“A arte existe, porque a vida não basta.” Foi com essa frase do poeta brasileiro Ferreira Gullar que Sofia vislumbrou como seria seu domingo. Sua tia Ida amava o poeta maranhense, como ela dizia mesmo: “Ferreira é um artista das palavras, veja, Sofia, ele escreve poemas neoconcretos, eles são uma obra de arte em que a matéria é a palavra e a vida, não é lindo?” Eram, tanto o poeta, quanto a obra, quanto a tia. Uma tríade poeta e amorosa numa manhã de domingo tão plácida quanto os relógios escorregadios surrealistas de Salvador Dali.
Ali deitada em meio aos lençóis, pensou no encontro que teria à noitinha, estava indo encontrar Marina como uma possível amiga, mas sabia que a intenção da gerente de TI era outra. Sentiu um arrepio e o famoso embrulho estomacal, aquela ideia simbólica para descrever a possibilidade de um amor nascer e uma paixão nortear as horas noturnas, tudo era possível, se o medo e o receio não fossem os donos daquele corpo e daquela cabeça naquele momento.
Os pensamentos audaciosos permitiram que Sofia ficasse um pouco mais de tempo na cama naquele dia, sua corrida matinal no Parque do Ibirapuera fora dispensada. Quando resolveu se levantar já era quase dez da manhã, olhou para o celular e tinham duas ligações de seu pai, verificou o horário, resolveu enviar uma mensagem de texto e disse que mais tarde retornaria.
Após a xícara de café forte e sem açúcar, olhou pelo canto de olho a esteira, achou que se corresse até perder o fôlego, acalmaria seu estômago infiel e perdido que teimava em ir contra a sua cabeça. Passou 55 minutos correndo, até perder o fôlego por completo.
Sofia estava sentindo uma ansiedade estranha, algo que a incomodava e ela não sabia exatamente o que era. Aquela situação que viveria mais tarde era completamente nova e se alguém lhe dissesse que haveria alguma possibilidade de ela aceitar o convite de uma mulher para sair, com certeza, isso seria motivo de riso, mas lá estava ela, agoniada – não por ter aceitado o convite e, muito menos, pela companhia –, mas pela estranha sensação que aquele momento estava lhe provocando.
Tomou um banho, vestiu um roupão de seda preto sem nada por baixo, os cabelos estavam molhados e devidamente lavados e muito cheirosos, Sofia pegou o telefone e ligou para os pais, como fazia religiosamente pelo menos de três a quatro vezes por semana.
Oto, pai de Sofia, era um maestro conceituado, extremamente apaixonado pela profissão e pela família. A mudança dos pais de Sofia ocorrera pelo convite que ele recebera para reger a filarmônica de Los Angeles, não tinha como dizer não. A filha única do casal passou um tempo com os pais e depois voltou para o Brasil para terminar a faculdade de Administração e foi morar com sua tia – Ida –, apesar de ser uma família pequena, Sofia considerava essas pessoas seu porto seguro, por isso os laços eram tão importantes e essenciais para que seu equilíbrio pessoal existisse.
A conversa durou cerca de uma hora, primeiro Sofia falou com seu pai, perguntou das novidades e ficou sabendo que ele lançaria um CD com a orquestra e que estava envolto com a finalização da produção, sua mãe reclamara que estava se sentindo sozinha e abandonada, aos risos Sofia sabia que era brincadeira, como professora universitária Marta também conseguia se manter ocupada, quando queria, os dois se amavam muito e conseguiam viver muito bem, muito do equilíbrio que Sofia tinha era reflexo da relação amorosa e harmônica dos pais, depois daquela dose familiar dominical, desligou o telefone e percebeu que estava faminta.
Ligou para o Carlão e perguntou se o churrasco estava de pé, ele sorridente confirmou e disse que Rodrigo já estava com boa parte das carnes na churrasqueira e que Maria já estava molhada na piscina à espera dos convidados.
Arrumou-se, passou numa padaria, comprou a sobremesa e um saco de confetes de chocolate para a pequena Maria, chegou à casa de Carlão pontualmente às duas da tarde com muita fome. A pequena, quando a viu, saiu correndo em disparada e pulou no seu colo. Maria tinha sido adotada por Carlão e Rodrigo há dois anos, os dois – como casal – conseguiram receber a garotinha depois de cinco anos de espera e Sofia se lembrava daquele dia como se fosse hoje.
Maria chegou à tarde na casa dos dois, tinha dois anos, era tímida e extremamente envergonhada, seus dois grandes pais pareciam duas pequenas crianças felizes, na certeza de que receberam o melhor presente de suas vidas.
Aquela família nada tradicional vivia imersa no amor, no respeito, no companheirismo, na luta diária para serem respeitados como instituição equilibrada e cidadã. Sofia era a madrinha de Maria, as duas se adoravam, ao ver o saco de confetes balançando na mão de sua Madrinha, Maria esticou o pequeno bracinho molhado e recebeu prontamente o saco de Sofia, a pequena tascou um beijo molhado no rosto da jovem mulher.
Com o saco de confete na mão, imediatamente a pequena olhou para seus pais pedindo autorização para abri-lo, Rodrigo esticou a mão sinalizando apenas cinco, a pequena entendera, sem mais delongas abriu o saco de forma cuidadosa, pegou os cinco confetes e saboreou um por um, fechou o saco e entregou ao seu pai, depois correu com suas boias cor-de-rosa e mergulhou novamente na piscina, arrancando sorrisos de todos.
Sofia se satisfez, adorava visitar Carlão, Rodrigo e Maria, a casa dos três era repleta de paz, era um reduto, na verdade, naquele domingo, também estavam presentes os pais de Carlão – que mimavam a pequena Maria de todas as formas – a irmã de Rodrigo – Ana – com seu marido Henrique e dois amigos de trabalho do Rodrigo, Jorge e Lucas. Carlão já dissera uma vez a Sofia que Jorge a achava muito bonita e que bastava a moça dar o sinal verde, que ele a convidaria para jantar.
Naquele momento, Sofia estava mais preocupada com o encontro que teria daqui a umas horas, riu para Carlão e disse: “Quem sabe um dia!”; satisfeito com a resposta da moça, meneou a cabeça para Jorge e ele compreendeu que não seria daquela vez que levaria Sofia para jantar.
Carlão preparou sanduíches de pernil para Sofia comer mais tarde, abraçou-a e disse que qualquer problema poderia ligar para ele. Sofia saiu da casa dos dois, renovada, mas quando seu deu conta, a ansiedade estava de volta.
Chegou à sua casa um pouco atrasada, foi tomar banho, secar o cabelo e se deu conta que já estava parada na porta do seu closet há pelo menos 25 minutos, sem saber o que vestir, pensou no evento, decidiu por um vestido preto básico e um salto médio, optou por amarrar uma echarpe na sua bolsa, caso sentisse frio e chamou um táxi.
Pontualmente, às 19 horas e cinco minutos, Sofia desceu do táxi e Marina já estava à sua espera, definitivamente, a gerente de TI era uma bela mulher, com um vestido grafite escuro e os cabelos devidamente presos num coque informal e uma jaqueta preta de pequenos paetês, Sofia sentiu um arrepio na espinha, nunca havia olhado para uma mulher como estava olhando para Marina naquele momento, envergonhada, abaixou os olhos e sorriu, Marina prontamente segurou seu cotovelo e a beijou no rosto de forma delicada e pouquíssimo demorada, uma demora tão sutil, mas que permitiu que Sofia sentisse seu cheiro e ele era delicioso.
Com os convites em mãos, Marina revelou que sua amiga há tempos produzia esculturas e tinha um grande sonho: uma exposição só sua. Depois de um grande colecionador adquirir uma peça e publicá-la, seu cacife como artista deu um grande salto, e essa exposição era a primeira prova disso.
Apenas um encantamento artístico e tudo mudou, a arte se transformou para as pessoas e para o público, pelo menos em relação àquela artista, prova disso era a enorme fila na entrada da galeria, os fotógrafos também se aglomeravam, os convites tinham se esgotado, isso chamou a atenção de Sofia.
— Quem é a artista, Marina? Quanta gente!
— Dulce Legfran, uma grande amiga de infância, nos conhecemos em Paris. Depois que terminou a academia de Belas Artes retornou ao Brasil para fazer arte, como ela mesma diz: “Arte Brasfran!”
— Arte Brasfran!? Eu nunca ouvi falar! Do que se trata exatamente?
— Bem, Cherie, segundo a própria artista, Arte Brasfran é uma mistura do Brasil com a França, do novo com o clássico, do antigo com o moderno, da malandragem com a elegância. E antes que me pergunte, ela inventou isso num bistrô parisiense depois de uma garrafa de champanhe e de ser iluminada com o próprio espírito de August Rodin, segunda ela mesma, é claro.
Sofia deu uma gargalhada gostosa, leve e Marina adorou, ficou olhando aquele rosto bonito, quase cru se não fosse pela maquiagem leve e os olhos bem pintados, ela tinha os olhos lindos, fortes, corajosos, foi isso que Marina pensou quando permaneceu com o olhar sobre Sofia a deixando envergonhada e um pouquinho vermelha.
— Então, quer dizer que a artista é sua amiga pessoal?
— Tão pessoal que ela diz que não valorizo a arte que ela produz, que não dou a ela a credibilidade necessária para ela colocar em prática todo o talento que Rodin lhe emprestou.
— Dulce tem alma de artista, Marina, acho que você não a compreende.
— Nem ela se compreende, Sofia, mas devo confessar que as esculturas estão lindas e ela tem talento sim, eu jamais convidaria você para um primeiro encontro e para uma exposição de uma artista sem talento.
— Primeiro encontro? Sofia parou e olhou para Marina quase paralisada.
— Espero que seja o primeiro de muitos, podemos ter vários outros encontros como amigas, podemos ter vários outros encontros como possíveis pessoas que estão interessadas uma na outra e podemos ter vários outros encontros como namoradas, tudo é uma questão de tempo, vamos deixar o tempo agir, sem atropelamentos, conjecturas, receios, vamos apenas andar com o tempo, que ele seja doce, leve, justo e amoroso conosco. Que ele possa bendizer nossas horas, nossos sonhos, nossa vida, a gente, tudo no seu tempo, vamos?
Marina abriu passagem para Sofia entrar. A galeria estava realmente cheia e as esculturas, pelo menos as primeiras, eram impactantes, chocantes, arte crua pura, Sofia não sabia se o espírito artístico do Rodin tinha mesmo aparecido para Dulce, mas ela, definitivamente, tinha talento, muito talento.
Quase chorou ao ver uma obra no canto esquerdo “Tempo Celestial”, um anjo negro de asa quebrada que lutava para chegar ao céu, lembrou na mesma hora da tia, Ida teria amado a obra e a teria pego para si na mesma hora.
Dulce estava numa pequena roda de repórteres, notadamente feliz, ficou entre aquelas pessoas por uns dez minutos, depois foi em direção à Marina e abraçou a amiga, estava tão feliz que nem percebeu que Sofia a acompanhava.
Depois de alguns instantes, Sofia foi devidamente apresentada como uma nova amiga, as duas se abraçaram, e Dulce agradeceu a presença, despediu-se e mergulhou nos braços do público que estava ávido pela nova artista cool brasileira.
Sofia adorou as peças produzidas por Dulce, queria o Anjo Celestial para si, mas tudo estava lotado, havia uma certa confusão, disse a Marina a intenção de adquirir a obra e ela falou com a agente de Dulce e que era gerente da galeria, mas, a princípio, a obra já estava reservada.
Depois de uma hora no local, Marina começou a perceber que a lotação estava atrapalhando seu encontro. Sofia encontrou alguns conhecidos da família, e Marina dois amigos do escritório, que também gostavam bastante de arte e viveram em Paris, assim como ela.
As duas decidiram ir embora e saíram de fininho, sem se despedir de Dulce, que estava rodeada de pessoas dando os parabéns pela exposição.
Marina estendeu o convite para um jantar, mas Sofia não aceitou, estava cansada e ainda muito confusa, mesmo tendo sido apresentada como uma amiga, sabia que as intenções de Marina eram outras, e ela continuava com aquele sentimento que começou quando levantou da cama mais cedo.
Numa outra tentativa, estendeu o convite para um café rápido, já que havia um local bem próximo, Sofia acabou aceitando e as duas caminharam sob a luz da lua cheia. Nessa altura, Sofia já estava envolta à echarpe, de braços cruzados, o cabelo solto, charmosa que doía, caminhou ao lado de Marina levemente, ouvindo a “amiga” falar sobre como Dulce lutara para chegar até ali.
As duas ocuparam uma mesa de canto e conversaram um pouco mais. A conversa fluía facilmente entre elas e somente de vez em quando Sofia se lembrava da ansiedade que sentia, olhar aquela mulher atraente e inteligente, imaginar que ela estava interessada de alguma forma em algo mais que amizade, não estava parecendo tão assustador.
O tempo passou e o café iria fechar, chegou a hora da despedida. Marina estava em dúvida ainda, sabia que Sofia era heterossexual e que nunca sequer imaginara em manter um relacionamento com uma mulher, era um tiro na escuridão, foram seis meses para tomar coragem e enviar aquele bendito bilhete e finalmente Sofia estava ali na sua frente, ela não tinha nada a perder, até mesmo porque ela não tinha nada, apenas um encontro numa sala de arte, rodeada de inúmeras pessoas barulhentas e um café, foram apenas três horas, Sofia valia a pena, então ela ofereceu uma carona, mesmo sabendo que poderia parecer invasiva demais, não conseguiu se segurar.
Foram uns 20 segundos de silêncio que mais pareceram uma hora, então o Ok saiu da boca de Sofia, Marina riu internamente, mas conseguiu segurar a felicidade externamente, afinal, não queria parecer tão fácil.
Entraram no carro e Nina Simone começou a cantar imediatamente, Sofia ficou muda, não disse absolutamente nada a viagem toda, com o pensamento fixo naquela situação e a música de sua cantora preferida tocando, achou que estava no limbo, não sabia direito se era o paraíso ou o inferno.
O trajeto foi silencioso, Marina preferiu não ser invasiva, mais do que já tinha sido, as vozes que ecoavam dentro do carro saíam do som e vez ou outra das indicações do caminho de casa que Sofia sinalizava para Marina.
Depois de 23 minutos, o HRV de Marina parou na entrada do prédio de Sofia em Higienópolis e pensou como moravam perto, como estavam próximas geograficamente, mas, naquele momento, havia uma distância imperiosa, que não se sabia exatamente o porquê.
— Está entregue, senhorita Sofia! Espero que tenha gostado.
— Eu adorei nossa pequena noite artística, nosso pequeno domingo artístico, você é uma excelente companhia. Dulce é maravilhosa, amanhã mesmo vou ligar para a galeria na vã tentativa de conseguir meu anjo. Muito obrigada, Marina. Eu estava precisando dessa saída, das gentilezas, da arte, do sorriso e do olhar que você me deu.
— Sofia, você é uma mulher incrível, nem nos conhecemos direito ainda, mal sabemos da vida de uma da outra, mas eu queria deixar claro que estamos nos conhecendo e que você não me deve nada e eu não devo nada a você, pelo menos por enquanto, vamos fazer isso de uma forma mais leve, mais tranquila.
Sofia se despediu de Marina docemente, a abraçou e demorou no abraço, sentiu o coração acelerado e o cheiro da gerente de novo, adorou de novo. Agradeceu a noite, foi educada, mas saiu do carro confusa, com as pernas formigando e a cabeça a mil.
Lembrou do seu primeiro pensamento ao abrir os olhos pela manhã, a frase de Ferreira Gullar: “A arte existe, porque a vida não basta.” Sofia parecia uma pintura em meio ao caótico turbilhão de sentimentos que estava sentindo. Talvez, Marina existisse, porque sozinha Sofia não bastava.
Deitou na cama e suspirou, novos caminhos foram descortinados, bastava agora ter a coragem de percorrer a estrada, de preferência, acompanhada.