ANTES QUE ELA VÁ EMBORA

CAPÍTULO 12. Everlong

ERIS

Alguns minutos antes

Saio do banheiro do ateliê e preparo a infusão do chá de gengibre e limão. Imagens dela em meu banheiro tomam a minha mente. Ela, nua, no meu box. Vapor por todo lado…

Destravo o celular, clico no meu aplicativo de mensagem e abro o único grupo que realmente me interessa.

Mensagens não lidas: 22

Haru Vauss: finalmente nosso bicho do mato vai desvirginar, vou soltar até fogos

Adria Flores: Fogos são proibidos, Haru.

Haru Vauss: e você é chata

Adria Flores: Mas, calma, a Eris vai perder a virgindade com quem?

Haru Vauss: pelo amor de Deus?

Adria Flores: A MISHA

Haru Vauss: às vezes no silêncio da noite eu me pergunto como você se formou em jornalismo, Flores

Haru Vauss: sinceramente, Brito, sinceramente

Adria Flores: Faz tanto tempo que a Eris não pega ninguém… Desculpa, amiga, você sabe que eu te amo.

Haru Vauss: KKKKKKKKKKKK sacanagem isso

Adria Flores: Catarina está nervosa achando que vocês estão passando por problemas nessa chuva, Eris. Mande notícias!

Haru Vauss: devem estar num motel, certeza

Adria Flores: Estamos falando da Eris, Haru, claro que elas não estão em um motel.

Haru Vauss: o mundo está se desmanchando em água, princesa. ou estão presas na estrada ou estão fodendo

Haru Vauss: talvez os dois

Haru Vauss: não tem lá mta opção

Adria Flores: Haru, tem como você falar algo que não seja relacionado a sexo ou a drogas?

Haru Vauss: chata. posso reclamar da minha chefe nova?

Adria Flores: ou do seu emprego**

Haru Vauss: então não tem como eu te ajudar, desculpa

Adria Flores: Eris, nos dê notícias, por obséquio.

Haru Vauss: você tá parecendo uma mãe, Adria, deixa a mulher tirar o atraso dela. cadê a capeta mirim que não está te acalmando?

Um ótimo resumo das minhas duas melhores amigas. Até hoje eu não sei como três personalidades tão diferentes conseguiram ser tão amigas.

Eris De Mori: Tem como vocês pararem?

Adria Flores: GRAÇAS A DEUS, ESTÁ VIDA!

Adria Flores: Viva*

Haru Vauss reagiu

Haru Vauss: cadê você, caralha? conseguiu se acertar com a gatinha?

Adria Flores: Estamos preocupadas… Catarina já quase ligou pro hospital pedindo notícias de vocês duas.

Haru Vauss: será que a princesa poderia acabar com o mistério? minha bola de cristal está com defeito

Eris De Mori: Quanto drama

Eris De Mori: Estamos bem

Adria Flores: E estão…?

Eris De Mori: Em segurança

Haru Vauss: ela tá de gracinha agora, nessa merda, estão num motel, não estão? pode falar

Haru Vauss: eu só acho que você poderia ter me pedido opinião, inaugurou um SENSACIONAL na subida da serra

Adria Flores: Claro que não, elas estão em um hotel, aposto. É a cara da Eris.

Eris De Mori: Não e não

Haru Vauss: Quimera?

Adria Flores: Se elas não estiverem no Quimera eu vou ficar chocada.

Eris De Mori: Eu acho que você vai ficar chocada de qualquer jeito

Haru Vauss: ah porra, vocês estão na delegacia? minha delegada não tá de plantão hoje. o que você fez, De Mori?

Adria Flores: Impressionante, Haru.

Eris De Mori: Estamos no ateliê

Adria Flores está digitando…

Haru Vauss está digitando…

Adria Flores está gravando um áudio

(1) chamada em grupo perdida

Áudio da Adria: EU FALEI, EU SABIA, MEU DEUS! MINHA FADINHA É CAMISA 10 !!!!!!

Adria Flores: Catarina pegou o celular da minha mão e eu estou em choque.

Haru Vauss: você está em choque? minha pressão chega caiu, até me sentei

Adria Flores: E antes que eu me esqueça… Haru não se contentando em flertar com uma delegada, ela está flertando com uma delegada CASADA.

Haru Vauss: minha vida ainda não está em jogo aqui

Adria Flores: Mas não vamos perder o foco. Eris, como isso aconteceu?

Eris De Mori: Você ainda está conversando com a Aquino, Vauss?

Haru Vauss: a pauta ainda não sou eu… mas respondendo sua pergunta, sim. vamos sair daqui a pouco, inclusive

Adria Flores: E o marido dela?

Haru Vauss: está de plantão. é ele quem está na delegacia hoje hehehe

Eris De Mori: Você não aprende, é impressionante

Adria Flores: Sinceramente? Eu já desisti.

Haru Vauss: não desistiu nada

Haru Vauss: vocês deveriam me agradecer, isso sim, ficar com uma delegada é a coisa mais segura que eu posso fazer

Eris De Mori: Até pq ela é a única pessoa nesta cidade que poderia te prender

Haru Vauss: sou ou não sou visionária?

*

— Você tem mesmo uma coleção de LP — ela disse enquanto colocava a xícara de cerâmica sob o móvel de madeira bem rente a janela. Balanço a cabeça sutilmente enquanto ela me olha como se estivesse me pedindo autorização.

Minha mente voa enquanto a vejo agachada com as minhas roupas e dedilhando os meus discos. Sinto que eu poderia facilmente me acostumar com essa cena.

Eu odeio muito a Haru.

Solto a agulha no disco. Assim que a melodia começa eu me dou conta que é o Greatest Hits do Foo Fighters.Levanto a agulha. Tenho algum LP de música brasileira aqui e acho que ela vai prefer…

— Não — disse ela — quer dizer, não precisa tirar. Isso é Foo Fighters?

— É sim, mas pensei que você só curtisse músicas brasileiras.

— Eu curto muita coisa, dona Eris — imitou o meu tom de voz — curto o som dos caras. Já pensei em fazer uma tatuagem com um trecho de música deles.

Não fala isso.

— Qual? — pergunto.

— Walk — tinha que ser logo essa?

É uma boa música — caminho até a cama e me sento na beirada, de frente para ela.

— Aliás, você tem quantas tatuagens? — ela levanta e caminha até mim.

— Parei de contar na… eu nem sei mais — ela agacha em minha frente, ficando de joelhos no tapete. Segura meu braço e começa a dedilhar, lentamente, desenho por desenho, subindo e descendo. Parece até que está

— Está tentando contar quantas tatuagens eu tenho? — mas ela se assustou quando eu perguntei, assim como uma criança quando é pega fazendo algo errado.

— Me desculpe — disse, afastando a mão — isso foi totalmente automático.

Levanto o meu braço e puxo a minha camisa pela gola, retirando-a e ficando apenas de top e short. Misha assiste a cena lentamente sem dizer nada. Percebo os olhos dela percorrerem por meus braços e abdômen.

— Assim fica mais fácil para você contar — e pisco para ela que me retribui com uma viradinha de olhos. Ela não se opõe e volta a me revirar com suas pequenas mãos como quem revira um brinquedo.

— Costela, lado direito — ela me olha confusa — a tal música que você pensou em tatuar, eu tenho um trecho dela tatuado.

Ela passa o dedinho gelado pelas palavras da minha primeira tatuagem.

— Acho que essa tatuagem não ficaria tão estilosa em mim como ficou em você — você está bem enganada, carioca.

— Quando eu te conheci fiquei muito curiosa para saber quais outras tatuagens você tinha — ela diz, ainda me olhando e tentando contar os desenhos.

— Ah, é? — circundo sua cintura com a minha mão, trazendo-a para mais perto de mim.

— Demonstra personalidade. Eu gosto de personalidade e — espalma suas mãos em meus joelhos — enigmas. Você me passa a junção dessas duas coisas.

— Isso é bom?

— Como toda boa pessoa formada em psicologia, eu tenho um fraco por enigmas — ela concluiu.

Ela é formada em psicologia?

Que dedo podre você tem, Eris?

Isso só pode ser karma.

— Não me olhe assim, eu não estou te analisando. Nem posso fazer isso se quer saber — Misha tem uma fala tão despreocupada, ela é sempre tão… leve. Não há peso em suas palavras — totalmente antiético.

— Não é isso… eu sei que vocês não podem — engulo a seco — isso só deixa claro que eu não sei quase nada sobre você — resolvo mudar de assunto.

— Além, é claro, de você amar MPB, drinks com vodka, cigarro de filtro vermelho e não entender nada de futebol — concluo a minha fala.

Mas, eu só me dei conta de que eu sei bem mais sobre ela do que eu julguei não saber, quando externei isso. Ah, claro, eu deixei de lado que ela beija muito bem.

— Quem está analisando quem agora? — me perguntou enquanto sorria de forma sarcástica.

— A impulsividade, a teimosia e a metidez vieram de brinde — digo, cerrando meus olhos.

— Para o seu governo, eu sei muito sobre futebol — fica de joelhos em minha frente — não sou metida — coloca as duas mãos espalmadas nas minhas coxas — talvez um pouco teimosa e a impulsividade veio de brinde da fábrica. Quase não fumo e menos ainda bebo drinks como o de ontem — ela, por fim, confessou.

Eu sabia que ela não tinha esse costume.

— Vodka e filtro vermelho… isso é forte para caramba para alguém que só curte às vezes, Misha.

— Eu sei. Bebi com a Catarina porque foi um momento atípico… e eu estava devendo uma comemoração a ela. Se formos analisar eu prefiro cachaça… detesto vodka e eu só fumo em ocasiões muito específicas… ou seja, quase nunca — ela me encara, seus polegares deixam círculos preguiçosos em minha pele e o toque dela acorda todo o meu corpo.

Ela parece falar mais para ela que para mim e nos encaramos por um lapso de tempo. Eu sei que nós duas precisamos conversar… mas amanhã a gente conversa.

— Manchester, é? — desço minha mão direita para a sua coxa, sentindo a maciez de sua pele — você tem perspectiva de volta ou planeja virar inglesa de vez?

— Sinceramente? Não faço ideia — ela passa o seu polegar pela barra do meu short.

— Já pensou nas últimas coisas que quer fazer em terras brasileiras? — passo minha outra mão por sua coxa esquerda e puxo-a para que conseguisse subir na cama. Ela aceita a minha investida, passa uma perna de cada lado e senta no meu colo, de frente para mim.

Percebi que ela pensou na resposta para a pergunta que fiz e a acabou balançando a cabeça em afirmação.

— Quer dividir comigo? — ela passa as duas mãos ao redor do meu pescoço e começa a mexer no meu cabelo.

Eu, sem camisa, só com um top preto e ela me olhando, estando engolida em uma das minhas camisas preferidas que já percebi que fica bem melhor nela.

— Se eu falar, você vai me zoar, Eris?

— Claro que não.

— Bom, vamos lá… um porre, fazer algo que eu nunca fiz tipo cantar num karaokê… — arqueia a sobrancelha e solta um sorriso.

Minhas mãos percorrem a lateral de seu corpo e posso senti-lo quente. Bem quente.

— Entendi… tem mais algo em sua listinha, já que riscou essas duas coisas?

Ela continua olhando minhas tatuagens.

— Sim — então ela me conta uma série de coisas — ter uma memória musical… basicamente coisas que façam eu me sentir viva — por fim, termina. 

Coisas que façam eu me sentir viva…

And I wonder
(E eu me pergunto)

When I sing along with you
(Quando eu canto junto com você)

If everything could ever feel this real forever
(Se tudo poderia ser tão real assim para sempre)

If anything could ever be this good again
(Se tudo poderia ser tão bom assim de novo)

A letra de Everlong me invade como um soco diretamente em meu peito. Fito a morena que não tira os olhos do meu corpo enquanto gesticula baixinho a letra. Atenta a casa detalhe, a cada relevo, a cada decalque de rabisco que tenho em meu corpo. Pintas, cicatrizes, marcas de nascença… tudo entra no raio X que ela perpassa em seu olhar. As unhas pintadas de rebu passeiam em minha pele enquanto ela canta e só faço me perder mais.

Será que a gente sente quando um momento vira memória? Eu não faço ideia, mas queria que esse virasse.

Ela canta em uma vibe que parecia ser só dela e, eu, a olho e capturando todo esse momento. Então eu só aproveito o restante da música.

— Sabe… — ela volta as mãos para a minha nuca — pode riscar a memória musical — molha os lábios de forma sutil — acabei de realizá-la. 

— Você tem mais algum desejo? — pergunto.

— Me beija? — ela pede olhando diretamente para os meus lábios.

Colo nossos lábios o mais rápido que consigo e viro nossos corpos para o lado, deixando a Misha de costas para o colchão. Ela continuou mexendo em meu cabelo, mas agora puxa meus fios com força enquanto deixa uma mordida sutil em meu lábio inferior. A carioca até que tem uma carinha fofa mas já percebi que se transforma completamente quando estamos…

Suas pernas entrelaçadas em meu quadril me apertam mais, o que diminui, consideravelmente, a distância entre nossos corpos.

É surreal a onda que nos atravessa, posso senti-la pulsar estando entre suas pernas. Seu corpo quente, macio, encaixado perfeitamente ao meu. Os cachos de seu cabelo estão espalhados por meu colchão e o cheiro dela está em toda parte. Esse cheiro… Misha me puxa para ela e passa suas unhas pelas minhas costas, as unhas não são longas mas conseguem me arrepiar quando um barulho nos interrompe.

É a campainha. Ah caralho tanta hora para isso tocar. Misha continua me beijando até que

— Eris — ela choraminga enquanto beijo seu pescoço — deve ser importante, está chovendo muito… — a voz sai como um miado baixinho — e se for alguma das meninas?

Eu juro que se for uma das duas eu mato. Puta que pariu, Haru saiu com a delegada. Me afasto dela enquanto deixo um selinho em seus lábios.

— Me espera aqui — falo enquanto saio de cima dela e pego um casaco na arara.

— Tem certeza? — ela senta na cama, ajeitando os cabelos.

— Escolha algum filme pra gente assistir, o disco já tocou todo — sugiro e ela me responde com um largo sorriso. Eu poderia facilmente me acostumar com esse sorriso — eu já volto.

Desço desacreditada com todos os acontecimentos do dia de hoje, ainda mais depois de considerar o conselho da Haru. Que merda você fez agora, Haru? Eu não faço ideia, mas a Misha está aqui, comigo, e estou determinada a não deixá-la sair. Seja lá o que a louca da minha melhor amiga tenha aprontado.

Talvez seja mesmo verdade que a magia do natal exista.

Amanhã eu penso nos meus problemas, amanhã… hoje eu só quero… abri a porta de supetão mas a sensação que eu tive foi a de ter voltado algumas casas no tabuleiro.

Olho para a mulher com olhos de gato que me encara através da porta do ateliê. Seus fios não estão mais lisos, agora os cachos podem ser visualizados e apreciados. Sempre os preferi assim, sem química e sem nada que atrapalhasse a beleza natural deles. O rosto fino, que agora parece mais fino, revela uma palidez que não é típica dela e um batom cor de boca nos lábios. O pescoço esguio revela o colar que eu conheço melhor do que eu gostaria. Ela está com um de seus clássicos vestidos de grife, uma jaqueta jeans nas mãos e um tênis que a denuncia ter vindo direto do aeroporto, mas que eu posso deduzir que para chegar aqui tenha alugado um carro pois segura a chave de um.

Não importava a hora do dia ou a ocasião, ela sempre estava bem vestida e com um ar elegante sob seu nariz, que sempre lhe passava muita segurança. Vejo que seus velhos hábitos não mudaram.

Por um lapso de momento minha mente trava.

Por um lapso de momento eu volto para esse exato lugar, com ela, ali, me olhando como naquela noite.

Por um lapso de momento eu reconheço a mala de mão que agora descansa ao lado de deus pés.

A diferença é que naquele dia ela estava saindo daqui. Jurei para mim que nunca mais veria essa porra de mala, a porra da bolsa tira colo e a sua dona.

— Paloma — encaro a mulher que me olha em um misto de curiosidade com surpresa.

Ela está completamente ensopada de água.

— Eris — ela solta o ar de seus pulmões e aqui eu posso visualizar um diálogo silencioso que há entre nós duas.

Quantas vezes eu acordei de madrugada, assustada, desejando escutar meu nome nesse timbre, bem aqui em minha porta?

Mas eu não falo mais nada e ela também não. Meu cérebro ainda está assimilando a presença da mulher que não vejo há quase 2 anos.

— Não consigo falar com minha irmã e nem com Daniela, e não há pousada ou hotel com vagas disponíveis, aparentemente a cidade está cheia — ela fala antes mesmo que eu responda — não consegui te ligar porque estamos sem área. Posso entrar?

Pensa rápido, Eris, a Misha está lá em cima e você não quer arrumar problemas

Abro mais a porta e dou um passo para trás para que ela possa entrar.

— O que está fazendo aqui, Paloma?

— A gente pode conversar? — ela pergunta.

— Não é um bom momento para isso.

— Tem alguém aqui com você? — seus olhos de gato me atravessam.

Mas não preciso afirmar nada para que ela mesma se dê conta disso.

— Eu não sabia, me perdoe, eu vou embora — ela dá um passo para trás e seguro em seu braço — não deveria ter vindo, Eris.

— Mas veio e está chovendo, não vou deixar você sair assim nessa chuva, Paloma.

— Não precisa fazer isso.

Como estamos sem área, torço para que ao menos o wi-fi esteja funcionando e entro na conversa de quem não gostará nada do que vou pedir, mas que é a única opção que eu tenho.

No segundo toque ela me atende.



Notas:



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