ANTES QUE ELA VÁ EMBORA

CAPÍTULO 17. Sabatina 1

ERIS

Comemos as pizzas, jogamos conversa fora e logo depois Adria e Catarina retornaram para a cidade. Misha tentou fazer com que elas dormissem aqui por conta do horário avançado, mas eu já sabia que seria jogo vencido, Adria ama dormir na própria cama, é uma velha mesmo.

A carioca não falou comigo o restante da noite e logo recolheu-se em seu quarto. Fui para o meu banho e tratei de remover o máximo de tinta que eu consigo do meu corpo… mas, ok, todo o esforço do dia valeu muito a pena. Estou muito orgulhosa de mim.

Estamos dividindo o mesmo banheiro porque o encanamento da suíte está com problemas. Encaro o vidro de shampoo que está morando no banheiro desde que ela chegou, tem um cheiro gostoso. É a porra do cheiro dela e ele está em todo o lugar. Incluindo a minha roupa de cama…

Depois do banho, passo pelo corredor em direção ao final dele que dá para o meu quarto e o feixe de luz do quarto de Misha me atinge. A porta entreaberta deixa escapar uma música baixinha.

Meus olhos a capturam, sentada recostada na parede, com o típico pijama composto por camiseta de algodão e short de flanela. Se você parar para analisar é algo extremamente simples mas nela… fica sexy pra caralho.

— Prefiro a versão do Dudu Falcão — falo, enquanto interrompo seu transe, mas ela não fala nada. Misha me olha e volta a atenção para a tela iluminada em suas mãos.

Eu gosto do meu quarto
Do meu desarrumado
Ninguém sabe mexer na minha confusão
É o meu ponto de vista
Não aceito turistas
Meu mundo tá fechado pra visitação

— Eu posso entrar? — pergunto, segurando a madeira da porta.

Curiosamente eu tinha essa música no meu antigo e finado iPod.

— Porta aberta – ela diz, enquanto me fuzila com seus olhos de jabuticaba. Levanto os dois braços para cima em sinal de defesa.

— Sim, senhora, porta aberta — adentro o cômodo fazendo o que ela pediu, deixando a porta escancarada. Acho que alguém está um pouco brava.

Caminho, lentamente, até a parede que fica oposta à cama da Misha e amparo o peso do meu corpo no vão da janela.

— Sabe o que é mais cômico? — ela limpa a garganta e me olha através dos óculos de grau de armação preta — você também parece não aceitar turistas no seu mundo — me encara de forma sutil porém fixamente.

Eu poderia dormir sem essa? Poderia.

Mas ela não está errada.

— Eris.

— Misha.

— Eris… é o seguinte, eu vou ser bem direta com você porque não consigo ser diferente disso — ela ajusta a postura e acomoda o pé com a tornozeleira ortopédica na almofada, limpa a garganta e estica o pescoço fazendo um contato visual direto comigo. — Está rolando algo entre nós duas, é um fato inegável. Mas isso não te dá o direito de não ser clara comigo. Entende isso, não entende? Não vai ficar um climão ou nem nada se pararmos de… seja lá o que esteja rolando aqui.

— Por que está falando isso?

— Acho que está bem óbvio que você se arrependeu e está sem jeito de conversar comigo.

— Você acha mesmo que eu me arrependi? — percebo a respiração de Misha aumentar o ritmo — é isso o que pensa?

Ela molha os lábios, pisca duas vezes rápido e solta todo o ar de seus pulmões. Posso sentir quando sua guarda começa abaixar.

— Nos últimos dois dias eu dormi em duas camas suas e em nenhuma delas eu amanheci com você. Eu posso ser um pouco lerda mas não sou burra — corte rápido.

Ela respira fundo e continua

— Alguma coisa está acontecendo, eu só não sei o que é. Não que eu me ache um mulherão para exigir algum…

— Você é um mulherão — respondo sem rodeios e antes mesmo que ela termine seu pensamento porque já sei que usará um daqueles argumentos infundados — o fato de não ter dormido com você não é culpa sua ou de nada que tenha feito. E, não, eu não me arrependi nenhum pouco de nada que aconteceu entre nós duas – nossos olhares estão conectados — peço desculpas se te fiz pensar assim.

Caminho até a cama e sento-me em sua frente, em cima de uma das minhas pernas enquanto a outra está esticada no chão. Misha não parou de me olhar em nenhum momento.

— Eu preciso de respostas, Eris.

— Estou disposta a responder tudo o que você me perguntar, mas eu gostaria de te levar a um lugar antes. Posso?

— Que lugar? Você e esses lugares seus…

Estico o braço para ela.

— Por favor? — ela olha para mim e depois volta o olhar para a janela. — Você só vai precisar de um casaco.

— Eu não trouxe casaco — ela me responde cruzando os braços.

— E aquele que você encontrou no banheiro e está usando todos os dias antes de dormir? — o mesmo que você deixou caído no chão do meu quarto esta madrugada.

Ela morde um sorriso e revira os olhos. Eu já disse que ela fica uma gracinha quando está nesse estado pseudo brava?

*

— Por que não escolhe algo? — sei que muita gente não curte escutar rádio. — Já percebi que você é bem musical.

Misha, por fim, aceitou o meu convite para sair e estou disposta a responder tudo o que ela me perguntar. Olho para ela de canto de olho, agarro minha correntinha e foco na estrada que é iluminada pelos faróis e revelam os vários bichinhos e insetos que uma estrada de barro esconde.

— Podemos deixar na rádio, eu gosto também – ela diz, despreocupada — é legal ser surpreendida.

Enquanto eu dirijo, Misha me conta como foi o dia na companhia da Catarina e o que fizeram. Fico feliz por saber que estão se dando bem. Sei que a Catarina sente-se muito sozinha. Misha descansa a mão sob minha coxa sem perceber mas sinto suas unhas sendo cravadas em minha pele quando uma música adentra a camionete.

— Nossa, eu amo essa música — ela diz.

Quem sabe eu ainda sou uma garotinha
Esperando o ônibus da escola, sozinha
Cansada com minhas meias três quartos
Rezando baixo pelos cantos
Por ser uma menina má

A melodia de Malandragem na voz da Cássia Eller toma o carro sem pedir licença. O cheiro do couro vai longe.

Misha canta baixinho a letra. Ela está entretida e é fácil perceber que ela gosta dessa música, não só porque falou mas porque ela a sente. Quando eu a vejo assim, entretida no meio de uma música, tenho a sensação de que eu facilmente poderia me acostumar com isso no meu dia a dia.

E isso não é uma sensação comum para mim.

— A voz dessa mulher… — ela fecha os olhos. Misha tem algo muito valioso e raro hoje em dia, ela se entrega para a vida, consegue sentir e aproveitar os prazeres mais simplórios — eu já cantei tanto essa música… indo e voltando do meu antigo colégio — continua com olhinhos fechados, rindo e cantando. Sua mão esquerda continua sob minha coxa e a outra está em seu peito. Está aí uma cena que eu gostaria de tirar uma foto.

Eu só peço a Deus
Um pouco de malandragem
Pois sou criança
E não conheço a verdade
Eu sou poeta e não aprendi a amar

Saímos da estrada de terra, passamos pelo centro da cidade; a rua do Quimera cheia de gente; o hospital, a praça tomada por pessoas em bares e pelos campos de grama. A cidade fica muito cheia no final de ano. Sigo até a rua de paralelepípedos que nos leva a entrada da reserva.

— Sabia que essa música foi feita para a Angela Ro Ro? — Misha me tira dos meus pensamentos e me traz para o carro novamente — ai, esquece, eu e meus conhecimentos desnecessários.

— Me conte — coloco a mão em sua coxa, chamando sua atenção. — Eu sei quem é a Angela, mas achei que tivesse sido para a Cássia.

Ela rapidamente volta a falar de forma animada.

— É o que todo mundo acha… mas não, foi o Cazuza e o Frejat que escreveram essa letra e para a Angela. Ela detestou. Daí, deram a música para a Cássia e… bem… a música estourou e a Cássia ficou oficialmente famosa. Dizem que ela vivia lá pelas bandas de São Pedro da Serra cantando em barzinhos. Imagina, você chegar num lugar e dar de cara com ela?

— Realmente… seria um show — o que é que estou dizendo? Eu nem ligo para MPB.

*

Subimos até o alto do morro, passamos pela antiga torre de transmissão da cidade e seguimos até o mirante. Manobro a S10 e estaciono de costas para ele. Saio do carro, abro a porta para Misha, ajudo-a sair dele e caminhamos até a ponta, rente ao mirante que nos oferece uma das melhores vistas para a cidade.

— Ca-ra-ca – Misha arregala os olhos para as luzes que daqui parecem pequenininhas — é a cidade! — não esconde sua surpresa. — Estamos vendo a cidade daqui do alto! Parece uma cidade em miniatura. Cheia de luzinhas… que mágico.

Ela olha para todos os lados como uma criança encantada com algo novo.

— Está vendo ali? — aponto com o meu indicador — é a praça central, o hospital que fomos, aquele outro prédio ali — nos guio com os meus dedos — aquele é o Quimera e…

— Aquele lá é o seu ateliê — ela diz como quem acabou de fazer uma grande descoberta — ele é tão alto assim?

Olhamos a vista por um tempo e a Misha tentou adivinhar o máximo de lugares que pode. Ela tirou algumas fotos, eu tirei fotos dela e no final tiramos outras várias e tenho certeza que todas ficaram péssimas, mas ela disse que são “fotos de recordação” e não instagramáveis.

Estamos no alto do morro que hospeda a antiga torre de transmissão da cidade e aqui em cima faz muito mais frio que lá embaixo. Não demora muito para que Misha comece a enroscar-se no moletom. Já percebi que ela é do tipo de pessoa que sente frio com facilidade, essa mulher vai congelar na Inglaterra. Volto para o carro, abro a porta traseira e retiro a lona que protege a carroceria. Abro a porta traseira da cabine e puxo dois cobertores e uma garrafa térmica.

Ajudo Misha a sentar na porta estendida e sento-me ao seu lado. Entrego um dos cobertores para ela e pego outro.

— Era aqui que ia me trazer no natal? — me pergunta enquanto encara as estrelas acima de nossas cabeças.

Balanço a cabeça em afirmação enquanto me aproximo dela.

Estamos sentadas uma de frente para a outra e ambas recostadas nas laterais da carroceria. Misha olha para mim, olha para a cidade em miniatura abaixo de nós e olha para o céu. Somos iluminadas apenas pela luz da lua e as pequenas luzes da cidade, o que faz parecer que o céu é muito maior do que é. Aqui do alto só conseguimos escutar o barulho da natureza e do vento. Estamos somente nós duas e o grande céu que nos abraça.

— Eu teria gostado… aqui é mesmo um lugar muito bonito — ela ajusta o cobertor sob o colo, descansa sua mão em minha coxa e seu polegar deixa círculos preguiçosos por cima do tecido — então…

— Estou pronta para ser sabatinada — pego a garrafa térmica e me sirvo do líquido quente — como quer fazer?



Notas:

Olá, pessoal, como vocês estão?

Gostaria de lembrar a vocês que ANTES QUE ELA VÁ EMBORA possui uma playlist oficial no Spotify contendo todas as músicas citadas até agora. É só jogar o nome do livro na barra da busca ou o meu nome Mabel Hungria.

Beijão, Mabel!




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