Aléssia

Capítulo XXIX

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXIX <<<

— Estou sem chão, Mestre. Não sei mais em que ou quem acreditar. Tudo o que eu sabia, o mundo que eu conhecia, tudo isso caiu por terra. Parece que tudo o que vivi, foi uma grande mentira. E tudo o que estou vivendo agora parece um profundo pesadelo.

— Lamento muito. Gostaria de ter podido lhe poupar tanto sofrimento. Mas chegou a hora da verdade, enfim. E por mais que doa, a verdade sempre nos traz cura.

Creio que o mais difícil de aceitar seja a verdade sobre seu pai. Vou ser obrigado a confessar que o carinho com que Rei Aran sempre lhe tratou me fez pensar que, talvez, o nascimento da filha o tivesse humanizado. Antes de você nascer, entretanto, horrorizava-me a ideia de uma criança sendo gerada e educada por aquele monstro. Afinal, para todos nós, sempre esteve claro quem Rei Aran era. Ele próprio nunca se esforçou por esconder. Seu pai se orgulha de cada ato de maldade, de cada vilania praticada.

E não apenas ele. Essa corrente maléfica percorre Âmina desde seu surgimento. O que vou lhe contar agora, Aléssia, é apenas um resumo da história secreta de Âmina. A história real do reino que um dia você há de governar. E o fará com justiça e dignidade, tenho certeza. Pois você é a primeira descendente dos Amaranto nascida sem a influência direta do mau.

Você tem a Marca em seu braço e, portanto, já conhece A Pedra. Duvido, entretanto, que conheça a história real associada a isso, pois para contá-la seu pai teria que revelar a você as verdades que sempre lhe escondeu.

Há muito tempo atrás toda essa região era selvagem e livre. Muitos animais corriam pelas planícies. A Floresta Escura ocupava uma área dez, quinze vezes maior do que a atual. A paisagem original era bastante diferente dessa terra quase árida que conhecemos.

Ninguém sabe ao certo quando os primeiros homens chegaram aqui, mas há cerca de quinhentos anos existiam pelo menos três grandes povoados independentes: Líath, Forte Velho e… Âmina. O primeiro povoado ficava exatamente onde estamos agora. Forte Velho você conheceu há poucos dias. E com certeza não será difícil imaginar onde ficava Âmina.

A origem dos povos que formaram essas cidades é incerta, mas duzentos anos antes de nossa época um homem chamado Leon Amaranto veio viver em Âmina. Ele era um exímio ferreiro e logo conquistou soldados e cavaleiros graças à sua habilidade em construir espadas e escudos. Você o conhece pelos retratos na sala de seu pai. Leon é o fundador de seu clã paterno e o homem que construiu a maldição na qual você vive agora.

Além de jovem, bonito e habilidoso, Leon era ambicioso. Ninguém nunca soube sua origem nem os antecedentes de sua vida mas, desde que chegou à Âmina, parecia disposto a qualquer coisa por dinheiro e poder. Conseguiu conquistar amigos influentes dentro da sociedade local e não demorou muito para despertar os sentimentos de Greta, filha de um dos fazendeiros mais poderosos da época.

Âmina era uma cidade turbulenta em que o governo era dividido pelas três famílias mais ricas. O pai de Greta era um dos lordes que governavam a cidade e Leon, aproveitando-se do amor da jovem, aproximou-se de Sir Armand e conquistou sua confiança. Casou-se com a jovem e de ferreiro tornou-se nobre, recebendo o título de barão. Sob sua influência Sir Armand começou a cobiçar as terras e o poder de seus vizinhos. Afinal, por que dividir o poder se ele podia comandar tudo sozinho? Leon armou os vassalos de Sir Armand com armaduras tão duras e leves como nunca se tinha visto por aqui, e a família da jovem Greta se tornou praticamente indestrutível. Em poucos anos, Sir Armand governava sozinho toda a cidade de Âmina. Ou quase sozinho, pois havia Leon e ele não estava disposto a ficar em segundo plano.

Até então, influenciar pessoas poderosas lhe tinha sido suficiente, mas a partir de agora Leon queria o poder para si próprio. Por sua arte com o ferro era extremamente popular e querido pelos soldados. Não foi difícil conquistar-lhes a confiança, de maneira que em pouco tempo o exército de Armand havia se voltado contra ele mesmo. Assassinado por seus homens de confiança, da noite para o dia Leon de Amaranto se autoproclamou Rei de Âmina, uma cidade com pouco mais de quinhentos perplexos habitantes.

Greta, de esposa passou a refém. Acuada e com todos seus parentes mortos não lhe restou mais nada a não ser servir e fornecer descendência ao marido. Os Amaranto geraram quatro filhos homens, quatro almas cuidadosamente preparadas para o mal.

Repare que em nenhum momento citei o nome de família de Greta. O motivo é bem simples: ninguém se lembra a alcunha da família. Leon registrou todos os filhos apenas com seu sobrenome e assim tem sido até os dias de hoje entre os Amaranto. A prova disso é que você é conhecida apenas como Aléssia Valentina de Amaranto quando o nome de família de sua mãe é O’Líath.

Sim, O’Líath, como a cidade. Controle sua ansiedade, logo chegaremos a esse ponto.

Voltemos a Leon, pois ainda há muito caos para esse ferreiro semear. Controlar Âmina foi tão simples, que nosso novo Rei logo começou a desejar mais. O pequeno povoado ganhou novos territórios. Na luta de seu poderoso exército com os pequenos camponeses da região, novas áreas eram anexadas a cada dia. Por uma década o reino de Leon cresceu sem conhecer nada nem ninguém que lhe fizesse oposição. Mas então o Rei tentou atravessar a Floresta Escura e seus problemas começaram.

A Floresta Escura é uma região sagrada e nenhum antigo morador jamais se atreveu a enfrentar o poder dessas árvores milenares. Ávido por expansão e crescimento, entretanto, Leon começou a derrubá-las para construção. Inicialmente a Floresta se retraiu, encolheu. Mas quando os madeireiros do Rei chegaram próximos do coração da Floresta, ela reagiu. Um a um os homens começaram a morrer sem qualquer explicação possível. Nenhuma árvore foi cortada na Floresta por mais de um ano. Isso conduziu a expansão real para o lado oposto da Floresta, onde os pequenos bosques foram destruídos. Caravanas traziam madeira dos mais distantes territórios e Âmina ganhava novas casas e ruas.

A cidade original era muito diferente dessa que você conhece hoje, Aléssia. O Castelo dos Três Círculos foi construído depois. Leon se considerava indestrutível e o máximo de sua presunção era deixar as ruas de sua cidade abertas a quem quisesse chegar. Interessava-lhe o movimento, a chegada de novos moradores, pois era dos impostos que o Rei extraía sua fortuna. A fama da cidade corria pela região e a ideia de prosperidade que as constantes construções criavam trouxe todo tipo de gente para o novo reino.

Em aproximadamente trinta anos o exército de Âmina conquistou para o Rei todo o território a norte da Floresta Escura. Poderia ter parado por aí, mas Leon sempre queria mais e novamente decidiu atacar a floresta.

Forte Velho e O’Líath eram, a essa época, cidades grandes, prósperas e independentes. Âmina já era um grande reino formado por um conglomerado de povoados, mas as duas cidades, do outro lado da Floresta, ainda exalavam o aroma de sucesso, riqueza, vitória. É muito provável que isso doesse em Leon, em seu desejo cada vez maior de fazer com que tudo e todos se submetessem a ele. Ultrapassar a Floresta se tornou uma obsessão, mas não era tão simples como parecia.

O Rei organizou aproximadamente cinco expedições, uma maior do que a outra, e nenhuma delas retornou à capital de Âmina. A última foi coordenada por Raul, seu filho mais velho, e também fracassou. A perda do primogênito foi o golpe mais profundo na vaidade de Leon, e ele decidiu enfrentar pessoalmente o inimigo invisível que não lhe permitia seguir adiante.

Todo aquele que próspera possui seus méritos ainda que, aos olhos humanos, nem sempre possamos compreender essa virtude. Leon era desumano, mesquinho, ganancioso, presunçoso. Mas a razão de seu sucesso era uma só: coragem. Destemido desde jovem, o ferreiro não considerava fracasso como uma possibilidade. Sua determinação era sempre para a vitória e sua inteligência era superior nesse quesito. Cansado de perder soldados, e sabendo o custo disso para os seus cofres, o Rei de Âmina decidiu entrar sozinho na Floresta. O controle do reino ficou provisoriamente com seu segundo filho, Carl, e Leon entrou na Floresta com uma simples armadura de couro, uma pequena faca e sua melhor espada.

O que aconteceu ao certo só ele soube. Mas alguma coisa foi preservada numa tradição passada de pai para filho dentro de sua família. Ao invés de atacar a Floresta, Leon a explorou. Durante quarenta dias e quarenta noites o Rei vagou pela escuridão que só essa Floresta sabe oferecer e, sem jamais cair em desespero, sentiu sua fonte, escutou sua alma e descobriu seu poder.

Leon conseguiu chegar ao coração da Floresta, o centro de onde seu poder era irradiado. Esse lugar existe até hoje, preservado exatamente como há milhares de anos e você o conhece muito bem. Não, não se ete. Como já lhe disse a Floresta era muito maior do que é hoje. Não consegue adivinhar onde fica o centro energético da Floresta Escura? Sim, isso mesmo que você está pensando: no Bosque do Castelo de Três Círculos, onde fica a Pedra, a força viva que controla toda a Floresta.

Todas as expedições fracassaram porque tentaram destruir a Floresta. Leon, ao ir sozinho e sem causar nenhuma destruição, conseguiu ser ouvido pela Pedra. E os dois fixaram um pacto: Leon e seu exército poderiam atravessar a Floresta e se abastecer com a madeira que ela fornece, mas não poderiam tocar a área sagrada em que a Pedra repousa, nem poderiam exterminar toda a Floresta. De comum acordo Leon e a Pedra demarcaram uma região que deveria ser preservada e o Rei ofereceu à Pedra a honra de habitar o Castelo real. No acordo firmado A Pedra prometeu a Leon o poder de governar as terras que originaram a Floresta Escura Ancestral e Leon prometeu o sangue de todos os seus descendentes sucessores diretos ao trono.

Se a Pedra descumprir sua parte e permitir que a família Amaranto perca o domínio sobre essas terras, todos aqueles que tenham o sangue de Leon ganharão o direito de devastar a Floresta sem que a Pedra possa impedir. E se algum Amaranto deixar de entregar seu sangue à Pedra, toda a descendência perderá o domínio sobre as terras.

A fórmula é simples, mas devastadora, pois quem tem poder sempre quer mais poder.

A partir do acordo entre Leon e a Pedra a cidade de Âmina mudou sua localização e um Castelo foi construído, inicialmente com um único muro para proteger o Bosque. Os anéis externos e a configuração atual do Círculo Interno surgiram muito depois, quando outra personagem importante surgiu em nossa história: Magnólia O’Líath.

Antes, entretanto, Âmina se expandiu para um território muito parecido com o que é hoje. A única exceção eram as cidades do lado de cá da Floresta Escura. Quando Leon morreu, apenas Monte Belo havia sido conquistada.

As povoações do lado de cá da Floresta eram mais prósperas do que os pequenos vilarejos do outro lado, todos facilmente conquistados por Leon. Os artefatos do exército de Âmina eram bons, mas os guerreiros daqui eram melhores. Década após década as cidades resistiam. O avanço dos Amaranto foi lento, embora significativo, mas sete décadas após a morte de Leon duas cidades persistiam independentes: Forte Velho e Líath.

As duas cidades são próximas e nasceram do mesmo clã. Muito antes de Leon Amaranto chegar a essa região, Forte Velho e Líath formavam, com outros cinco povoados, um pequeno reino conhecido como Principado Xamon. Líath era a capital a partir de onde o clã O’Líath governava seu povo. Ao contrário de Âmina, o Principado Xamon sempre valorizou a felicidade e a prosperidade de todos os seus munícipes. Mas as cidades foram sendo subjugadas pelos Amaranto, uma a uma. Não com facilidade, houve sempre um grande custo à Âmina. Muitos soldados mortos. Muitos recursos consumidos em anos de guerras.

A última cidade a sucumbir foi Forte Velho há apenas cinco décadas, no reinado de seu avô, Aléssia, em uma guerra sangrenta, que se encaminhou naturalmente para o casamento de seu pai com Maura O’Líath. E Líath persiste livre, resistindo com astúcia e bravura.

Mas vamos voltar um pouco essa história porque existem fatos importantes ocorridos durante o período de intensas guerras.

As investidas de Âmina contra o pequeno Principado Xamon se tornaram tão frequentes e ameaçadoras, que Magnólia O’Líath decidiu ir além da simples defesa e ousou cruzar a Floresta Escura para atacar Âmina em seu coração.

A família Amaranto se sentia segura, julgava a Floresta intransponível. Mas os O’Líath, que viviam na região muitos séculos antes de Leon chegar, conheciam os segredos da Floresta e, vivendo sempre em harmonia com ela, sabiam cruzá-la sem receber as influências da Pedra. Não foi difícil levar um grande exército ao muro de Âmina e impor uma dolorosa derrota aos Amaranto. Por uma década e meia o reino de seu pai foi governado por Magnólia, e esse foi o único período em que o povo conheceu paz e prosperidade.

Mas o clã Amaranto não estava derrotado, obviamente. Refugiados em Desterro, armaram o maior exército que essa terra já havia conhecido. Retomaram Âmina e assassinaram a Rainha de Líath. Arthur Amaranto era o líder do clã nessa época e retomou para si o trono de Âmina. Assustado com a derrota sofrida, Arthur tomou duas providências: fortificar o castelo real e eliminar todos os seus inimigos. O massacre começou já na sequência de sua vitória sobre Magnólia. Qualquer pessoa ligada a alguém de Forte Velho ou Líath era sumariamente assassinada. Sem distinção de idade, sexo, condição física ou similar.

Muitos foram mortos dentro do Bosque, em sacrifícios oferecidos à Pedra, um banho de sangue que concedeu força e poder tanto ao clã quanto ao Bosque e ao Castelo que começava, enfim, a ser fortificado.

Os primeiros planos arquitetônicos elaborados pelos conselheiros do reino criavam um pequeno labirinto entre os muros. Dificultaria a entrada de inimigos, mas praticamente impedia uma saída rápida das tropas de Âmina. O desenho atual, com a estrutura de três muros circulares e doze portões em cruz, a configuração do Círculo Interno como morada real, o Círculo Intermediário como vilarejo de recursos humanos e o Círculo Externo como quartel general, Arthur o recebeu por inspiração da Pedra. O detalhe dos portões em cruz, orientados para os pontos cardeais, garante uma proteção energética que de outra forma não se conseguiria. Essa proteção extra, aliada à espessura e material dos muros, tornou o Castelo indestrutível, de forma que a cidade fortificada nunca foi invadida, embora as guerras tenham perdurado até a época de seu nascimento.

Foi assim que esse reino foi criado e povoado. Forte Velho sucumbiu às tropas do clã Amaranto. Mas uma cidade permanece independente até hoje: Líath.

Quando Aran de Amaranto assumiu o trono no lugar de seu pai, tomou para si a responsabilidade de subjugar a cidade rebelde. Para tanto decidiu usar astúcia, já que a força nunca resolveu o problema.

Orestes de Amaranto, seu avô paterno, foi assassinado no último ataque armado de Âmina contra Líath. Seu filho Aran foi coroado com apenas vinte e três anos e era uma incógnita. Mantido dentro do Castelo desde a infância, ninguém era capaz de prever seus pensamentos e atitudes.

Sim, a infância de seu pai foi muito parecida com a sua, Aléssia. A “tradição” de manter os herdeiros ao trono enclausurados surgiu com Arthur, que ocultou seu herdeiro na cidade fortificada, para que os inimigos não pudessem lhe causar nenhum mal. Estrategicamente isso se mostrou uma vantagem, pois o novo Rei aparece para o povo como uma incógnita e são necessários vários anos até que o caráter do mesmo seja conhecido. Aran se beneficiou dessa vantagem.

Chegou à Líath com uma proposta de paz e cooperação. O clã O’Líath nunca desejou mais do que tocar seus negócios em paz. Todas as batalhas foram realizadas apenas como forma de defesa dos territórios e interesses de sua população. Quando Aran apareceu ninguém sabia nada a seu respeito. Tinha a seu favor o viço da juventude, esse que costuma trazer o desejo inerente de mudança.

O jovem Aran que Maura conheceu era bonito, sedutor, educado, inteligente, simpático e amável. Alguém muito próximo do homem que você conhece como pai. Mas diametralmente oposto do homem que ele é, de fato. Sim, eu sei o quanto lhe é doloroso ouvir isso, mas infelizmente é a verdade.

Aran foi astuto o bastante para não fazer falsas promessas de amor. Não tentou seduzir nenhuma das jovens filhas de Vicença, sua avó materna. A proposta que fez foi exclusivamente política: se casaria com uma das filhas da líder de O’Líath e, através da união consanguínea das duas famílias, o poder sobre Âmina seria compartilhado e Líath se tornaria o centro comercial do Reino, enquanto Âmina preservaria o posto de capital política. A proposta era boa, mas Vicença não aceitou. Após tantos anos de luta, a astuta mulher não conseguiu acreditar que tudo mudaria com tanta simplicidade. Maura, no entanto, não pensava da mesma forma.

Nunca saberei se a bela filha da líder de Líath apaixonou-se por Aran ou pela ideia de paz. Maura era uma jovem muito delicada e a guerra lhe causava horror. Desde muito jovem demonstrava estar disposta a sacrifícios para poupar a morte de inocentes, e não escondia de ninguém o sonho de ser capaz de colocar ponto final nas disputas de território. Quando tinha quinze anos envolveu-se numa grande discussão com a mãe onde assegurava que, se chegasse a governar seu povo, assinaria a rendição em troca de alguns direitos para os moradores de Líath. Sendo assim, não é de estranhar que tenha aceitado a proposta de Aran. Mas temos que levar em conta que, no período em que o Rei de Âmina dedicava seu tempo aos O’Líath, a jovem Maura gostava de desfrutar de sua companhia em passeios pela região. O amor, afinal, é uma armadilha em que mesmo os mais ajuizados podem cair.



Notas:



O que achou deste história?

2 Respostas para Capítulo XXIX

Deixe uma resposta

© 2015- 2017 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.