POR ÐIANA ŘOCCO
Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina
>>> XXXVI <<<
Os dias seguintes foram mais calmos e abrangentes. Meu período de recolhimento diminuiu e minha nova rotina se iniciava com o nascer do sol. Nessa nova fase, o desjejum era na cozinha junto de todas as mulheres da casa. Todas vestíamos uma túnica branca com avental, mesmo a senhora que normalmente trajava negro. Após a primeira refeição do dia, nos revezávamos na arrumação e limpeza da pequena casa e inicio dos preparativos do almoço, tarefa que eu nunca conseguia completar pois, todos os dias, por volta das dez da manhã, Alexandra surgia pela porta dos fundos e me levava para o terreiro das iniciações.
Havia ainda o vestígio da fogueira da última festa e passar por ela me fazia sorrir. Lembrava minha mãe dançando alegre em seu vestido branco. Parecia tão jovem e tão feliz, que a mera lembrança me enchia de vontade de viver. Saíamos da Casa das Almas e andávamos em uma linha reta para chegarmos a um pequeno portão de madeira, que dava acesso à horta e ao pomar.
Sempre dois passos atrás, eu aguardava que minha instrutora abrisse o portão e me fizesse sinal para passar. A pequena cerca que separava o terreiro da horta ficava espremida entre ramos de uma fila de macieiras, que preparavam o ambiente assombreado em que passaríamos a tarde conversando. Eram os dias finais de minha preparação, o momento de receber instruções particulares que fugiam das tarefas femininas rotineiras. A cada mulher era atribuído um dom particular, normalmente transmitido de mãe para filha. Eu compartilhava com minha mãe os mesmos dons de Alex, e por isso minha instrução especial ficara a cargo dela. Passávamos aquelas horas da manhã em lições de herbalismo: para que servia cada planta, qual parte era utilizada, como devia ser preparada, como era colhida, como era cultivada. Tudo muito complicado para ser aprendido assim, num só repente, como Alexandra me transmitia. Eu me concentrava e dava meu melhor, abria minha mente para que o conhecimento penetrasse, rezava pelo milagre de reter todas aquelas informações que, segundo Alexandra, serviriam não só para mim, mas para todos os que estivessem por perto.
— Trabalhar com cura é sério demais. Tem certeza de que isso é para mim?
— Tempos atrás, talvez eu não conseguisse lhe responder com sinceridade, Aléssia. Mas agora que a conheço melhor, posso garantir que poucas pessoas são tão merecedoras desse dom quanto você. Cura vai muito além de vencer uma doença ou aliviar uma dor. É um processo de desenvolvimento integral e, o simples fato de você me fazer essa pergunta, mostra quão apta você está. Duvide sempre de alguém que se sinta confortável com seu papel de curandeiro. Esse dom não é uma benção, está bem mais para um fardo. Um préstimo que fazemos à comunidade e a todos os seres vivos. É um ato de doação que poucos – sejam curandeiros ou curados – são capazes de compreender. E você já percebeu a grandeza envolvida em tudo isso. Com o tempo e a experiência, você será uma grande benção para seu povo, Alê.
— Fico um pouco mais tranquila sabendo que confia em minha capacidade, mas não vou mentir e dizer que isso aumenta minha confiança em mim mesma, porque não é verdade.
Alex me olhou sorrindo e eu seria capaz de dizer que havia um tanto de admiração, quiçá adoração, naquele seu sorriso.
— Você está aprendendo as coisas de forma fragmentada, isso dá a ilusão de que é complicado, difícil. Na verdade não é, mas você só entenderá em breve, quando tiver aprendido a dominar seus instintos de tal maneira que não necessitará lembrar qual erva cura o que – no momento da necessidade, você simplesmente saberá o que precisa usar. Saberá, de forma absolutamente intuitiva, sem necessitar pensar em nada. Mas até chegarmos lá é preciso que seja formalmente apresentada a cada planta, cada erva, cada procedimento correto de preparo e tudo o mais que estamos vendo nesses dias. Confie em mim e em sua alma, Aléssia, e eu lhe prometo que até o fim de sua iniciação todo o mistério estará esclarecido.
— Posso lhe perguntar uma coisa meio estúpida, Alex?
Ela riu e me olhou com muito carinho.
— Nenhuma pergunta é estúpida, ainda mais quando vem de você que é sempre tão pertinente em suas colocações. Pergunte o que quer saber, responderei se estiver a meu alcance.
Enrubesci timidamente antes mesmo de começar a falar. Sentia-me estupidamente infantil, vinha evitando essas perguntas desde minha chegada a Líath. Agora, com o ambiente mais amistoso, sabia que não havia nada de errado em dar vazão a esses sentimentos que, antes, poderiam ser considerados sinal de fraqueza.
— Minha mãe se orgulharia de mim, se me conhecesse?
A pergunta foi tão simples e sincera que emocionou Alexandra. Seus olhos marejaram e ela acariciou de leve meu rosto, depois aproximou-se de minha pele como se fosse me agraciar com um beijo, mas parou em algum meio caminho entre eu e ela, segurou meu queixo para que eu a olhasse diretamente nos olhos e respondeu com voz cortada pela emoção.
— Esteja sua mãe onde estiver, tenho certeza que olha por você, a conhece, e se orgulha demais da filha que tem.
Abaixei levemente os olhos, encabulada. Havia muita coisa que queria lhe perguntar, mas por alguma estúpida razão eu me sentia como uma criança de não mais que cinco anos de idade. Alexandra continuou me olhando muito de perto, e seus olhos tinham tanto carinho quanto admiração. Então, antes que eu pudesse articular qualquer outra pergunta, completou o que estava dizendo:
— Você é uma pessoa muito especial, Aléssia. Qualquer um que tenha o privilégio de desfrutar de sua amizade deveria se sentir honrado. Eu me orgulho muito de ter o mesmo sangue que você, e tenho certeza de que Maura não poderia ter uma representante melhor nesse mundo do que você, que se parece tanto com ela, não só no aspecto, mas principalmente no coração. Graças a tudo o que há de mais sagrado nesse mundo, seu pai não conseguiu corromper a semente brilhante que Maura lhe deu por herança.
Controlei o choro com dificuldade. Nada poderia me tocar nada mais do que aquele testemunho de que eu e minha mãe compartilhávamos algo. Pois que era ela meu ideal de vida, a pessoa que eu gostaria de ser.
— Como ela era, Alex? Fale-me um pouco de minha mãe. A única pessoa que me falava dela, e mesmo assim raramente, era meu pai. Os criados, quando eu perguntava, suspiravam, diziam que ela era maravilhosa, e mudavam de assunto. Quando você se apresentou e me disse que a conheceu, morri de inveja e desejei, com todas as minhas forças, ter sido você e não eu mesma. Divida comigo o que sabe… preciso tanto me sentir mais próxima dela!
Os dedos de Alex escorregaram de meu queixo, acariciaram meu pescoço e sustentaram minha cabeça pela nuca. Tive a sensação de enxergar desejo em seus olhos, enquanto sua boca se aproximava da minha a ponto de quase lhe adivinhar o sabor. Uma coisa feito susto ou medo, não sei ao certo, disparou meu coração. Ou talvez fosse, no fundo, um desejo que eu não ousava reconhecer. Cheguei a entreabrir meus lábios, mas Alexandra apenas encostou sua testa na minha e em seguida me puxou para um abraço emocionado.
— Ah, céus, como explicar quão extraordinária Maura era? É inacreditável que tenha morrido tão jovem! E não há como negar, que boa parte do ódio que sinto por seu pai é formado pelo desejo de vingar a morte de minha tia. Eu a amava com fervor. Ao lado de minha mãe, foi a pessoa mais importante em minha vida. Foi quem me formou, me ensinou a ser quem sou. E entendo perfeitamente quando me pergunta se sua mãe se orgulharia de você, pois eu me faço essa pergunta todos os dias: se Maura estivesse aqui, se orgulharia de quem sou?
Afastou-se de mim e, sem pudor algum, exibiu os olhos molhados, uma lágrima ainda descendo em sua face esquerda:
— Mas por sorte, para pessoas como nós, Maura e tantos outros que atravessaram o umbral da morte, não estão tão distantes assim…
— Pessoas como nós? Fala como se fossemos diferentes….
— Ah, Alê, todo mundo é diferente, cada um a seu modo, não é? Algumas pessoas dançam, outras cantam. Há os que curam e há até mesmo os que matam. Cada ser chega a essa terra com talentos próprios. Podemos dizer que isso determina categorias de pessoas. Você, eu, Maura e muitas outras pessoas compartilhamos alguns dons exóticos e, se por um lado isso nos traz dores e responsabilidades maiores, por outro nos abençoa com uma maneira diferente de compreender a vida… e a morte.
Alex se levantou e andou apressada para a horta. Retomamos nossas lições de ervas sem novas distrações. Mas depois desse dia Alexandra incluiu comentários sobre minha mãe em tudo aquilo que me ensinava. Coisas como “foi sua mãe que desenvolveu esse unguento” ou “ Maura detestava esse chá”, se tornaram normais e foram, pouco a pouco, dando novas cores ao retrato interno de minha mãe.
O nonagésimo dia na Casa das Almas foi diferente de todos os outros. Na noite anterior ofereceram-me uma pequena quantia da beberagem de iniciação e deixaram-me no quarto, tendo o cuidado de vedar a janela para que não houvesse nenhuma fresta de luz. Permaneci no escuro total até perder minhas referências. Depois de algumas horas sentia-me em meu cativeiro, nos primeiros dias em Líath, e essa sensação começou a crescer a tal ponto que eu já não era mais capaz de dizer se estava, o tempo todo, em cativeiro – e tudo o que vivera era apenas fruto de minha imaginação – ou se estava mesmo em um quarto de iniciação em um lugar chamado Casa das Almas.
Mas havia uma sutil diferença agora, algo que eu não conseguia associar com minhas memórias do cativeiro: um estado de relaxamento completo que me permitia observar meus pensamentos e emoções de maneira objetiva, como se fossem objetos fora de mim. Agarrei-me a essa consciência como se fosse minha tábua de salvação e, através dela, repassei a limpo todas as minhas experiências nessa cidade. Tanto as experiências físicas quanto as metafísicas, aquelas acontecidas em sonhos, visões ou mesmo nas iniciações. Sob essa ótica revi meus primeiros encontros com Alex, meu desentendimento com Breno, minha decisão de ir embora, meus dias de iniciação. Ainda sob essa ótica analisei meus encontros com a Pedra e, em particular, o último, onde a ganância do espírito da Pedra se mostrou por inteiro. E partindo desse fio condutor, aproveitando minha consciência alterada, regressei lentamente aos meus dias de infância revivendo minha vida de trás para frente, desde o dia em que me juntei ao Exército Real, meu insulto à Amaryllis e a disputa de espada com meu pai, a descoberta do romance de meu pai com Matilde, e depois os tempos fáceis em que vivia minhas ilusões de futura Rainha de um reino onde todos eram tão felizes quanto eu mesma. As lembranças se tornavam lentamente mais e mais antigas a ponto de ser capaz de rememorar o rosto de minha mãe sorrindo enquanto me alimentava, além da sensação ímpar de seu abraço.
A última lembrança, no entanto, era apenas um som. Um grito…
— Minha mãe!
Uma luz bruxuleante interrompeu meu curso. A voz de Alex me chamou e eu retornei ao quarto ainda sobre o impacto daquela lembrança. Por que minha mãe estaria gritando?
Mas as mulheres entravam no quarto em formação, Alexandra dos Olhos Cinzentos à frente segurando uma vela, nossa única fonte de luz. As mulheres rodearam-me e a mais velha de todas me puxou pela mão. Juntas caminhamos em formação até o terreiro, Alex ao fim da fila dupla que eu e minha acompanhante formávamos.
Pela primeira vez a fogueira não estava acesa. Ainda assim tomei sua direção, mas minha rota foi alterada pela senhora que me acompanhava. Andamos para a esquerda do terreno e nos sentamos em círculo, a oeste da fogueira. Alexandra colocou no centro a vela que segurava e sentou-se à minha frente. Percebi três vultos saindo da casa. Num primeiro instante achei que fosse miragem, depois enxerguei nitidamente três jovens que, em túnicas brancas semelhantes à nossa, traziam um pequeno caldeirão. A beberagem.
Colocaram-na ao lado de Alex e uma das moças lhe estendeu uma cuia. Com a vasilha em suas mãos Alexandra ordenou a outra jovem que servisse a bebida, em seguida tomou um longo gole e passou a vasilha. Esta também sorveu um longo gole e entregou a vasilha para a companheira à sua esquerda e assim sucessivamente. Ao chegar minha vez a cuia, em minha mão, pareceu refletir um olhar. Por pouco não olho por cima de meus ombros, tão forte foi a sensação de que a beberagem me mostrava o reflexo de algo que acontecia às minhas costas. Ao invés de olhar, entretanto, tomei um gole da bebida espessa, amarronzada, com gosto de lama. Depois entreguei à companheira sentada a minha esquerda e, ao completar o gesto, olhei de soslaio por cima de meu ombro. Não havia ninguém.
A cuia completou seu percurso e as jovens sentaram-se em um pequeno círculo à parte do nosso.
— Estão aqui para nos cuidar enquanto desfrutamos de nosso sono de conhecimento – disse-me Alex.
As outras senhoras também começaram conversas paralelas. Eu sorri para minha prima, lamentando que estivéssemos tão distantes, pois gostaria de aproveitar aquele momento para lhe perguntar coisas. Como ela continuasse me olhando, enquanto todas as outras se entretinham em conversas banais, achei que deveria falar alguma coisa.
— É difícil ter cabelo longo nesse calor – falei por fim, enquanto segurava os cabelos para arejar um pouco as costas.
— Já pode cortá-los, se quiser.
— Não entendi bem essa formalidade de não cortar os cabelos… achei que fossem explicar isso durante a iniciação, mas agora tudo parece ter acabado e eu continuo não entendendo.
Alexandra abriu um riso largo e ficou me olhando com curiosidade por alguns instantes.
— Você é uma pessoa interessante. Não tem medo de perguntar, isso é bom.
— Se não perguntar nunca vou saber, não é?
— Infelizmente isso não é óbvio para todo mundo. Mas vamos à sua pergunta. No período de iniciação nos entregamos completamente à nossa natureza. Deixamos de lado o exterior e nos concentramos em nosso mundo interno. Reencontramos nossos caminhos junto à Terra e trocamos ensinamentos femininos, os assuntos sobre a terra e que sempre pertenceram às mulheres. Não cortar o cabelo é uma maneira simbólica de dizer que estamos nos entregando de corpo e alma a esse novo momento. No seu caso particular, que usa os cabelos curtos, é também um sacrifício de entrega, e uma abertura para novas maneiras de ser. Tanto isso é verdade que você me fez essa pergunta. A maioria das mulheres que passa por aqui nem se dá conta dessa proibição, pois raramente cortam os cabelos.
— Você também se sentiu assim quando fez sua iniciação?
— Minha iniciação foi bastante diferente da sua — respondeu Alex com uma aparência subitamente triste. — Mas, de qualquer maneira, naquela época eu usava os cabelos longos, como qualquer jovem de minha idade.
— Longos? Achei que sempre tivesse usado os cabelos assim, bem curtos.
Ela fez um longo silêncio antes de responder. Tinha o semblante carregado. Achei que tinha dito algo que não devia.
— Raspei minha cabeça quando Lorna morreu. Nunca recebemos o corpo, mas mesmo assim fiz um pequeno túmulo e enterrei meus cabelos em uma urna, com a promessa de que eles jamais cresceriam. Lorna adorava meus cachos negros. Dizia que a pior coisa que poderia lhe acontecer era ver outro homem tocando meus cabelos.
???
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