ANTES QUE ELA VÁ EMBORA

CAPÍTULO 1. Carioca?

MISHA

Início de dezembro, cinco anos depois

Quando o segundo Sol chegar
Para realinhar as órbitas dos planetas
Derrubando com assombro exemplar
O que os astrônomos diriam se tratar
De um outro cometa

A melodia de O Segundo Sol na voz da Cássia Eller me chama a atenção enquanto vagueio pela calçada à procura de um bar. Acho que acabo de encontrar um. Há pessoas por todos os lados, naquelas mesas altas com tampos redondos, em bancos espalhados pelas laterais e especialmente em frente ao telão exposto para a rua. 

Com esse início de noite caótico, perdi o primeiro tempo do jogo que tanto queria assistir. Hoje é a final do Campeonato Mundial de Clubes e as meninas do meu time estão jogando contra um time da Inglaterra, que ironia, não? Me permito sentir um pouco a música antes de encarar o mar de gente que me aguarda. 

Eu amo a voz da Cássia. 

E eu amo fumar um cigarro escutando a voz da Cássia. Puxo a carteira de cigarros da bolsa e enquanto ergo um deles no ar percebo que esqueci meu isqueiro. Mas é claro que eu esqueci.

— Merda — me irrito momentaneamente.

Olho para ambos os lados com o cigarro entre os lábios até que alguém me aborda.

— Quer emprestado? — uma voz feminina soa ao meu lado.

Viro minha cabeça quase automaticamente. Sobrancelhas arqueadas, cabelo curtinho e caoticamente arrumado e jaqueta de couro preta.

Minha voz não saiu o que me fez balançar a cabeça em direção a ela. Ela estendeu o braço e me entregou um isqueiro preto.

Acendo meu cigarro e devolvo o objeto, mas ela o recusa.

— Pode ficar com ele — ela respondeu enquanto puxava um aparelho celular e atendia a chamada.

Continuo olhando em sua direção enquanto nossa distância aumenta, capturando os detalhes de sua jaqueta de couro preta. Abaixo o olhar para o meu suéter surrado e só consigo pensar que eu deveria ter escolhido uma roupa melhor para sair na noite de hoje. É até esquisito estar usando esse tipo de roupa em pleno dezembro mas esqueci que essa cidade tem todas as estações trocadas.

*

— Goze em dobro? — me engasgo com minha própria saliva ao ler “Goze em dobro” no título da carta de bebidas. Que nome é esse?

— Hoje estamos com a promoção de dose dupla de chopp — a morena que está me atendendo, sorriu ao responder.

— Curioso — pensei, mas falei alto demais.

— Carioca? — não pude evitar um um sorriso.

— O sotaque me entregou? — pergunto.

— O sotaque.

É sempre o sotaque. Dizem que carioca tem um jeitinho peculiar de falar, mas eu não faço ideia de que jeito seja esse, na minha cabeça eu não tenho sotaque algum.

— Vou querer um desses — aponto — por favor.

Balançou a cabeça em um tom afirmativo.

— Tem uma questão, nos dias de goze em dobro nós trazemos os dois juntos.

— Juntos? Não pode trazer um e depois… — Ela balançou a cabeça em negação. 

Claramente isso é uma estratégia de marketing, mas ok, não vou me estressar com isso. A mulher rapidamente vai para trás do balcão e eu me volto para a TV quando a adrenalina do pessoal sobe e uma jogadora do time adversário comete uma falta seríssima que claramente é

— PÊNALTI, ISSO É PÊNALTI — grito sem perceber, ficando em pé — FALTA NA GRANDE ÁREA É PÊNALTI.

— Ela não estava na grande área — uma voz responde ao meu lado, serena e calma, diferente de toda a energia caótica que está o bar. 

Pera aí, eu conheço essa voz… Agora não mais com a jaqueta preta. Um braço muito bem tatuado descansa em cima dela enquanto o outro está esticado sob o balcão, com seus dedos tamborilando na madeira. Ela me encara como um animal encara uma presa. Um olhar fixo e misterioso, feições muito bem marcadas e maxilar travado.

Faz tanto tempo que não sou encarada dessa forma que perco a noção de espaço e esqueço momentaneamente o que vim fazer aqui dentro.

— Não foi pênalti — ela completou, não tirando seus olhos de mim.

— Carioca? — a mulher que me atendia interrompeu meu transe e por um lapso de tempo esqueci que ainda não pedi minha bebida. 

Ao fundo podemos escutar os árbitros confirmando que, de fato, não foi penalidade máxima.

— É, não foi pênalti — engoli a seco a sensação familiar que essa mulher me causa e percebo que ela também está bebendo chopp.

Será que é muita falta de noção perguntar se ela quer dividir a promoção comigo? Já aceitei um isqueiro mesmo, que mal teria em dividir uma promoção? Olho ao redor para capturar algum indício que deixe claro que ela está acompanhada mas não encontro nenhum. 

— Você se importa de dividir a promoção comigo? — em um ímpeto de coragem eu pergunto sem pensar.

*

Mais alguns minutos se passam e outra falta cometida, mais alguns xingamentos meus aconteceram e o mar de gente foi ao delírio. Mas ela encara a TV com a cara fechada, bem, bem fechada.

— Puta merda, fizeram de novo — retruquei.

— Não fizeram não — desfoca da tela e me captura, subindo os olhos lentamente e parando bem na reta do meu olhar.

— Desculpa, mas você torce para qual time? — tentei ao máximo não me alterar.

A mulher me olhou arqueando uma sobrancelha sutilmente e esboçou um sorrisinho de lado que eu até acharia uma graça, uma graça não, eu acharia arrasador se ela não parecesse que…

— Não torço pro mesmo time que você, se quer saber — deu um gole intenso na bebida, sem perder o contato visual comigo.

Uma gota de cerveja saltou sutilmente da lateral de sua boca, mas rapidamente a secou com as costas da mão. Uma mão grande e com dois anéis de prata. Toda essa cena sem tirar os olhos de mim. Ela é sempre tão… intensa? Mas que porra estou falando?

Engoli a seco, limpei a garganta e voltei meu olhar para o meu caneco quase vazio.

— Então o que você está fazendo aqui? Está secando nosso time?

— Eu não veria por essa ótica — ela brincou. 

A mocinha que está nos atendendo sorriu enquanto passava por nós duas e elas trocaram um contato visual rápido e sutil mas o suficiente para que ela entendesse que a garota de cabelo curtinho precisa de mais um chopp.

— Qual ótica certa, então? — viro meu corpo em sua direção, rodando no banco alto e encaixando bem meus pés no vão do balcão. Um pequeno deslize meu, o estrago seria feito e nós não precisamos desse entretenimento.

Tem muito muito tempo que não me sinto tão afetada pelo olhar de uma mulher como estou sendo por este. Talvez a diferença de fuso horário ainda esteja mexendo comigo, a privação de sono ou esse chopp. Certeza que é o chopp dessa cidade maluca. Ela tenta falar mas o barulho no bar está totalmente alto.

Me aproximo dela quando ela faz o mesmo. Apoio meus dois cotovelos sob a bancada e inclino meu corpo em sua direção. Ela alcança meu ouvido e estamos tão próximas uma da outra que consigo sentir seu hálito quente em minha pele e o perfume que não consigo distinguir se é feminino ou masculino em uma mistura com o cheiro do seu shampoo.

— Eu gosto de futebol — disse em um tom baixo, quase sussurrado, totalmente diferente do caos sonoro que está o bar.

Quase esqueci o que estávamos conversando, só consigo pensar no tanto que ela é cheirosa. Muito cheirosa. Fecho os olhos instintivamente.

— E salvar mocinhas que precisam de isqueiros e orgasmos duplos — reiterou a resposta enquanto nossos rostos distanciavam-se um do outro. 

Ela volta a me encarar, mas seu olhar está focado em minha boca. Um olhar apenas para arrepiar minha pele por inteira. Mas, calma

— Quê? — ela acabou de falar o que eu acabei de escutar?

— A promoção, carioca — foi então que me lembrei da porra do nome da promoção — estamos dividindo a promoção de chopp de hoje.

— Pena que não sabe escolher time de futebol —  solto um sorriso aliviado mas rapidamente volto a encarar sua boca.

— Não sabe para qual eu torço — ela troca seu olhar para os meus olhos.

Sei disso porque fizemos ao mesmo tempo como se fosse ensaiado. O que faz com que eu tenha que encarar seus olhos amendoados levemente esverdeados.

— Não, eu não sei, mas não é o meu.

— Não, não é.

Somos surpreendidas pelo apito do árbitro. Fim de jogo. O bar vai ao delírio.

Nós ganhamos.

Nós fucking ganhamos a porra do Mundial. Meu cérebro bugou, nos levantamos em meio aos gritos do bar, eu abri um sorriso e fiz a coisa mais impensada nos últimos tempos: me joguei nos braços dela.

Mas eu não fazia ideia do que viria depois disso.



Notas:



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2 Respostas para CAPÍTULO 1. Carioca?

  1. Aiiii, surto com a ansiedade, mas tudo bem, vou treinar a paciência e aguardar o próximo… Quero +!

    • Acabei de subir mais capítulos no site, só estamos aguardando a revisão final.
      Te convido a descobrir que está narrando o prólogo.
      Te vejo no próximo capítulo!

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