Amores de Sofia

23. UMA VISITA INESPERADA

Quando José Leopoldo entrou na sala, sabia o que já seria e sobre o que sua filha queria conversar, tentou amenizar um pouco com uma recepção amorosa, mas preocupada. Marina estava terminando seu café, estava em pé de frente para o janelão de vidro, observando o ir e vir dos pequenos carros.

– Por que você não senta, filha?

– No momento, eu prefiro ficar de pé mesmo, pai.

– Tudo bem, a que devo a honra da sua presença aqui, porque eu sei que deve ser alguma coisa muito importante ou muito séria para você ter vindo até aqui.

– Eu conversei com a mamãe e com o Dom e acho que precisamos conversar também. Eu quero ouvir a sua versão.

José Leopoldo sabia que dia menos dia esse momento iria chegar, tinha contas a pagar, pecados a serem expostos, não foi um bom homem, estava tentando se redimir, se é que havia remissão para o que foi feito.

– Gostaria que você se sentasse, já que quer minha versão, ela será longa.

Marina sentou-se do outro lado da mesa do pai, de frente para ele, José Leopoldo sempre se mostrou um pai pouco afetivo, trabalhou muito e ainda trabalha, deu tudo aos filhos, tudo de material, mas o afeto, era parco e, por vezes, inexistente.

Eu era filho único do seu avô, como você já sabe disso, mas não sou hoje, mas isso depois eu explico. Seus avôs tinham condutas questionáveis, Marina, durante a Ditadura Militar, as nossas famílias fizeram muito dinheiro, além do já tínhamos. Eu já conhecia sua mãe do curso de Direito da USP, eu era um revoltado, um pervertido, como seu avô me chamava, e um covarde também, porque aceitei tudo o que me foi proposto.

Na época da faculdade, conheci a Susana, ela era uma ativista ambiental, meio hippie, vivia nas manifestações a favor do meio ambiente, quando o golpe surgiu, Susana entrou para o Partido Comunista, ela ficava captando jovens estudantes para ir às passeatas, às manifestações, e, numa dessas captações, resolvi ir, depois que corremos da polícia, fomos numa festa, ou numa reunião, e lá eu conheci um cara que tinha sido solto, mas antes havia sido torturado, ele descreveu tudo que acontecia no DOPS, eu fiquei transtornado, depois desse dia, me envolvi de forma anônima em algumas ações contra a polícia e o sistema. Um desses envolvimentos foi uma tentativa de assalto a um carro forte, mas acabei preso, assim como Susana. Eu passei a noite numa cela, ninguém tocou em mim, mas eu ouvi os gritos, ouvi o desespero, na manhã seguinte, fui levado para uma salinha que tinha um espelho falso, dentro de uma outra sala, estava Susana, muito machucada, seu avô entrou em seguida e disse que meu destino era aquele mesmo, só não estava lá na mesma sala, porque ele havia recebido uma proposta interessante de um velho amigo. Ele me fez a proposta ali mesmo, na sala da delegacia, ou sei lá onde estávamos. Eu aceitei com uma condição: que Susana fosse solta e ele a tirasse do país. Ele voltou 15 minutos depois com a autorização de soltura, a data do voo e a liberação dela. Eu nunca forcei sua mãe a nada, Marina, nós éramos dois infelizes, mas, no meu caso, eu acabei me apaixonando por ela, diferente dela, que nunca sequer cogitou gostar de mim e hoje eu entendo. Se você me perguntar se me arrependi, eu vou dizer que não, mas eu cometi erros graves, porque, quando sua mãe me contou toda a verdade, era para eu tê-la ajudado, mas fiz o contrário, eu não queria perder mais um amor. Quando meu sogro ficou doente e o Brasil estava numa democracia concretizada, ela conseguiu se livrar de mim, mas já era tarde demais. Eu, todos os dias, tento fazer alguma coisa para apagar esses anos que impedi sua mãe de ser feliz, estou tentando me reaproximar dos meus filhos, da minha neta, eu quero que vocês sejam felizes, que lutem pelo amor de vocês, estou fazendo terapia, tentando me redimir de algum malfeito, às vezes, é muito difícil, me fechei para tudo, agora que estou tentando retomar a vida.”

– Mamãe sabe dessa história?

– Somente o Dom, acredito que foi por isso a reaproximação, esse voto de confiança que me foi dado.

– Por que nunca contou a ela, pai?

– Nada do que eu disser ou fizer trará Ida de volta ou permitirá que sua mãe tenha uma nova chance com ela, acho que é um tipo de punição.

– Está todo mundo se punindo, pai, está tudo errado, eu acho que você deve conversar com a mamãe, é importante que ela ouça sua versão, onde está a Susana?

– Depois daquela manhã, eu esperei a soltura dela na porta da delegacia, quando ela me viu, não quis olhar para a minha cara, depois eu descobri que meu pai tinha contado toda a história para ela, uma que não condizia com a verdade, ele disse que eu que havia entregado os planos do assalto para a polícia, por isso, que todos foram presos. Nós tínhamos um amigo em comum que sabia como pai era, eu contei tudo para ele e implorei para ele fazer Susana entra naquele avião. Até onde eu soube, ela exilou-se em Londres, depois nunca mais a vi, também não a procurei mais.

– Pai, sua vida e a da mamãe está cheia de pontas soltas, cheia de dores, no caso da mamãe, sabemos que a Ida morreu, o senhor tem ferramentas para procurar por ela, porque não vai atrás, pode ser um novo recomeço.

– Eu tenho medo, Marina, também estou cansado, ainda falta conversar com seus irmãos, eu vou para Paris no final do mês e vou fazer isso, mas antes preciso ter uma conversa com sua mãe.

– Eu estou namorando, pai.

– Eu sei, eu a conheci no churrasco do Dom, ela é muito bonita, minha filha, eu torço para que vocês sejam muito felizes.

– Ela é sobrinha da Ida, a mamãe contou toda a história para ela, somente depois disso, ela pareceu baixar a guarda.

– Que bom que sua mãe resolveu falar com ela, essas coisas precisam ser ditas, ainda mais quando a felicidade de um filho está em jogo, eu fico feliz por vocês duas.

– Pai, eu sinto muito por tudo isso que aconteceu, eu realmente lamento, mas está na hora desse sofrimento acabar, do passado ser enterrado, nem você, nem a mamãe podem carregar essa sujeira nas costas, é preciso deixar ir, eu tenho certeza de que o senhor pode achar a Susana, por que não tenta?

– Quem sabe meu terapeuta me ajude, eu tenho vergonha, minha filha, além do mais, ainda amo a sua mãe, eu quero me reorganizar como ser humano primeiro, quem sabe um dia. Eu quero dizer que amo você, que tenho orgulho da mulher incrível que você se tornou, da sua coragem, você me lembra muito a sua mãe, numa versão um pouco menor, mas é seu charme, sua garota tem muita sorte de ter encontrado você.

Os dois se abraçaram, Marina teve um dia difícil, estava com um sentimento no peito pouco nobre, pena, pena de seu pai e de sua mãe, e carregava um ódio, que, infelizmente, não daria em nada, já que os avôs tinham falecido, resolveu caminhar, mandou mensagem para o escritório dizendo que não iria mais naquele dia, apenas amanhã.

Caminhou durante um bom tempo, estava sem carro, havia bebido, resolveu parar num café português e ali ficou pensando na vida, viu as notificações do celular e percebeu que Sofia havia mandado mensagem, resolveu ligar.

– Oi, meu bem, como você está?

– Estou triste, confusa, com raiva, com pena, mas precisamos conversar também, nós duas, hoje você não vai ao Aquarela né isso? Posso passar aí mais tarde?

– Por que você não me diz onde está, posso pegar você, você já almoçou?

– Não se preocupe com isso, Sofia, tudo que menos tenho agora é fome, mais tarde eu passo aí no seu apartamento, eu vou passar na empresa para assinar uns papéis, depois vou em casa tomar um banho e encontro você por volta das 18, tudo bem?

Sofia sentiu uma distância na voz de Marina e isso a preocupou, preferiu não insistir e disse que estava esperando sua namorada em casa na hora que ela quisesse aparecer, depois disso, disse que estava com saudades e desligou.

Flora estava terminando um rosbife, uma salada e um arroz branco puxado no alho e no azeite, uma comida simples, mas saborosa, Simone deveria chegar a qualquer fora, afinal já se passava das 13h, enquanto a visita não chegava, lia mais uma vez a minuta do contrato que havia redigido para conferir se os termos estavam justos.

Com meia hora de atraso, a campainha toca, era Simone, linda, cheirosa e com a sobremesa.

– Desculpe o atraso, mas tinha fila para comprar esse “manjar dos deuses” e que Bené não me escute, porque senão, estou lascada.

– E o que seria esse manjar dos deuses, porque estou até constrangida com o almoço simples que preparei.

– Ah, esse é um bolo pudim, o segundo melhor bolo que você vai comer na vida.

– Você conseguiu resolver seu negócio com o fornecedor da feira?

– Consegui sim, tudo saiu como o planejado, como sempre. E você, como foi a conversa com a Marina?

– Melhor do que eu esperava, Dom veio também para me dar um apoio, mas, nessa hora, minha filha deve estar conversando com o pai sobre tudo que eu disse. Agora é esperar, minha parte está feita, pelo menos nesse primeiro momento.

O almoço transcorreu muito bem, Flora cozinhava carne como ninguém, Simone adorou e, quando estavam na sobremesa, o interfone do apartamento tocou anunciando uma pessoa que deixou Flora pálida, mas a subida foi autorizada.

– Ele está aqui, Simone, está subindo.

– Ele? Seria quem?

– Meu ex-marido, José Leopoldo.

– Você quer que eu o coloque para correr?

Flora saiu do transe e sorriu um pouco

– Acho que está na hora de todos os pingos nos “is” serem colocados, você fica, por favor.

– Eu fico.

A campainha tocou e Flora foi até a porta abri-la, ele estava lá, impecável como sempre, mas o olhar estava diferente.

– Desculpe, Flora, desculpe a invasão, mas nós precisamos conversar, posso entrar?

– Como vai, Leopoldo? Pensei que todas as nossas conversas já estivessem ocorrido, mas essa deve ser importante e precisamos aclarar algumas coisas, pode entrar.

Leopoldo ficou surpreso, quando viu Simone sentada à mesa, parou sem saber o que fazer.

– Desculpe, Flora, não sabia que estava com visitas, eu posso voltar em um outro momento.

– Essa é Simone, minha sócia, Simone, este é Leopoldo, meu ex-marido.

– Sócia?

– Simone, quer criar cavalos de raça na fazenda dela e do irmão, estou em busca de um lar para meus cavalos e juntamos o útil ao agradável, pode sentar.

José Leopoldo estendeu a mão para Simone que retribuiu em forma de educação, mas a empresária resolveu que não seria educado permanecer ali, era uma conversa entre os dois que não lhe cabia, perguntou se poderia esperar no escritório, tinha alguns e-mails para responder e Flora entendeu, pediu licença e se retirou para o local que a advogada havia indicado.

– Você deseja beber alguma coisa?

– Um café, sem açúcar, por favor.

Depois do café servido, Flora sentou-se à mesa e esperou que o ex-marido começasse a desfiar o conto de arrependimento, mas a conversa iniciou-se de uma outra maneira, com uma narrativa que Flora nunca havia sequer imaginado ouvir.

José Leopoldo contou absolutamente tudo, nos mínimos detalhes, como a proposta chegou até ele, falou sobre Susana, como passou a ajudar com o dinheiro da família depois que foi para Paris, até chegar ao pedido oficial de desculpas.

– Para além de tudo isso, não quero aqui dizer que não tenho culpa, porque, quando você me contou tudo, o mínimo que eu poderia ter feito era ter libertado você, mas eu me apaixonei, eu achei que você poderia, em algum momento, olhar para mim e ver que, apesar de toda essa sujeira, eu era um bom homem, enfim, eu estou aqui para pedir desculpas, perdão, para dizer que eu sinto muito, não é muito, mas é o que eu posso fazer.

– O Dom sabe dessa história?

– O Dom sabe e, agora, Marina, também.

– Por que não me contou tudo isso antes?

– Para que, Flora, as coisas já estavam feitas, eu já tinha perdido tanto, você nem se fala, nós dois fomos vítimas, mas depois eu também fui algoz.

– Leopoldo, infelizmente, o tempo não volta mais, perdemos todos, não vou dizer aqui quem perdeu mais ou menos, porque cada um sabe a dor que carrega, nós fomos vítimas, nossos filhos, de certa forma, também foram, está na hora de seguirmos com as nossas vidas, com a nossa tentativa de vida, eu estou tentando, ainda estou machucada, durante décadas deixei escapar o amor, mesmo sabendo onde ele estava, quando fui buscá-lo, ele não estava mais lá, é hora de seguir em frente, obrigada por ter compartilhado, converse com nossos filhos, precisamos também tirar esse peso de nós.

– Eu sei, obrigado por ter me ouvido, você como sempre está muito bem, eu realmente espero que seja feliz, que consiga ser feliz, eu vou indo, tenho viagem marcada para Paris no final do mês, se precisar de alguma coisa em relação aos cavalos estou à disposição.

– Obrigada, boa sorte.

Flora foi em direção ao escritório e viu Simone numa conversa no celular, aparentemente, um problema, foi até ela e disse que ele já havia ido embora, Simone desligou e retornaram para a sala, a história foi toda repetida, mas Simone não se compadeceu muito, depois desse desabafo perguntou sobre a minuta, não queria focar aquele encontro no ex de Flora.

– Eu fiz um contrato enxuto e justo, se você tiver alguma dúvida pode levá-lo a um outro advogado, mas tentei ser o mais claro possível em relação às cláusulas que compete a cada uma de nós duas.

Simone leu o contrato com atenção, tirou algumas dúvidas sobre as instalações e assinou o contrato, aquela assinatura lhe traria problemas, provavelmente, mas para além e qualquer coisa, era uma excelente mulher de negócios, e aquele negocia seria ambas para as duas, mas, em relação a elas, não saberia precisar.

– Eu devo ir à França em novembro para começar a agilizar a transferência, sei que a feira é no começo do mês, mas essa ida seria no final do mês, você irá comigo?

– Isso é um convite?

– Nós acabamos de assinar um contrato, Simone, gastaremos um bom dinheiro, como mulher de negócios que eu sei que é, achei que gostaria de ir ver o produto o qual você irá depositar seu rico dinheiro.

Flora estava áspera, Simone entendeu.

– Compreendi, caso não seja possível eu ir, designo uma pessoa para ir no meu lugar, mas agora eu preciso ir, tenho um problema para resolver, obrigada pelo almoço, estava delicioso.

Flora percebeu que não deveria ter feito o que fez, que havia sido indelicada e se apressou.

– Simone, me desculpe, não tive a intenção de ser deselegante, ainda estou processando tudo, memórias vieram à mente, mil desculpas.

– Sua vida não é uma memória, Flora, sua vida é agora, enquanto você não se livrar das memórias não vai viver, eu realmente preciso ir, obrigada pelo almoço, você pode abrir a porta, por favor!?

Flora abriu a porta para Simone sair, estava desolada, mas preferiu não insistir.

– Me desculpe mais uma vez, vou providenciar os restantes dos papéis para as assinaturas, obrigada pela confiança.

– Claro, pode providenciar que eu assino, meu sobrinho está na cidade, se quiser enviar por ele até sexta, eu agradeço.

– Tudo bem, vou providenciar tudo.

E um abismo gigantesco se fez entre as duas, depois que aquela porta foi fechada, Flora estava arrependida, confusa, tinha sido um dia cheio, mas Simone não tinha culpa de nada, pelo contrário, fora com Simone que havia tido os melhores dias dos últimos anos, ficou com aquilo na cabeça e sem saber o que fazer resolveu arrumar a casa.

Marina chegou em casa com o coração apertado, já passava das cinco da tarde, resolveu toma rum banho, o efeito da champanhe já tinha passado, iria dirigindo encontrar Sofia.

Vestiu-se com uma calça jeans, uma blusa preta de botão e um mocassim francês caro, muito caro, e saiu.

Às 18: 27 a campainha tocou e Sofia abriu prontamente, lá estava ela, limpa, cheirosa e estilosa, Marina foi abraçada por Sofia e não negou o abraço, correspondeu, mas entrou no apartamento e disse uma coisa que fez as costas de Sofia se arrepiarem.

– Nós precisamos conversar, Sofia!



Notas:



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4 Respostas para 23. UMA VISITA INESPERADA

  1. Oi meninas, esse comentário é apenas para fazer uma correção do título do capítulo, na hora de colar o novo ficou o título do capítulo 21, mas o título deste capítulo é:

    CAP. 24 RETORNO AO PASSADO.
    Boa leitura.
    O próximo será enviado ainda hoje.

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