ANTES QUE ELA VÁ EMBORA

CAPÍTULO 4. Uma babá

ERIS

Algumas horas antes

Catarina ligando

Eu juro que se esse barulho não for do seu chuveiro, você é uma mulher morta.

A voz estridente gritou ao fundo da ligação e posso sentir o tom bravo dela aqui. Só consegui assimilar o horário que me foi relembrado diariamente para a formatura.

Não esqueça o smoking, a gravata que eu demorei três encarnações para encontrar e as minhas flores lindinhas.

E quando eu ia falar algo

Ah, sim… não esqueça de mandar sua amiga à merda. E se ela te ligar, fale que ela é oficialmente uma mulher solteira.

— Mais alguma coisa? — finalmente pergunto.

Venha me buscar em 20 minutos — e desligou.

Olho para as minhas mãos sujas de lama, várias referências espalhadas e… uma capa de smoking me encarando, uma gravata e um buquê de margaridas, além de uma caixinha de veludo. Meu telefone começa a vibrar mais uma vez.

Adria ligando

Escuto um rap ao fundo na ligação.

Então, talvez eu me atrase um pouquinho disse Adria vamos precisar acionar o plano B.

Claro que deu merda.

— Sua garota está surtando, Adria — encaro a enorme janela do ateliê — alguém tem que parar essa garota antes que ela mate todo mundo.

Vamos concordar que não é preciso muito para isso acontecer.

— Eu não sei o que deu na minha cabeça para aceitar esse plano idiota.

Adria tinha um plano todo arquitetado para pedir a garota da sua vida, e o terror da nossa, em namoro. E é claro que eu fui recrutada para a operação capeta namorando, assim como Haru intitulou.

Você era menos amarga, sabia? — o característico estalar de língua adentrou a ligação — preferia quando você transava — Haru disse basicamente gritando.

— Por que estou escutando a voz da Haru?

Então, era exatamente por isso que…

Estou salvando a vida de vocês, baby. Como sempre — Haru disse.

— Não vou conseguir segurar por muito tempo a Barbie.

Ela está tão puta assim?

Mas meu silêncio respondeu. É claro que ela sabe que a futura namorada não está nada feliz em saber que Adria não estará com ela na noite mais aguardada do ano.

*

Bloqueio o celular no mesmo momento que alguém passa por mim deixando um perfume característico no ar. É o cheiro dela. É o cheiro da maluquinha carioca que conheci na semana passada. A mesma que me agarrou, a mesma que… sumiu. A mesma que sumiu como se nada tivesse acontecido.

Balanço a cabeça, focando no que eu vim fazer aqui e pisco para a loira com vestido de princesa a minha frente.

Aplausos findam a fala da Catarina.

Alguns minutos se passaram até que fôssemos convidados para a grande valsa de formatura.

— Vamos? — ela perguntou, estendendo a mão para mim.

— Desculpa, Cat.

— O que? Ah, não, Eris. Você me prometeu.

— Desculpa — deu um beijo em sua testa — não posso fazer isso com você.

— Eris, eu sei que você está lidando com muitos fantasmas do passado esta noite, mas você não pode me deixar na mão.

Encaro a menina nos olhos mesmo sabendo que ela pode ler minha alma se quiser, mas não tenho outra saída. Percorro o olhar pelo Teatro Municipal e finalmente faço contato visual com a mulher no centro do salão, que por sua vez levanta a mão e uma música ao fundo começa a tocar, bem baixinha. A voz da cantora pega forma e todos do salão, aos poucos, param de fazer o que estão fazendo.

A mulher com um cardigã marrom escuro e calça branca de alfaiataria faz outro sinal para mim. Catarina me encara e eu então pego em sua mão.

— Uma pessoa pediu para dançar com você no meu lugar.

Rodo-a lentamente para irmos de encontro a Adria que a espera ansiosamente. A música delas toma o salão em uma voz aveludada e calma. E então a magia acontece.

*

— Você quer que eu faça o quê? — perguntei à sonsa da mulher que olha para mim da forma mais doce do mundo. Estava tudo indo bem demais para ser verdade.

Ela está prestes a viajar com o noivo que eu até simpatizo (fato raríssimo, já que homens, em geral, não possuem massa encefálica útil) e ainda não tinha feito nenhum pedido, deixado alguma ordem ou preocupação excessiva. Depois que eu aceitei morar neste fim de mundo, Nara me trata como criança, às vezes eu acho que ela esquece a minha idade.

Estava sendo diferente dessa vez, mas nada é tão bom que possa durar para sempre.

— Estaremos aqui para a virada do ano.

— E aí você quer que eu fique de babá de uma garota? — perguntei.

— Não estou pedindo isso. Ela não é uma garota, já é uma adulta de 24 anos. Estou pedindo para você fazer companhia a ela. E que seja simpática. Só isso.

— Ou seja, uma babá.

— Eris, eu não te pediria isso se não fosse importante. O Zeca está com o coração na mão por ter que se ausentar durante esse tempo, mas essa nossa viagem já estava marcada… e imprevistos acontecem.

Ah, eu sei, e como eu sei.

— O que você quer que eu faça?

— Nada demais — ela disse, abrindo um sorriso. E aqui eu percebi que tem mais coisa, sempre tem — que você faça companhia a ela, que seja simpática…

— E…?

— Que você fique na fazenda durante esse tempo.

Claro que quer.

— Ela é uma menina da cidade, não está acostumada com fazendas. E se acontece algo com ela?

— Nara, eu detesto a fazenda. Eu detesto mato. Por que ela não fica comigo no…

— Seu ateliê? Aquele cubículo que você chama de casa? Nem pensar. A fazenda é enorme, você tem sua própria suíte retirada do casarão… não estou pedin… — mas Nara não termina a fala, ela me olha por cima do ombro — Misha? – seu tom de voz mudou.

Ela dá um passo para o lado, segurando meu braço e girando nossos corpos nos calcanhares.

— Deixa eu te apresentar a fugitiva da minha irmã.

E assim que eu me viro, ainda cabisbaixa, vejo os pés femininos em uma sandália de salto alto fino e muito delicada, preta. Pernas levemente delineadas mas que não são típicas de quem malha, um vestido preto de paetês que para na metade das coxas, decote em V e mangas, cabelo castanho escuro com cachos modelados naturalmente que descansam na reta dos seios. Um colar prata e singelo que contrasta com o rosto angelical e a maquiagem que apesar de não ser carregada esconde o batom vermelho rebu nos lábios grandes e macios.

Os mesmos que tocaram a minha pele semana passada.

Ela é… linda. Ela continua linda.

Um arrepio percorre da base da minha espinha dorsal até a base da minha nuca. Acho que todos os meus músculos sentiram a presença dela. Nara fala alguma coisa mas não consigo escutar direito. Me fixo no olhar dos olhos de jabuticaba preta que tanto me fitaram sábado passado.

*

— Eu levo a Misha em casa, Zeca — Haru disse, puxando a mão sob o ombro de Misha.

— Não — falo de uma vez.

Me dou conta de que é a primeira vez que falo em muito tempo. Me perdi totalmente na conversa deles, não sei ao certo quanto me perdi em minhas lembranças. Não calculei a fala e espero que não tenha soado rude.

— Ela volta comigo.

E, então, todos olham para mim como se eu tivesse dito a coisa mais sem noção e improvável de todas. Talvez tenha sido.

— Digo — limpo a garganta — dormirei na fazenda.

Cada uma delas me encara de uma forma diferente. Haru franze o cenho e eu posso apostar o que ela está pensando. Mas é claro que eu não deixarei a irmã da Nara entrar num carro com a Haru alcoolizada e ainda sem dormir por 36 horas. Eu posso não ser o maior exemplo de simpatia mas não sou irresponsável. Catarina me encara com um sorriso de orelha a orelha em agradecimento, ela é muito transparente e eu sei muito bem quando algo a faz feliz e aparentemente Misha fez mesmo um bom trabalho com ela. Adria só consegue olhar para a namorada e me olha com outro sorriso de quem diz: por favor, quero sair daqui.

Mas a Misha continua me encarando em silêncio.

— Então isso é um sim? — minha irmã me perguntou.

E esse sim não tem a ver apenas com a carona da volta, ela quer saber se eu passarei a semana na fazenda com a garota.

A garota.

A garota filha do Zeca, noivo da minha irmã.

A garota da cidade que veio passar as férias na casa do pai.

A garota que me tirou a risada mais gostosa em muito tempo e me beijou como se sua vida dependesse disso e que depois disso SUMIU do Quimera, sem mais e nem menos.

Balanço a cabeça em tom afirmativo.

Quero tirá-la daqui. Quero perguntar o porquê dela ter ido embora em silêncio, se eu fiz algo de errado ou se aconteceu algo sério. Mas preciso ser muito discreta porque essas duas curiosas, que me encaram neste exato momento, sempre acabam fodendo com a minha paciência.

— Não, eu vou com vocês. Estou muito cansada, obrigada pelo convite, Catarina — disse Misha sem fazer contato visual comigo.

— Tudo bem, teremos tempo nessas férias para comemorar — disse Catarina.

— Aguardo todas vocês amanhã na fazenda – Nara pegou a bolsa sob a mesa e abraçou Zeca — o de sempre.

— Amanhã? — pergunto confusa, o que tem amanhã?

— Hoje é 23 de dezembro, Eris. Amanhã é véspera de natal.



Notas:

Olá!

Temos uma playlist no Spotify, intitulada ANTES QUE ELA VÁ EMBORA, no meu perfil mesmo Mabel Hungria. Você também consegue acessá-la abrindo o seu aplicativo, clicando na lupa (buscar) na parte inferior da tela, e, posteriormente, clicando na câmera fotográfica na parte superior direita da sua tela, e aproximando o leitor do código do Spotify abaixo.

Gosto de escrever escutando música porque me ajuda a entrar no universo da história

Super recomendo que você escute as músicas sempre que aparecerem no texto porque pode te ajudar na ambientação da cena.

Me deixe saber se você está acompanhando a história e o que está achando (:

Até o próximo capítulo, abraços, Mabel!

 




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