ERIS
— Estou atrapalhando alguma coisa? — Haru perguntou, fechando a porta, logo após Misha deixar meu quarto o mais rápido que pode depois que a encontrei aqui.
Nem me dou o trabalho de explicar, ela não vai me escutar mesmo.
— Não fode, Haru, não tô boa pra você hoje.
— Ei, calma, foi para quebrar o clima. Que cara é essa?
— A única que eu tenho.
— Está mais azeda que o normal.
Odeio como ela me conhece. Odeio não conseguir esconder as coisas dela. Não demorou muito para que ela sacasse algo entre mim e a Misha depois da noite de formatura da capeta mucilon. Haru me colocou no canto e eu acabei falando que Misha era a guria do bar. Ela não ficou surpresa porque como eu já desconfiava, deu para perceber a tensão no ar naquele teatro.
Até aí tudo bem.
Mas minha cara azeda não tem nada haver com ela, eu daria muita coisa para que ela fosse o motivo, mas ela não é, e a Haru também sabe disso.
*
Algumas horas antes
I, I’m a little divided
(Eu, eu estou um pouco dividido)
Do I stay or run away
(Devo ficar ou fugir pra longe)
And leave it all behind?
(E deixar tudo isso pra trás?)
Que garota mais complicada, e olha que eu me achava complicada até conhecer a Misha.
Garota arrogante.
Garota esquisita.
Garotinha antipática.
Eu era a pessoa antipática.
Ela deveria ser educada, não é ela a tal filha prodígio nerd sei lá das quantas?
Tem muito tempo que algo não afeta, de verdade, a minha vida. Sinto que fui perdendo a capacidade de sentir depois de tudo o que acabou acontecendo. Depois de tantas perdas seu corpo começa a te proteger numa espécie de escudo e é quase impossível algo passar por essa fortaleza que ele constrói. Vai por mim, por experiência própria, é como um caminho sem volta.
Depois que a minha vida tornou-se essa nebulosa caótica e cinzenta só uma coisa tocou meu mundo. Essa coisa foi tão potente que depois dela meu mundo transformou-se em cinzas. E no dia que ela decidiu ir embora eu jurei a mim mesma que nada mais me afetaria. Eu não podia mais perder coisas, eu já tinha perdido demais.
Depois da Paloma eu jurei para mim mesma que eu seria diferente. Esquece Paloma, porra.
E eu fui. Todo mundo está de prova que eu fui. Até essa maluca aparecer no bar, flertar comigo enquanto assistia futebol, me beijar como se o mundo fosse acabar e sumir, do nada, como se nada tivesse acontecido.
Se fosse em outros tempos eu teria agradecido o que aconteceu, mas eu só soube sentir o vazio que ela deixou. Tinha muito tempo que eu não me sentia viva como me senti naquele bar, tinha mesmo muito tempo que eu não sorria do jeito que eu sorri olhando para o céu cinzento daquela noite enquanto a multidão do Quimera ainda estava eufórica com o Mundial. Que sensação fodida.
Times like these estrondando nos alto falantes e uma estrada, eu não preciso de mais nada durante esses quatro minutos e vinte e cinco segundos.
Por quatro minutos e vinte e cinco segundos eu me permito esquecer que dia é hoje.
Por quatro minutos e vinte e cinco segundos eu me permito esquecer que tenho a cabeça estragada.
Por quatro minutos e vinte e cinco segundos eu me permito acreditar que eu poderia ter feito diferente, literalmente, em todos os aspectos da minha vida.
Dirijo até as minhas terminações nervosas voltarem para o corpo.
Saio da loja de tortas que Nara encomendou a cheesecake clássica de todo natal. Era a torta preferida da mamãe e Nara faz questão de termos uma toda noite de natal. É como se ela estivesse conosco, jantando, em uma farta mesa e regada a vinho e muita comida gostosa.
Pego meu celular para perguntar se Nara precisa de mais alguma coisa da rua antes de voltar para a fazenda. O dia não está nada bonito, sempre chove no dia 24 de dezembro e eu não tô afim de ficar presa na estrada.
Uma ligação perdida: número desconhecido.
Um arrepio tomou conta de mim. Balanço a cabeça em negação, afastando o pensamento que ocorreu em minha mente. Não pode ser… faz tanto tempo, tantos anos, não pode ser. Claro que não é.
Número desconhecido ligando
— Alô — falei, atendendo a chamada.
*
— Não vai mesmo me dizer onde esteve o dia inteiro?
Termino de fechar o último botão da blusa.
— Você não deveria estar trabalhando? — por fim, pergunto.
— Consegui alguém para me cobrir, já falei como você fica sexy de camisa social?
— Pensei que não gostasse do natal.
— E não gosto. Mas gosto das comidas natalinas, e esse ano o cardápio da sua casa está… bastante apetitoso — ela me olha com cara de malícia. Haru sempre faz essa cara.
Não falei mais nada. Haru puxou o celular enquanto eu termino de me arrumar.
— A filha do Zeca é bonita, né?
Não, não vai rolar.
— Mais do mesmo — minto. Misha é tudo menos mais do mesmo.
— Ela beija bem?
— Não sei, estava muito bêbada para lembrar — minto de novo. Nem se eu quisesse conseguiria esquecer aquela boca.
— Então não vai se importar se eu resolver descobrir como é o beijo dela, vai?
Não é segredo para ninguém que eu e Haru volta e meia dividimos a mesma cama.
Sempre quando Haru está com alguma garota que quer um ménage sou eu quem ela chama. Ou a Adria, antes da Catarina chegar em sua vida. Não curto muito sexo a três, acho superestimado demais, mas eu sempre acabava na cama das mocinhas.
— Que seja, ela não foi nada — minto mais uma vez.
— Então, show. Vou chamá-la para ir conosco pro Quimera hoje depois da ceia.
Encaro, friamente, a mulher esparramada na minha cama. Atrás dela vejo ainda uma correntinha dourada sob a penteadeira. Não é minha. É da morena que estava aqui se maquiando.
Definitivamente eu nunca levaria nenhuma garota minha para a cama com a Haru.
Penso em falar para ela quem me ligou hoje mais cedo, mas isso acabaria com a noite de todo mundo, então só encaro e tento abstrair o fato da Haru estar querendo dar em cima da Misha. Por que isso me incomodou? Não, não foi incômodo. Não sei o que foi o que senti.
Pelos céus como eu odeio a energia natalina.
Tudo dá errado no natal.
Tudo sempre dá errado.
*
Caminhamos para a sala que já está abarrotada de gente. Casais amigos da minha irmã e de seu noivo, todos os funcionários da fazenda com suas famílias, algumas pessoas do comércio local e um enorme banquete sob a mesa de jantar.
— Como você está linda — Catarina me abraçou — só precisa desamarrotar essa carinha, hoje é natal, Grinch — retribui o abraço — cadê a minha fadinha?
Todo mundo pergunta desse inferno de garota agora?
— Não está no meu bolso.
— Grossa.
Forço um sorriso colado.
Adria, que está ao lado da namorada, me analisa quieta, como ela sempre faz, em silêncio e na dela, com a maior cara de paisagem do mundo. A Adria curte não chamar a atenção e diferente de mim que tenho a fama de ser a ranzinza e a Haru que tem fama de ser… a Haru, ela tem a fama de ser a mais de boas, a cuca fresca de nós três. Já disse que detesto ser analisada? Mas minhas melhores amigas ignoram totalmente isso.
Misha aparece com uma garrafa de vinho nas mãos e um abridor na outra. Ela me encara, olha para as meninas e rapidamente esconde seu olhar, direcionando para os seus pés, que revelam agora uma rasteirinha marrom, dessas com cordas para amarrar. Sempre as achei sem graça, mas nela ficam tão… bonitas. Rasteirinhas, não mais os saltos de ontem, o que a deixa em sua altura real, pequena, como na noite do bar.
Ela gira seu corpo nos calcanhares e vai direto para a cozinha.
— Vamos começar os trabalhos? — Haru pergunta. — Alguém quer vinho? Darei um pulo na adega.
— Eu pego.
— Vai perder a deixa da Haru te servir? — Adria pergunta, abrindo um sorriso bem largo. Como eu disse, me analisando.
— Já volto — digo, rapidamente, andando na mesma direção da cozinha.
Saio da sala de jantar e encontro uma Misha tentando, com todas as forças, abrir a garrafa de vinho. Ela está na ponta do pé com a garrafa sob a pia, seus braços forçando a rolha. Está tão concentrada que não percebe minha presença.
O que essa garota tem que me faz querer sempre estar tocando nela quando nos vemos? Parece que nossos corpos se conhecem ou, pior, se atraem.
— Não coloque tanta força sob a rolha se não você a partirá no meio — digo, segurando seu braço levemente e o outro apoio no balcão — deixa eu te ajudar com isso?
— Não precisa, eu consigo.
Mas não conseguiu. Me esticou a garrafa com o saca-rolhas preso e a rolha trincada. Teimosia, o nome disso é teimosia.
Puxo a rolha delicadamente e retiro-a da garrafa.
Ela encara minhas mãos formando com uma fisionomia surpresa, formando um “o” bonitinho com os lábios, mas logo une as sobrancelhas e volta a me encarar de fisionomia fechada. Teimosa. Teimosa pra caralho.
Estamos tão perto uma da outra que posso sentir novamente seus pelos arrepiados e seu hálito quente. Ela está usando o mesmo perfume, me olhando do mesmo jeito que me olhou no bar.
— Obrigada.
— Disponha.
— Desculpa ter invadido seu quarto, eu não sabia que era seu e não sabia que você estava em casa.
— Tudo bem.
Por que não consigo me afastar desse inferno de mulher?
Ela me encara, engole a seco e molha os lábios sem perceber. Exatamente como fez sábado no bar. Meu coração sente sua presença e toma o mesmo ritmo da escola de samba que já esteve aqui por ela.
Pego o objeto que está no bolso da minha calça e estendo na reta de seus olhos.
— Acho que isso é seu — ela olha para o colar que seguro.
— Pensei que tinha perdido.
— Você deixou sob a penteadeira — afasto um pouco nossos corpos e separando o colar — posso?
Ela não falou nada, apenas virou de costas, puxando todos os fios cacheados para frente com o auxílio de suas mãos. Percorro meu olhar sob suas costas nuas.
O. Vestido. É. Frente. Única.
A pele dourada reluz e por um lapso de segundo consigo lembrar quão macia é. Pele de algodão… Contorno meus braços com o colar em mãos e ajusto o fecho em seu pescoço. Ela fica um tempo olhando para a garrafa de vinho aberta em suas mãos.
O que essa garota está fazendo comigo?
E quando ela vira, não consigo pensar em mais nada, sou atingida por um beijo rápido e totalmente inesperado. Seguro a garrafa de vinho de sua mão e com a outra circundo sua cintura. Dessa vez, não sinto o atrito com o jeans e o suéter, minha mão desliza facilmente sob o contorno de seu corpo devido o tecido super fino de seu vestido. Puta merda.
Sua língua pede entrada e permito que explore minha boca com vontade. Gosto do que sinto quando ela me beija. Misha me tem de uma forma assustadora e muito muito boa.
Pressiono nossos corpos sob a bancada da cozinha ignorando totalmente o fato de que alguém pode entrar a qualquer momento aqui.
Suas mãos rapidamente encontram minha nuca e puxam meu cabelo de uma forma que me causa mais vontade de beijá-la. Mãos pequenas, habilidosas e rápidas. Tudo nela tem esse cheiro ansioso e espoleta, Misha tem ar de garota levada e com fome de mundo.
Subitamente separo nossos corpos, encaro nos olhos castanhos dela e entrego a garrafa de vinho.
— Seja menos afobada da próxima vez para que você não perca a melhor parte.
— O que?
— O vinho, fadinha carioca, vinho com sabor de cortiça é horrível — passo meu indicador no lábio, limpando o que ficou do nosso beijo e saio em direção a porta da adega.
Olá! Amando o desenvolvimento e aguardando ansiosamente os próximos capítulos. 😘
Olá, Pri, como vai?
Desculpe a demora! Estou muito feliz em saber que você está gostando.
A partir de agora não demorará tanto para chegar novos capítulos para vocês.
Obrigada pelo comentário.
Beijão, Mabel!
Olá Mabel!
Estou a adorar a história, espero que continue e que não demore a postar o próximo capítulo. 😊
bjnhs 😘
Oi, Carla, tudo bem?
Desculpe a demora mesmo, o ano começou e as demandas chegaram com tudo!
Fico muito feliz em saber que você está curtindo nossas meninas.
Já já chega mais capítulo fresquinho para vocês.
Beijos, Mabel
Oi, Mabel!
Tô curtindo bastante a história. Não pare, por favor!
Bj
Oi, Carolina, tudo bem?
Fico feliz que você esteja curtindo. Já já chega mais capítulos.
Desculpe a demora.
Beijão