Amores de Sofia

6. O JANTAR INESPERADO

No final da tarde de segunda feira, Marina decidiu enviar uma mensagem agradecendo à Sofia a companhia e a noite incrível, optou por não dizer mais nada, mesmo tendo adorado e estando apaixonada, começou a acreditar que não conseguiria mais nada além daquilo.

A resposta só veio no final da noite, também em forma de agradecimento e elogios sobre a companhia e a noite incrível, mas a mensagem não deixava nada nas entrelinhas, também não havia nenhuma possível abertura para um segundo encontro, pelo menos não agora.

A semana passou rápido, Sofia ficou presa resolvendo pendências do bar e do inventário da Tia, mas em vários momentos pensou em Marina e, na sexta, veria a possibilidade de um novo encontro, quem sabe.

Sexta, o AQUARELA abria para o almoço, o movimento foi bastante intenso, como sempre, mas Sofia estava ansiosa mesmo pela noite, sabia que a turma de amigos de sexta estaria ali para mais uma rodada de chopes, e, às 18h, os primeiros colegas de Marina ocuparam a mesa de sempre. Marina não veio na primeira leva, mas Sofia sabia que os horários eram diferentes, e os amigos só paravam de chegar às 21h.

Naquela noite, Marina não apareceu. Sofia ficou incomodada com a ausência de sua possível nova “amiga”, aquilo a irritou bastante e esse incômodo a assustou.

O fim de semana foi uma mesmice, Sofia estava meio perdida com aquele sumiço de Marina e não sabia se deveria mandar uma mensagem ou não. Ao acordar no domingo, ligou o celular e fez a chamada de vídeo para os pais como de costume.

Oto e Marta estavam à espera da ligação da filha e não se surpreenderam nada com a permanência dela na cama, desde pequena, a garotinha deles adorava dormir. Todas as vezes que podia permanecer mais na cama, Sofia fazia isso com gosto.

Naquele domingo, a filha de Oto e Marta parecia preocupada, os pais perguntaram o que estava havendo, mas Sofia desconversou e disse que era apenas saudade da tia e cansaço físico, já que o movimento no bar foi intenso. Há tempos, os pais de Sofia queriam que a filha contratasse um gerente para que ela não trabalhasse tanto, mas esse pedido nunca fora aceito. Se havia uma coisa da qual Sofia se orgulhava, era cuidar do Aquarela tão bem como sua tia.

A conversa continuou por mais 40 minutos, Oto reafirmou que queria a presença da filha no lançamento do CD da orquestra que iria acontecer em novembro, no período do feriado mais importante dos EUA, o dia de ação de graças. Sofia confirmou a presença, ainda faltavam em torno de dois meses para data e, até lá, ela daria um jeito de estar presente.

Ao finalizar a ligação, Sofia se levantou, tomou banho, lavou os cabelos como sempre fazia e tomou o café. Ligou a TV, não iria correr, não estava tão disposta assim, o movimento do bar tinha sido realmente muito intenso. Sentou-se à cama com o celular na mão e abriu o aplicativo de mensagens, percebeu que Marina havia utilizado a ferramenta há poucos minutos.

Estava muito incomodada com a ausência de Marina na sexta, permanecia com aquela sensação no estômago desde antes de ontem e não passava de jeito nenhum. Não sabia se o incômodo era pela ausência da Marina ou se era pelo sumiço e por ela não ter dado notícias, não que isso fosse obrigação, porém havia uma pequena esperança flamejante de que a gerente de TI da Pegasus pudesse justificar sua ausência de sexta, já que ela tinha deixado claro que havia um interesse.

Largou o celular e decidiu ver um filme. Depois de uma hora assistindo a alguma história, decidiu ligar para Carlão. Seu amigo fiel sabia que estava acontecendo algo, ontem, no sábado, perguntou a amiga várias vezes que nervosismo era aquele, e Sofia insistia em responder que era apenas cansaço.

Carlão prontamente atendeu, estava com Rodrigo e Maria no shopping, perguntou se podia encontrá-los e, ele disse sim. Com um short jeans, uma blusa preta de linho e sapatilha, Sofia pegou seu carro e foi encontrar aquela família que tanto amava.

Os três estavam num restaurante conhecido de franquia australiana, Sofia se sentia bem entre eles. Carlão notou o semblante preocupado da amiga que amava, Maria abraçou a madrinha prontamente, e Sofia correspondeu com um longo aperto que quase deixa a pequenina sem ar.

Devidamente sentados, a pequenina estava de posse de um tablet (que só era disponibilizado pelos pais aos domingos), Sofia desabafou com Carlão e Rodrigo. Falou do encontro, do bilhete, da carona, mostrou a troca de mensagens. Carlão entendeu tudo, assim como Rodrigo, que carregava um sorriso num canto do olho, mas preferiu não dizer muita coisa.

O almoço foi prazeroso, todos se fartaram e ainda pediram sobremesa, ao final, Carlão deu um pequeno conselho a sua adorada amiga: “Mande uma mensagem para ela e convide para um encontro mais tarde, um cinema quem sabe?!” Sofia ficou feliz com a naturalidade que Carlão e Rodrigo trataram do assunto, não ficaram surpresos com o possível interesse de Sofia por uma mulher, falaram apenas de amor e de como ele é lindo e deve ser vivido.

Todos se despediram, Sofia estava decidida a enviar uma mensagem para Marina quando chegasse em casa, quem sabe receberia um sim. Passou numa loja, comprou alguns chocolates que amava e uns biscoitos, a agonia que sentia passou, estava mais leve e, de certa forma, feliz com a possibilidade de vivenciar um novo possível encontro.

Aos domingos, o trânsito de São Paulo era menos intenso, ainda mais num final de semana prolongado, segunda era feriado, sete de setembro. Quando se deu conta disso, imaginou que talvez Marina não estivesse na cidade.

Sofia chegou em casa, guardou as compras no devido lugar e pegou o celular. Ao abrir o aplicativo de mensagens, percebeu que a última vista tinha sido por volta de meio-dia, era provável que Marina não visse a mensagem, mas, mesmo assim, decidiu mandar: “Oi, sou eu, Sofia, que tal um cinema hoje? Beijos.”.

Já era início da noite e Sofia estava largada na cama com o celular e um livro que ela não conseguiu ler, a resposta chegou. O horário não ajudou muito: “Oi, Sofia. Confesso que fiquei surpresa com a mensagem e feliz também, acredito que não vamos conseguir uma sessão hoje, mas podemos jantar, o que acha?”

Sofia ficou definitivamente feliz com a resposta, aceitou o convite para jantar, na verdade convidou Marina para jantar na sua casa, achou que seria mais amigável, disse que prepararia uma massa e que havia chocolates de sobremesa, Marina disse que levaria um vinho tinto para acompanhar, as duas se despediram.

O jantar ficou marcado para 21h, Sofia teria em média duas horas para se arrumar e preparar a massa, ou pelo menos deixá-la pré-pronta. Estava nervosa, mas feliz.

Marina foi pontual, a campainha tocou às 21:05, a porta foi prontamente aberta. Sofia ficou feliz e não conseguiu disfarçar, o que deixou Marina com uma leve esperança. Foi convidada a entrar.

O apartamento era em formato de loft, apenas algumas divisórias, moderno, com tons de madeira e uma estante que ia até o teto de livros, a maioria herdados da tia Ida. A cozinha era funcional e de muito bom gosto, uma compoteira repleta de chocolates estava sobre a bancada, o que fez Marina se sentir leve, estava interessada numa mulher que come de verdade. Ainda mais chocolates, chocolates com café então, seria maravilhoso, quiçá perfeito.

As duas trocaram dois beijinhos, Sofia abriu o vinho trazido por Marina. O vinho francês era uma delícia. Marina sentou de um lado do balcão, enquanto Sofia finalizava a massa para servir. A conversa com Marina fluía facilmente, Sofia gostava disso.

O jantar fluiu de forma natural, a conversa foi delicada e doce.

— A massa estava deliciosa, receita do bar?

— Não, receita da tia. Quando era adolescente fiz uma viagem gastronômica com minha tia, passamos um mês visitando San Sebastián, a capital do país Basco, minha tia queria fazer uma curadoria gastronômica, então, nada melhor do que visitar um local em que tinha vários restaurantes cinco estrelas Michelin.

— Uau! Que luxo! Então, herdar o bar para você não foi surpresa?

— Eu acho que vindo de uma família minúscula, minha tia não teria muitas opções mesmo, mas ela sempre dizia que tudo que era dela seria meu. Minha tia era uma mulher extraordinária, Marina, se você tivesse tido a oportunidade de conhecê-la talvez se interessasse por ela e não por mim. (Sofia riu encabulada.)

— Acredito que sua tia deva ser esse mulherão mesmo, mas acho que meu interesse não mudaria de direção, se é que você me entende. Como ela era?

— Linda! Chique, culta, interessante e lésbica!

— Não acredito? Sua tia era lésbica? Ela nunca casou?

— Minha tia era diferente, tinha uma alma linda e teve um grande amor que começou no ensino médio e se estendeu até a faculdade e eu acho que se estendeu até o leito de morte dela, ela nunca se recuperou da separação, do abandono amoroso e da covardia.

— O que houve? Se for muito doloroso para você falar sobre isso ou sobre ela, eu vou entender, podemos mudar de assunto se quiser.

— Não é doloroso é saudoso, mas podemos falar sobre ela sim, minha tia também iria adorar você.

Sofia levantou do sofá e foi pegar um álbum de fotos que tinha da família, queria que Marina visse como a tia era bonita. As fotos que ficavam nos portas retratos estavam guardadas e ainda não tinha sido retiradas dos armários, foi nesse momento que Sofia percebeu que seu apartamento estava quase vazio de fotos. Fez uma anotação mental de mudar o ambiente depois, estava na hora das lembranças imagéticas voltarem à tona. Pegou o álbum e sentou ao lado de Marina no sofá. As duas ficaram bem próximas, as pernas e os braços se tocaram, Marina adorou.

Dois minutos depois, Sofia perguntou se ela não aceitaria mais uma garrafa de vinho, já que amanhã seria feriado e, teoricamente, elas não trabalhariam.

— Claro que aceito! Foi a resposta de Marina.

Sofia levantou, colocou o álbum sobre o colo de Marina e foi em direção a pequena adega que tinha na cozinha. Fez uma anotação mental: “Não fique muito próxima a Marina.”

Sofia tinha um medo absurdo de sucumbir ao possível desejo que carregava, tudo era novo e as marcas do término do noivado com Rodrigo ainda estavam na sua pela e em seu coração. Não estava pronta. Pelo menos não da forma que Marina merecia e desejava.

A jovem empresária não sabia se era uma curiosidade ou um desejo verdadeiro, não queria brincar com o coração de Marina também, sabia que ela estava verdadeiramente interessada em si, e Sofia não tinha certeza se conseguiria corresponder da mesma forma.

Desanuviou os pensamentos retóricos amorosos e voltou em direção à sala, serviu Marina e sentou ao seu lado, tão próxima como estava anteriormente. Anotação mental riscada e não cumprida, foi o que pensou, ela tinha um cheiro tão bom, parecia cheiro de casa, de afago, era um cheiro delicioso, era o mesmo cheiro de domingo passado, quando elas se encontraram para a exposição. Era cheiro de amor, doce e que derretia no ar.

— Veja, essa era minha tia!

Marina olhou para a foto e viu uma mulher linda, muito bem vestida e com um sorriso largo, mas com olhos ligeiramente tristes. O chapéu Panamá estava na cabeça, os longos cabelos estavam soltos, os pés descalços e ela estava toda de branco. Ao seu lado, uma outra mulher que deveria ser a mãe de Sofia e na outra ponta a própria sobrinha. A foto parecia ser em uma praia. Marina teve uma sensação de já ter visto a imagem daquela mulher em algum canto, mas não lembrava onde, guardou a sensação e não contou nada a Sofia.

— Ela era linda, Sofia! Quando a foto foi tirada?

— Essa foto foi tirada no nosso último ano novo, estávamos numa casa em Malibu, perto da praia do jeito que minha tia gostava, logo depois, quando voltou para o Brasil, ela descobriu a doença. Éramos pouquíssimas pessoas comemorando a vida e a amizade, minha tia estava feliz.

— Mas os olhos parecem tristes.

— Pois é, sempre tive essa mesma impressão que você teve e eu nunca entendi o porquê, até a nossa viagem para San Sebastián. Foi lá que o Robson, primo da minha tia e da minha mãe, me contou um pouco sobre essa tristeza que não saía da minha tia. Ela se apaixonou no final do ensino médio por uma amiga de classe, foi correspondida, as duas entraram para a USP e resolveram dividir um apartamento. Naquela época, tudo ainda era muito complicado, o país estava saindo de um regime ditatorial, meus avós sempre souberam da orientação sexual da minha tia, assim como toda a família, meu primo Robson, que chamo de tio, também era gay, a família sempre apoiou os dois.

— Eu imagino como deve ter sido difícil para eles, mas ter o apoio da família é fundamental, seus avós são incríveis.

— Foi difícil sim, mas a família sempre foi muito unida. Bem, minha tia se mudou para esse apartamento perto da USP com a namorada, elas eram muito apaixonadas, mas o relacionamento não era aberto totalmente, a não ser para a nossa família. Um belo dia, o pai da namorada da minha tia resolveu fazer uma visita surpresa ao apartamento das duas e constatou o que estava na cara: as duas tinham um caso. Foi um escândalo, até na casa do meu avô ele foi, disse que a filha deles tinha corrompido a filha dele e que se minha tia não se afastasse dela, eles iriam processá-la.

— Mas pelo que me disse, elas já eram maiores de idade, o que aconteceu, então?

— A namorada da minha tia a largou, aceitou as ameaças da família, teve um casamento arranjado e foi embora para fora do país com o marido, aparentemente, não deu uma chance para o amor das duas. Minha tia nunca se recuperou totalmente, sei que ela teve relacionamentos rápidos com outras mulheres, mas acredito que tenha sido só sexo, já que nunca passava de um mês e ela raramente apresentava a família.

— O que aconteceu depois disso? Elas nunca mais voltaram a se falar?

— Até então, eu nunca tinha visto a tal mulher, nem uma foto sequer, mas na inauguração da galeria da minha tia, ela apareceu, as duas se viram, ela perguntou ao Robson sobre minha tia Ida, mas ele optou por não responder nada. Dias depois, a gente soube que ela foi até a galeria da minha tia para as duas conversarem, comprou três obras, conversaram, mas a gente nunca soube sobre o quê. Quando minha tia ficou doente, ela soube e insistiu várias vezes para falar com ela, minha tia Ida nunca quis atender uma ligação sequer.

— Minha nossa, que história! E eu que pensei que tinha sofrido por amor.

— Sei que ela vai frequentemente ao túmulo da minha tia, o rapaz que cuida do túmulo me disse da última vez que fui ao cemitério, perguntei a ele quem tinha deixado as flores, ele disse que era uma senhora muito bonita que vinha toda semana deixar flores novas. Nós nunca nos encontramos, mas sei que é ela.

— Nossa, que história! Eu sinto muito por tudo isso, não deve ter sido fácil para sua tia mesmo. Você nunca teve interesse em saber mais sobre essa mulher? Quem era ela, por que ela abandonou sua tia?

— Eu confesso que sinto um pouco de raiva dela, Marina. Sei que não tenho esse direito, que não sei da situação que elas vivenciaram, mas pela versão da história que o Robson me contou, ela deixou minha tia arrasada, tudo por um questão de aparência, eu não quero julgar, também não tenho interesse em saber mais sobre essa história, o que eu lamento verdadeiramente é o sofrimento da minha tia, porque um amor daqueles a gente não acha em qualquer esquina.

As duas conversaram mais um pouco, terminaram a segunda garrafa de vinho e Marina achou que estava na hora de ir embora. Há quase sete meses queria Sofia, mas a bela moça não parecia estar disposta a se arriscar num relacionamento lésbico, no fundo, parecia que ela só queria uma boa companhia para conversar, apenas uma amiga. O que não seria nada demais, contudo Marina não estava preparada para isso, já que estava apaixonada, quem sabe um dia.

Havia um certo ar de decepção no rosto de Sofia, não sabia o que fazer e nem o que estava sentindo, talvez um pouco de solidão, ou paixão. Saiu lentamente do espaço da sala para pegar a bolsa e o casaco de Marina, que já estava ao celular para pedir um carro.

Sofia entregou os pertences a Marina, na hora da despedida, não se conteve e a abraçou. Um abraço que demorou mais do que o normal, Sofia foi prontamente correspondida.

Marina decidiu que não iria tomar nenhuma iniciativa, mas quando viu o rosto de Sofia passando ao lado do seu, resolveu beijá-la. Não resistiu, raspou os lábios nos de Sofia e como não houve recuo, passou o braço possessivo pela cintura da empresária, colocou a mão por baixo dos cabelos e fez o que queria há tempos. Sofia derreteu, nos braços e na boca de Marina.

O beijo doce com gosto de vinho tinto, os lábios macios, a língua que nem pediu passagem e já fez o que queria, o tempo parou e demorou, ali, naquele exato momento de vida, era o melhor lugar do mundo.

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