POR ÐIANA ŘOCCO
Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina
>>> XXVI <<<
Sob a mesma luz dourada poente, regressei à Floresta Escura, agora entrando pelo lado oposto, observando a incidência da luz por outro ângulo. A diferença é que agora a Floresta não mais me assustava. Arrisquei passar a trote com Amora pela trilha serpentina e, para minha felicidade, conseguimos nos aproximar do Lago Espelhado antes que a escuridão total chegasse.
Escuridão total, aliás, parecia um termo que não se aplicava àquele caminho, pois por todo o tempo a luz se manteve constante e idêntica à que aproveitamos na de ida para Forte Velho.
Acendi uma fogueira pequena, assei as postas de peixe restantes, dando-me ao luxo de comer com um pouco mais de fartura. Cuidei de Amora, para que estivesse confortável e descansasse. Depois adicionei lenha à fogueira para que fosse vibrante, de maneira a manter qualquer fera afastada. Então recostei em uma arvore, numa posição em que descansasse as costas e as pernas, mas sem encontrar tanto conforto que acabasse resvalando para o sono.
A tarde foi caindo tão devagar que eu tinha a sensação de conseguir acompanhar a mudança individual em cada raio de luz. O cansaço chegou a seu ponto extremo quando a escuridão tinha apenas começado. Aquela seria a mais longa noite de minha vida, e eu estava ciente disso. Sem nada para fazer além de vigiar os barulhos da Floresta, sem nenhuma companhia ou distração, estava totalmente entregue a mim mesma.
A noite tem ruídos que, se a alma não está quieta, a gente mal percebe. Meus fantasmas desfilaram à minha frente por um tempo que pareceu eterno, mas como aquela noite era mesmo longa, até eles cansaram, sentaram no mato, recolheram-se ao anonimato. E só então, sem lembranças nem pesadelos, descobri o que é estar sozinha. E plena.
Quando tudo sumiu apenas minha respiração permaneceu. A agradável sensação de ir e vir, receber e liberar. As muitas nuances de aroma que eu nunca tinha percebido. Porque para perceber é preciso estar presente. Não, não presente no lugar: presente na pele e nos alvéolos dos pulmões. E era exatamente ali que eu estava. Tão dentro de mim que não sabia se o escuro era meu ou da mata. Mas tanto faz, era um escuro confortável, acolhedor, apaziguador. Um escuro de velas apagadas para poder descansar, se refazer.
O som do ar passando pelas narinas trouxe música à Floresta e, onde havia apenas silêncio, nasceu o som do tambor, a batida rítmica de meu coração. De olhos fechados dancei em mim mesma em torno de uma fogueira nascida de meu fogo interno. E era tão harmônico meu movimento, tão perfeita minha entrega, que cada músculo reencontrou seu lugar e sua aptidão, e pela primeira vez desde que caí no inferno, meu corpo encontrou descanso.
Aos poucos, no entanto, serenou a dança, depois a música e, enfim, a respiração. E onde havia respiração e batida cardíaca não havia mais nada do que atenção, vigília, concentração. Meus ouvidos focaram o que era fora e, sem cansaço ou tédio, vigiei.
O brilho e o calor do fogo, seu resplandecente crepitar, quebravam a monotonia do negro, mantinham a alma acesa e o corpo seguro. Eternamente.
Então, como uma mudança sabida, mas não esperada, gotas de luz caíram aqui e ali e, com a lentidão da eternidade, aos poucos tudo estava banhado de luz. Levantei pela primeira vez em horas, espreguicei lentamente meu corpo, amarrei Amora para que estivesse segura e fui ao lago.
A manhã lá fora estava ensolarada, aqui a luz descia em cascatas brancas e verdes entre árvores muito altas e chegava ao lago fresca, renovada. Estiquei braços e pernas expulsando demônios e cansaço, e então comecei o ritual com o qual secretamente sonhava há dias. Desafivelei meu cinto, retirei a brunia, depois tirei a cota de malha e, por fim, a camisa longa que protegia minha pele. Desamarrei a faixa que protegia e ocultava meus seios, alonguei meus braços como se fosse abraçar o lago, ergui meu rosto ao sol, abençoei o vento, regozijei-me com meu corpo nu e livre. Respirei com narinas, pulmões e pele a brisa fresca e aromática, depois caminhei lentamente e deixei a água lamber meus pés. A sensação de paz e relaxamento tomou conta do corpo e, passo a passo, fui permitindo ao lago banhar meu corpo.
De olhos fechados, saboreava a sensação única da água paulatinamente invadindo o ser. Quando a linha fria alcançou meu sexo, o corpo inteiro arrepiou e eu me senti viva novamente. Fiquei por alguns instantes vivenciando essa sensação e depois me joguei na água. Fui ao fundo do lago, exatamente como desejei fazer no dia em que cheguei ali pela primeira vez.
Meus seios livres, minha pele fresca, meu sexo úmido. Agradeci aos Deuses e me aprofundei na sensação única de ser mulher, de ser novamente inteira e tão somente eu mesma. Retirei do corpo as impurezas de tantos dias presa na cota de malha e relaxei os músculos no prazer de nadar. Depois descansei boiando na água, placidamente usufruindo do ritmo na superfície do lago, enquanto meu corpo era banhado pela luz que se derramava entre as folhas das árvores.
Estava quase adormecendo, quando um ruído leve e seco, como o de um galho se quebrando, chamou minha atenção. Abri os olhos e movi lentamente meu rosto. À minha frente, na margem do lago, lá estava ele, o lobo dos meus sonhos, um olho azul celeste o outro cinza de nuvem. Senti o sangue congelar nas veias, mas antes que tivesse qualquer reação, o animal correu entre as árvores.
Lembrei de Amora desprotegida no acampamento e voltei à margem, corri nua até me certificar de que minha égua estava bem. Então retornei apressada ao lago, pedras e galhos machucando meus pés no trajeto de ida e volta, recolhi minhas coisas e, apenas na segurança do acampamento, vesti novamente minhas roupas. Dessa vez, no entanto, não coloquei a cota de malha. Fiquei só com o camisão e a brunia, sentindo-me inexplicavelmente bela e livre.
Assustada com o lobo, cortei galhos e com eles improvisei um cercado para Amora, estrategicamente colocado entre árvores e tendo o fogo como barreira no espaço menos protegido pelas plantas. Em seguida organizei uma pequena plataforma em uma árvore e ali descansei enquanto a noite não caia.
Cinco noites vigiei do alto daquela árvore, o olhar especialmente atento em Amora. Passava todo o tempo agarrada à espada, o pequeno punhal preso em minha cintura. Quando o amanhecer surgia, preparava minha refeição que agora, além de peixe, continha ervas, frutas e pequenos animais que caçava nas redondezas. Então ia ao lago e nadava por alguns minutos, depois me secava ao lado da fogueira e me alimentava mais um pouco. Voltava para a plataforma e dormia por três ou quatro horas. O resto do dia eu me exercitava com a espada e realizava meditações para fortalecer meu espírito e mente. Mais do que isso: aproveitava esses momentos para sonhar o reino da forma como eu acreditava que deveria ser. Recriava em minha mente toda a estrutura, pessoas felizes, aldeias prósperas, governo justo, exército fraterno ao povo. Reservava, ainda, algum tempo para encontrar uma saída para minha situação. Não tinha pressa, no entanto. Sentia-me em paz na Floresta e, a cada novo dia, estava mais adaptada àquele estilo de vida.
Na manhã do sexto dia, peguei no sono com facilidade, após comer um pequeno coelho que assei na véspera. Estava profundamente relaxada e dormia muito pesado, mas meu instinto treinado para guerra reconheceu perigo em um pequeno estalido. Retomei minha consciência e permaneci imóvel, os ouvidos apurados para qualquer novo ruído. Não demorou muito e um segundo estalo se fez ouvir. Não era um ruído próximo, no entanto. Olhei em volta: nada. Desci silenciosamente, escorregando pelo tronco da árvore. Espada em punho, me esgueirei pela mata na direção de onde o ruído viera. O estalo aconteceu novamente e não tive dúvidas de que era o som de alguém andando pela Floresta. Eu não estava mais sozinha.
Tinha a meu favor o conhecimento intuitivo do lugar depois de dias vivendo ali. Todos os meus instintos estavam despertos e foi assim, com cuidado extremo e produzindo ruídos mínimos que cheguei ao coração da mata, o local que eu desconhecia fisicamente, mas onde havia estado várias vezes, tanto em sonho como nas vivências da Pedra. Ali estava eu, na mesma clareira de minha iniciação, no local em que, mais de uma vez, lutara por minha vida.
A clareira era extensa e estranhamente iluminada por uma luz difusa, como se houvesse um véu entre a copa das árvores e o céu. A luz incidia indireta com uma variação de tons que iam do violeta ao avermelhado com mesclas de verdes, azuis e amarelos, deixando o ambiente com um aspecto tão onírico, que me perguntei se tinha realmente acordado. Era, sem dúvida, um lugar muito bonito àquela hora do dia, embora eu pudesse adivinhar com facilidade que à noite era medonhamente escuro.
Com o corpo colado ao tronco de uma imensa sequoia, espreitei a clareira por todos os lados. Nada nem ninguém. O barulho que me atraiu até ali tinha parado como se nunca houvesse existido. Os pelos eriçados em minha nuca e meu coração descompassado diziam-me, no entanto, que o perigo estava presente em carne e osso.
Abaixei lentamente meu corpo e avancei rumo ao descampado. Atravessar a clareira não me parecia seguro, mas talvez o que eu procurava estivesse do outro lado. Ou talvez… um pensamento estratégico me deu frio na espinha: me afastaram do acampamento: Amora!
Girei rápido os calcanhares. Antes que conseguisse dar um passo sequer, um vulto passou por mim com um baque surdo. Por puro instinto atirei o corpo para trás e parei na clareira já com a espada em punho. Em uma armadura de couro negro, que encobria inclusive seu rosto, e segurando duas espadas curtas, um cavaleiro bloqueava meu caminho de volta ao acampamento. Ergui levemente minha espada preparando o ataque. Logo outro baque surdo atrás de mim, e na sequência muitos outros sons semelhantes mostraram a verdade de minha situação: saltando das árvores um pequeno exército encapuzado me cercava.
Homens de meu pai, eu tive certeza. Rostos cobertos para que eu não os reconhecesse. A pergunta era: eles tinham ordens de me matar?
Olhei a toda volta sem encontrar uma única brecha, espada erguida impondo respeito. Já esperava que me atacassem com violência quando um – apenas um – deles se adiantou calmamente, a espada na mão, mas abaixada, e parou poucos metros à minha frente. Fez um comprimento formal, como se estivéssemos em um desafio. Não respondi nem desviei o olhar, sempre em guarda esperei que começasse.
Sua espada era rápida e pesada, mas meu preparo de elite fazia diferença. Por mais de uma vez estive perto de subjugá-lo. Com perícia, meu oponente reencontrava equilíbrio e contra-atacava. O silêncio dominava a audiência, mas eu tinha consciência de que, se vencesse, seus partidários me aniquilariam. Essa consciência não era, de maneira alguma, uma fonte de medo, era apenas um situar-se, saber onde se pisa, um organizar estratégico de minha cabeça. Era preciso vencer o primeiro combate e então enfrentar o que estava por vir. Perder a primeira luta é acelerar a própria morte, pensei.
Com manobras rápidas e bem planejadas, fiz meu oponente recuar e consegui feri-lo levemente no pulso direito. Num rápido jogo de corpo ele se afastou, deixou que a mão esquerda assumisse a espada e, com extrema virulência, desferiu uma longa série de golpes rápidos. Desviei-os um a um com uma precisão instintiva até que, com um passo em falso, perdi o equilíbrio e isso me custou a espada. Numa estocada rápida fui desarmada, a espada cravada no chão, metros atrás de mim.
Sem alternativas, ergui meus braços num gesto de entrega. O espadachim à minha frente aproximou-se vitorioso, ainda com a espada em riste e, a poucos passos de distância, retirou seu capuz: era uma mulher.
Os cabelos curtíssimos poderiam gerar confusão, mas os traços delicados, em particular a boca muito bem formada, não deixavam dúvidas. Cabeça erguida e um olhar desafiador, os olhos levemente fechados como se algum sol estrangeiro dificultasse sua visão, encostou a espada em meu peito. A um sinal seu, dois homens imobilizaram minhas mãos enquanto outros corriam pela Floresta. Em nenhum momento desviei meu olhar da morena com ar autoritário, que me fitava com extrema segurança. A pergunta em minha cabeça era se ela sabia quem estava capturando.
Com alguns empurrões fui encaminhada para uma trilha na Floresta por onde andamos cerca de quarenta minutos. Saímos em um descampado, onde outro grupo de soldados nos aguardava com montarias. Colocaram-me em um corcel velho de pelo esbranquiçado; a soldado que me capturou montou um cavalo a meu lado. Da mata muitos homens saiam aos poucos e, para minha surpresa, os últimos traziam Amora e todo o material de meu acampamento.
Fizemos uma viagem de aproximadamente noventa minutos por entre os campos, sempre evitando a estrada, e chegamos a uma cidade fortificada. O sol estava a pino e os portões foram abertos tão logo nos aproximamos. Muitas pessoas correram para nos receber e saudaram com entusiasmo os soldados. Olhavam-me como um troféu de guerra e com indisfarçável curiosidade. Alguns homens corriam à frente abrindo caminho, afastando os curiosos enquanto a multidão gritava Alex! Alex! Estavam em franco delírio.
O cortejo parou no centro da praça e os homens armados formaram um corredor, por onde fui levada a uma casa grande muito bem edificada. Entramos em uma sala ampla com muitas portas e, aos empurrões, me fizeram passar pela mais larga, bem à frente da porta de entrada. Essa dava num corredor longo, também com muitas portas, ao fim do qual ficava uma pequena escada, que nos levou ao porão abafado e sem janelas onde fui deixada.
Largada de costas sobre o chão, os braços doíam com a pressão das cordas. Com o auxílio das pernas livres consegui sentar e, com certo custo, me colocar de pé. Andando aos tropeços cheguei a uma das paredes e, usando-a como apoio, me arrastei por todo o cômodo em busca de um prego, maçaneta, ou qualquer coisa que pudesse me livrar das cordas. Não sei ao certo quantas voltas dei em vão. Cansada do esforço deixei o corpo deslizar pela parede e permaneci sentada, olhos fechados, lutando contra o cansaço, o sono, o medo.