — vamos ver se a Misha acertou na escolha.
Acatou o pedido da irmã, levantou e começou a abrir a bolsa. Um kit profissional de pincéis e dois LPs, sendo um da Maria Bethânia e um do Belchior, foram revelados nas mãos dela.
Eris se surpreendeu com o presente, acho que ela não estava esperando. Eu também não estava esperando.
— Eu comprei isso — reconheci na mesma hora os discos. Fui à loja com a Nara, mas não fazia ideia que seria para Eris, eu nem a conhecia — você gosta de LPs? — estou confusa.
Lembro direitinho do dia que os comprei. Eu tinha acabado de conhecer a noiva do meu pai e passamos a tarde juntas no centro envolvidas com as compras natalinas e conversando sobre a vida. Ela me pediu opinião sobre alguns discos e eu falei o que curtia ouvir. Perdi a conta de quantas lojas visitamos, tomamos um café gostoso numa padaria na praça da cidade e foi lá que Nara me convidou para sair com as amigas dela. Depois disso… bem, a gente já sabe como terminou aquela noite.
— Tenho uma coleção deles — ela olha para os discos como uma criança olha para um brinquedo novo.
Ela tem uma coleção de discos de vinil.
Eu amo discos de vinil.
Esquece os discos de vinil, Misha.
— Obrigada pelo presente — ela me olhou — obrigada pelo kit — olhou para o meu pai.
Será que ela pinta? Quadros? Desenhos?
Eles se entreolharam, meu pai sinalizou com a cabeça em tom de afirmação e Eris abriu um meio sorriso sem jeito. Gosto da forma como eles dois se comunicam. Eles parecem possuir um relacionamento bem legal. Se é que podemos considerar que ela tem a capacidade de nutrir algum relacionamento legal com algum ser humano.
Nara nos faz tirar uma foto juntas e logo entrega uma bolsa para que Eris entregue os dela. Primeiro foi o do meu pai, depois o dela e por fim…
— Este é o seu — ela me entrega uma caixa.
Sento-me no sofá com a caixa em meu colo. Puxo a fita, retiro a tampa de madeira e encontro o primeiro deles, uma blusa da seleção brasileira de futebol feminino; o segundo, um par de chinelos havaianas e, por fim, um livro de poemas de Matilde Campilho.
— Matilde Campilho? — constato com surpresa ao pegar o exemplar de Jóquei nas mãos.
— Então era para você — disse surpresa, olhando para mim e depois para o meu pai — seu pai me pediu para que eu comprasse algo que…
— Lembrasse de sua terrinha — meu pai diz, orgulhoso — e uma indicação literária.
Assim que meu pai disse, Eris franziu o cenho.
— Eu não sabia qual livro comprar, então escolhi uma escritora que eu curto — mas ela fala tão baixinho que tenho certeza que só eu consegui escutar.
— Foi uma boa escolha — ela não me encara mais — obrigada.
*
— Ainda não podemos comer? — perguntou Adria.
— Ainda não é meia-noite, amor — Catarina disse a Adria, que bufou em seu ombro.
— Mas a Haru já roubou três rabanadas e vocês não falaram nada.
— Haru fica insuportável com fome, não estou a fim de estragar minha noite com a fiona.
— Fiona, é? — soltei uma risada, bebendo um gole do vinho e olhando para Haru que fumava perto da rede.
Haru piscou de forma engraçadinha para mim enquanto soltava a fumaça no ar.
Estamos nós quatro conversando na varanda enquanto esperamos a meia-noite para finalmente jantarmos todas as delícias que estão sob a mesa. Girei meu rosto, sutilmente, para ambos os lados, mas não consegui encontrar Eris em nenhum canto. Ela sumiu depois da troca de presentes. Não que eu esteja preocupada nem nada, mas meus olhos sempre acabam procurando por ela.
Apenas os meus olhos mesmo.
Ela tem mesmo uma coleção de LPs, é sério isso?
— O que você vai fazer depois da ceia? — Catarina perguntou na minha direção, abrindo um sorriso tão largo que me assustou.
O mesmo sorriso que me deu ontem. Já disse que esses sorrisos me assustam?
— Dormir? — geralmente é isso o que acontece depois de comermos as delícias de natal, certo?
— Claro que não — disse Catarina — já me deu um S ontem. Hoje você não me escapa. Você vem com a gente.
— Quimera, baby — disse Haru.
— O que é isso? — perguntei.
— É um bar — uma voz rouca porém firme ecoou atrás de mim — na cidade.
A dona da voz apareceu sentada no sofá atrás da gente e mais uma vez ela surgiu e eu não vi. Virei meu corpo nos meus calcanhares e ela me abriu um sorriso assim que me viu. Sabe aquele sorriso que não mostra os dentes? Então, esse mesmo, além de piscar um de seus olhos.
— Rola uma festa de natal lá, é bem divertida — Adria disse, abraçando a namorada e tomando mais um gole de sua caipirinha — sempre vamos depois da ceia, é a nossa tradição natalina.
Tradição natalina?
— Ou você vira a gata borralheira depois da meia-noite? — Haru me fuzilou com os olhos e soltou um sorriso largo, mas logo encarou a amiga que estava atrás de mim.
— Não tenho sapatinhos de cristal então não, não viro a gata borralheira.
— Deveria usar — Eris disse, dando um gole no copo de Coca-Cola — baixinha demais.
— Eu tenho 1,60 m. Não sou baixinha.
Minha vontade era gritar dizendo que minha altura parecia não incomodá-la enquanto ela me beijava. Nas duas vezes. Duas fucking vezes. Ela me encarava silenciosamente.
“Seja menos afobada da próxima vez para que você não perca a melhor parte.
O que?
O vinho, fadinha carioca, vinho com sabor de cortiça é horrível.”
— Eu vou com vocês — afastei as lembranças do que me disse na cozinha depois do nosso beijo enquanto a encarava — Haru — virei meu corpo na direção da Haru e puxei o cigarro de sua mão, tragando-o. Ela me fez um sinal sutil em tom de afirmação — posso ir com você?
— Será um prazer — Haru pegou minha taça e mais uma vez olhou para a amiga que estava atrás de mim — que a magia do natal aconteça — bebeu meu vinho e piscou um dos olhos enquanto mordeu um sorriso.
Haru exalava a energia de quem não vale nada. Nadinha. Nem um Guaravita quente em dia ensolarado. Mas também exalava uma energia como a minha: ela não é daqui.
E isso só me deixava mais intrigada.
Nós estamos em uma cidadezinha remota no interior do estado, mas algo me dizia que elas não são daqui. Nenhuma das quatro. Elas também são forasteiras assim como eu.
— Que a Deusa abençoe o rolê — Adria disse.
— Ficaremos muito loucas, isso vai ser muito divertido — Catarina sorriu de forma animada e um pouco diabólica, tipo as vilãs dos desenhos animados. Como eu disse, tenho medo desses sorrisos da Catarina.
Mas Eris não disse mais nada.
*
— FELIZ NATAL — todos gritaram no salão.
— Estou feliz que você esteja aqui — meu pai me disse enquanto me abraçava. Ainda é muito surreal a ideia de estar aqui com ele, depois de todos esses anos afastados. Estou feliz com nosso progresso e todas as memórias que estou criando antes de deixar o país.
Fico feliz em saber que ele está bem e está com uma companheira tão incrível como Nara.
— Também estou feliz, pai. Obrigada pelos presentes e por tudo que você tem feito.
— Nada do que eu fizer estará aos pés do que você merece, ligeirinha.
Ligeirinha, era como ele me chamava quando ainda era casado com a minha mãe, quando ainda éramos uma família.
— Ficará bem aqui com a Eris? — ainda tem isso.
— Sim, seu Zeca — que Gal Costa queira que sim.
Ficamos mais um tempo abraçados e depois eu cumprimentei o restante dos convidados.
Eris está rodeada pelas amigas mas não me sinto à vontade para ir até ela e lhe desejar feliz natal. Tudo em relação a ela é tão… confuso. Tem horas que me sinto tão à vontade e horas… que me sinto um completo extra terrestre, exatamente como estou me sentindo agora.
Mais algum tempo se passa, Catarina me chama, nos despedimos do pessoal e seguimos para o jardim onde estão os carros. Ao que parece eu vou mesmo para esse tal bar chamado Quimera. Estranho porque eu tenho a sensação que já escutei isso em algum lugar.
Haru abre a porta do Jeep preto para mim, mas ela rapidamente tem sua atenção chamada com uma vibração em seu celular.
— Preciso de cinco minutos — disse, levando o celular ao ouvido.
Meneio com os olhos o percurso que Haru faz, mas não entro em seu carro. Por que eu gostaria que alguém impedisse que eu fosse com ela? Por que o fato de Eris não ter se incomodado com isso está me incomodando? Não, não está não, Misha.
Olho para os lados e encontro Adria e Catarina no carro à frente, elas já estão nos esperando.
— O que pensa que está fazendo? — Haru puxa as chaves do bolso do jeans.
— Esperando minha motorista — respondo firme.
— Ela acabou de chegar — esticou a chave na minha direção.
— E por que eu iria com você?
— Porque a Haru bebeu e vai beber mais. Não vou deixar você fazer isso.
— Você não manda em mim, sabia?
— Verdade, eu não mando. Mas durante essa semana descobri que você será minha responsabilidade e o meu carro é aquele ali — aponta com os olhos para a picape preta ao lado.
— Sua responsabilidade? Eu não sou uma criança.
— É, tô ligada que você já é uma adulta de 24 anos — eu falei a minha idade para ela?
— Eris — Haru retornou mas não com uma fisionomia muito boa, parece estar preocupada — se importa em dar uma carona para nossa convidada? Preciso passar em um lugar antes e talvez eu demore — existe um diálogo silencioso na troca de olhares das duas.
Parece que elas se conhecem muito bem.
Parece também que eu me ferrei. Ah, que ótimo.
— Desculpa, gatinha. Nos vemos no bar? — Haru pisca para mim e abre um sorriso malicioso. Roda o Jeep e abre a porta do motorista.
— Sem problemas — fito o olhar zombeteiro que Eris esboça e o meio sorriso enquanto abre a porta de sua picape ao nosso lado.
— Menina Eris — Miranda veio em nossa direção — vocês estão indo para a cidade?
Ela veio com um rapaz ao lado, seu sobrinho e perguntou se poderíamos dar uma carona para ele também. Eris me olhou mas não se opôs.
Um puta frio por conta do ar condicionado, a rádio tocando baixinho e apesar da confusão de fragrâncias, o cheiro de Eris incendeia o carro inteiro. Claro que aconteceria isso, o carro é dela. E mesmo que eu não soubesse, eu diria que é dela. Existe um caos organizado e o perfume dela. O cheiro caótico dela.
Viemos os três em completo silêncio até a praça central. Ele ficou bem pertinho do hospital da cidade e seguimos até o tal bar.
Eu conheço esse lugar.
Puta merda, é o tal bar do Mundial.
O bar em que nos conhecemos.
O bar onde tudo aconteceu.
*
— Fadinha?
— Perdão — fui expulsa dos meus pensamentos nostálgicos assim que Catarina me sorriu — o que você perguntou?
Eris e Adria foram ao banheiro e estou aqui apenas com Catarina, que me olha como uma criança animada para sua próxima aventura.
Catarina exala essa energia.
— Sua cabeça está vagando por onde?
— Na viagem — minto.
— Ah.
— O que você perguntou?
— Perguntei se está gostando das férias na roça.
— Ah, eu estou gostando. Aqui é bem — meus olhos fitam a mulher de camisa social branca entreaberta que caminha em nossa direção, engulo a seco — curiosamente interessante.
— O que é interessante? — Haru perguntou assim que chegou, junto com as meninas do banheiro. Ela beijou a cabeça de Catarina, roubou um selinho da Adria e depois, Eris.
Adria riu e sentou-se ao lado da namorada. Eris, por sua vez, revirou os olhos e sentou na poltrona oposta a minha, me encarando.
— E essa é a nossa beijoqueira — Catarina faz uma careta para Haru, que a recebe com um sorriso.
— Desculpa a demora — Haru pisca para mim.
— O que vamos beber? — Catarina sorri ao ler a carta de bebidas do Quimera.
— Por que você está perguntando se já sabe o que vai fazer? — Haru estala a língua.
— Porque eu não sei a ordem que seguirei hoje.
— Como assim? — resolvo perguntar.
— Minha garota gosta muito da carta de bebidas do Quimera — Adria fala em um tom bastante animado.
— E eu nunca me decido qual drink gosto mais.
— E aí ela pede todos.
— Todos? — deve ter uns 20 drinks aqui.
— Confie em mim, vai ser divertido — Catarina abre um de seus sorrisos largos.
— Não confie não — as três falaram ao mesmo tempo. Haru com um cigarro na mão, Adria mascando um chiclete e Eris, que ainda não tinha falado nada.
Um grupo de amigos está no karaokê cantando algum forró pé de serra.
Catarina me olha com a mesma cara de menina levada que me olhava na formatura.
— Nem vem, eu não canto — olho para Eris, que me encara em silêncio. Por um segundo posso deduzir que ela deve estar lembrando de mais cedo quando me pegou na cozinha cantando enquanto eu cortava as frutas.
— Isso é o que veremos — Catarina levanta seu nariz arrebitado e nos olha em um tom convencido.
— E dançar? — Haru me estendeu a sua mão — você dança?
Eris continuou me fuzilando com o olhar.
— Quer descobrir? — pergunto.
E lá vamos nós.