Aléssia

Capítulo XXXIII

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXXIII <<<

— Desde que cheguei aqui, Alex, aprendi a admirá-la. E não pense que é fácil pra mim admitir isso, pois já havia aprendido a odiá-la. Vendo-a através dos olhos de meu pai, você era uma ameaça, a pessoa que pretendia destruir minha família e se apossar de nosso reino. Nunca pensei que um dia poderia olhá-la de frente sem desejar sacar minha espada para por fim à sua vida. Entretanto isso aconteceu. E é, provavelmente, o maior progresso de que sou capaz.
Enrolada em um xale colorido, sentada em uma poltrona próxima à janela da cozinha, por onde a luz fria da manhã de inverno rompia o escuro de nossa casa, Alex me olhava sem dizer nenhuma palavra. Esperava, meio ansiosa, que eu completasse meu raciocínio.
— Creio que não sou capaz de ir além, Alex. Sei o quanto deposita em mim sua confiança e esperança e sinto-me honrada. Mas não sou quem você espera.
Deu um longo gole no chá de melissa e depois me olhou preocupada. Não parecia surpresa nem disposta a me repreender, mas era visível que esperava mais.
— Poderia ao menos nos ajudar, Aléssia? Treinar nossos homens? Orientar-nos com tática militar?
— Tática militar? Quer alguém melhor do que Mestre Renan para fazer isso?
— Renan é maravilhoso, sem dúvida. Mas, segundo ele, você tem o raciocínio ainda mais rápido e astuto. Gostaria muito de poder contar com seu auxílio.
O que Alex me pedia era difícil: auxiliá-la a derrotar meu pai. Que diferença existe entre empunhar a espada ou ensinar quem a empunha?
Mas minha fama como excelente espadachim havia se espalhado pelo vilarejo. Tudo porque, apesar da antipatia recíproca que Breno e eu cultivávamos, durante uma semana compareci ao campo de treino, atendendo a um pedido especial de Alexandra. Os treinos, entretanto, se resumiram a disputas pessoais entre Breno e eu, disputas que eu vencia com facilidade, dando aos soldados razão para espalhar comentários. E acirrar as antipatias de Breno por mim.
Foi com essa desculpa que abandonei os treinos. E agora Alexandra tentava me convencer a voltar. Meus planos, no entanto, eram outros.
— Nutro por você profunda simpatia, Alexandra. Não sei quais serão nossos destinos mas, independente de qualquer coisa, gostaria de poder contar com sua amizade. Ainda que eu a decepcione e não atenda seu pedido.
Num tom calmo e educado Alexandra me ofereceu mais chá e eu, educadamente, recusei. Então ela se serviu de mais uma xícara e depois degustou a bebida devagar. Mas seus olhos semicerrados me diziam que por trás daquela calma e educação havia um furacão de pensamentos buscando uma saída para seu dilema. Já devia estar claro para ela minha intenção e, provavelmente, seus pensamentos agora se concentravam em como me impedir.
— A recíproca é verdadeira, Princesa. Que nossa amizade seja eterna e abençoada pelo Céu e pela Terra.
Ergueu a xícara em um brinde a que respondi com uma saudação de cabeça. Com a amizade formalmente selada, eu me sentia mais aliviada para lhe confessar meus planos.
— Talvez você esteja certa, Alex. Talvez seja meu destino encerrar essa disputa milenar. Talvez esteja em meu poder oferecer paz e justiça a um povo que só recebeu maus tratos. Ou talvez não. Talvez meu destino seja renunciar a meu nome, abrir mão de minhas heranças de sangue, e desbravar a vida com meus próprios braços. Mas seja como for, uma coisa é certa: preciso conhecer esse reino, preciso conhecer essa gente da qual sempre estive apartada, preciso conhecer a vida real e não essa vida ilusória que me deram como presente.
Alexandra suspirou profundamente antes de pousar a xícara na mesa e olhar diretamente nos meus olhos, suas íris cinzentas um pouco mais nubladas do que o normal, como um dia de tormenta, como se uma grande tristeza pairasse nos céus.
— E quando pretende partir?
Agora foi minha vez de suspirar. Relaxei um pouco os músculos, o momento mais difícil já tinha passado.
— Tão logo tenha provisões suficientes para chegar à Luzerna.
— Por que não Forte Velho?
— Porque quero ser totalmente desconhecida na cidade. É minha segurança. Por mais que confie em Amaryllis, acho difícil impedir que comentários da minha presença se espalhem por lá.
Alexandra acenou a cabeça em sinal positivo.
— Gostaria de poder impedir isso, Aléssia, mas sei que não posso. Vou lhe ajudar com as provisões, mas gostaria de pedir que permanecesse um pouco mais aqui em Líath. Preciso lhe transmitir alguns ensinamentos de nossa família. Ensinamentos que, em momentos de dificuldade, farão a diferença entre vida e morte.
Minha experiência com ensinamentos de família não era das melhores. Mas conhecer intimamente o mundo que pertencia à minha mãe era um convite tentador. E eu aceitei.
No dia seguinte acompanhei Alexandra à casa de oração e cura que, na verdade, chamava-se Casa das Almas, e era composta basicamente por um grande quarto com muitas camas, um quarto menor com uma única cama e uma ampla cozinha com um caldeirão quase ao centro. As mulheres do dia anterior não estavam presentes. Alex me explicou com cuidado a função de cada espaço da casa, falou das festas e cerimônias que ali eram oficiadas, mostrou com detalhes os utensílios da cozinha e falou de suas funções genéricas.
— Seu pai lhe privou da cultura de sua mãe, de tudo aquilo que vem da terra e nos nutre e cura. É esse ensinamento, que deveria lhe ter sido transmitido desde a infância, que quero passar agora, na forma de iniciação na Casa das Almas. Se você quiser, é claro.
— No que implica essa iniciação?
— Será preciso se recolher no Quarto do Silêncio, enquanto nossas anciãs lhe ensinam. Você aprenderá artes e segredos do universo feminino, coisas que as mulheres passam de mães para filhas. Mas aprenderá isso de uma forma mais profunda que a usual, pois aprenderá não apenas os conhecimentos femininos mundanos, como também os mágicos e sagrados.
— E o que lhes dou em troca?
— Nada! Não é uma troca! Você é uma de nós, Aléssia, tem o direito a aprender a antiga sabedoria do Clã O’Líath.
— Minha mãe conhecia esses… segredos…?
— Sua mãe era nossa principal mestra curandeira. Na verdade, ela ocupava o cargo que agora me pertence. Sim, ela conhecia esses segredos e muito mais. E as sabedorias ocultas que ela cultivava, lhe serão ensinadas num momento oportuno, se você aceitar receber o ensinamento básico, que é o que estou lhe propondo agora.
Recolhimento e silêncio era frustrante para quem já sonhava com a estrada. Mas conhecer os segredos de minha mãe…
Recebi ordens de me lavar e usar um vestido branco de algodão e sem ornamentos. Depois disso, devia passar o dia em silêncio no Quarto de Recolhimento até que, no poente, as anciãs viessem me buscar para receber meus primeiros ensinamentos. Foi apenas o primeiro dos noventa dias de aprendizado. Recolhida em silêncio durante o dia, recebendo ensinamentos por toda a noite. Banho quando me davam, nenhum corte de cabelo, de roupa apenas os vestidos da iniciação. Ao fim do vigésimo nono dia ganhei uma sandália de couro, desenho simples, mas com bela correia trançada na panturrilha. Meu cabelo além dos ombros pela primeira vez na vida, meu corpo mais leve, meus músculos relaxados, meus sonhos livres de pesadelos. Um mundo de descobertas em outras possibilidades de ser eu mesma.
No trigésimo dia pela manhã eu olhava na tina de água meu rosto refletido, os cabelos soltos cobrindo parte de minha feição. Na noite anterior algumas senhoras, comparecendo pela primeira vez ao meu círculo iniciatório, se emocionaram — algumas até mesmo choraram — ao me verem entrar, tal a semelhança com minha mãe. E agora, olhando o reflexo na tina, era por Maura que eu procurava desesperadamente. O rosto que eu via, em muito diferente daquele que eu me habituara a chamar de meu, seria mesmo tão parecido com o dela?
Um sorriso de esperança enfeitou minha expressão. Talvez Maura sobrevivesse mesmo em mim, como muitas me diziam. E na sombra desse pensamento, um eto de reconhecimento alterou o curso de minhas ideais: não era tanto pelo cabelo grande que eu estava diferente. O que me dava nova feição, o que me fazia realmente parecida com minha mãe, era eu estar agora muito mais serena, muito mais feliz!
Mergulhei o rosto na água saboreando algo novo, uma Aléssia que eu jamais suspeitaria existir. Provavelmente a Aléssia que eu seria, se minha mãe tivesse tido tempo de me ensinar a viver.
Mas fui educada por meu pai e ganhei até nos músculos seus modos duros. Agora, no resguardo da Casa das Almas, nas lições das Anciãs de Líath, de alguma maneira era Maura que renascia em mim, e eu reencontrava em meu corpo uma leveza e doçura que, sabia, eram dela.
Como nos demais fins de tarde, a mais velha das senhoras de Líath entrou no quarto, despiu minha túnica de descanso, lavou meu corpo e me envolveu em um vestido limpo. Hoje, no entanto, além dos tratos comuns, ornou meu cabelo com uma grinalda de flores e me calçou com a sandália, trançando-a delicadamente em minha perna. Depois me conduziu para fora do quarto até a ampla cozinha onde um pequeno grupo de senhoras, todas de branco e em pé, me aguardava. Serviram-me um preparado à base de tantas ervas que, apenas pelo paladar, não fui capaz de distinguir quais eram. Organizaram-se em pares numa fila que precedia minha presença e assim, nessa formação, entramos no terreiro que havia no fundo da casa. Era a Primeira Cerimônia Iniciatória.
A primeira coisa que vi, ao pisar o umbral da porta, foi a grande fogueira no centro do terreno. Em torno dela algumas silhuetas, formando um semicírculo. Eu andava sozinha no fim da fila dupla e, quando a primeira dupla de mulheres chegou ao limite do círculo em torno da fogueira, elas se separaram, uma seguindo para a direita e a outra para a esquerda. E assim sucessivamente, até que as mulheres que me escoltavam completassem a roda e eu, ao chegar ao limite, fechasse completamente o círculo. Exatamente à minha frente, do outro lado do fogo, estava Alexandra dos Olhos Cinzentos, a única de nós com cabelos curtos. Vestia uma capa branca com detalhes dourados, seus olhos cinzentos mirando-me com serenidade, mas muito sérios. Então, como se obedecessem a um comando invisível, as senhoras começaram a cantar uma canção com ritmo marcado por palmas, seus corpos dançando alegremente, numa cantiga que era de gratidão e recebimento. Apenas Alexandra e eu permanecíamos mudas e paradas, os olhos de uma pregados nos da outra, como se o que acontecia em volta não nos dissesse respeito completamente. Ou como se o que acontecia dentro de nós fosse ainda maior do que a cerimônia, que abria para mim os portais de um novo mundo.
As mulheres cantando e dançando à minha volta eram imagens esmaecidas, quase irreais, se comparadas àquela magnética Alexandra da qual eu não conseguia desviar o olhar. Entre ela e eu, labaredas de fogo ondulavam criando cenas que eu não sabia se pertenciam apenas à minha imaginação ou se eram o sinal de algo marcado em meu destino. Mas ali, na dança do fogo, Alex me envolvia em seus braços e, corpos unidos, dançávamos uma canção que era só nossa. À medida em que a imagem se tornava nítida para mim, a fogueira, as senhoras e mesmo Alexandra deixavam de existir. Mas logo em seguida os olhos de Alex ganharam uma realidade profunda e era no reflexo de suas pupilas que eu nos via dançar. Então Alexandra dos Olhos Cinzentos se tornou novamente nítida para mim, suas pupilas refletindo o beijo que nossas imagens trocavam, imagem essa que desapareceu gradativamente deixando-me apenas Alex, sua expressão serena e ao mesmo tempo tão séria, olhando-me. Eu já vira aquela expressão antes. Eu já olhara com aquela expressão antes. Agora, depois da Dança das Labaredas, eu tinha a coragem necessária para nomear o que enxergava nos olhos de Alexandra. Minha anfitriã, minha prima, olhava-me com indisfarçável paixão.
A esse pensamento o fogo se agitou com fúria, labaredas subindo muito alto, madeira estalando com angústia. Então minhas mãos foram seguras, uma de cada lado, meu corpo foi puxado para a esquerda e comecei a girar, primeiro devagar, mas a cada giro os passos tornavam-se mais rápidos. Alexandra sempre à minha frente sem desviar seus olhos, sem perder o compasso.
A música, a dança, o fogo, os olhos de Alex. Tudo começou a me parecer absurdo. Como se nunca tivesse existido. Ou como se não fosse possível provar sua existência. Os risos se multiplicavam a minha volta, como se todas aquelas senhoras estivessem muito felizes com minha presença. Mas de alegres os risos se transformaram em maníacos, ganharam volume, forma, textura, sobrepujaram a música, as vozes, o canto, a dança, o fogo e mesmo os olhos de Alex, antes tão nítidos, tão totalmente em mim, tremeluziram entre as labaredas e sumiram. Fiquei sozinha com aquele riso histérico, que eu não sabia de onde vinha, e que me causava medo. Muito medo. Os risos se multiplicaram à minha volta, depois rodopiaram, concentraram-se, fundiram-se em um único riso maldito. Meu corpo sacudia descontrolado, parecia-me que rolava no chão, embora ainda pudesse afirmar que estava em pé, parada no centro do terreiro, de frente para o fogo, de frente para os olhos de Alex. Os olhos de Alex… onde eles estavam?
Um espasmo forte subiu a partir do ventre dobrando meu corpo e, agora sim, sem dúvida, eu sentia meus músculos tremendo, o corpo se debatendo descontrolado pelo chão, a boca escancarada emitindo sons estridentes, agoniados, agonizantes. O riso histérico que, descontrolado como o vômito, escapava de meus lábios escancarados. Era meu o riso que me assustava, era eu que ria como alucinada.
Controle-se Aléssia, controle-se! Ordenei a mim mesma em pavorosa agonia.
— Somos as senhoras de todas as loucuras, as guardiãs das alucinações que ensandecem os homens. É nosso o poder de libertar os demônios, nossa a força de trancafiá-los. Somos as guias que controlam os umbrais de todas as emoções, as que sabem cavalgar sentimentos e que, à margem de todas as convenções, conhecem a vida selvagem que há nos corações humanos. São das mulheres as delícias e os segredos mais antigos do mundo. Somos Deusas, somos Sagradas e por isso tantas vezes somos maltratadas, subjugadas, possuídas à força, como se ao tomarem nossos corpos pudessem se apropriar de nossa força e segredo. Mas não podem. Somos nós que giramos a Roda da Vida. Somos o Mistério da Criação.



Notas:



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7 Respostas para Capítulo XXXIII

  1. Capítulo maravilhoso autora! Adoro ler coisas sobre religião, seja ela qual for.
    Olha, não fui muito com a cara dessa Alex não. Por favor, não deixe rolar romance não, please!!! Que fique só como boas primas mesmo. Gostei até da moça que ajudou no banho da Aléssia, agora essa Alex, agrrr

    • “Adoro ler coisas sobre religião, seja ela qual for” >>> ? eu também! No livro esse tema será mais aprofundado, tenho certeza de que você vai curtir.
      Quanto à Alex, anotei aqui o seu voto contra o romance. Mas devo dizer que você está indo contra a corrente: a maioria das leitoras não só gosta de Alex como queria ter uma pra chamar de sua rssss
      Gratidão pelos comentários, é muito bom ver você aqui no LW acompanhando minha história ?

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