Aléssia

Capítulo XV

POR ƉIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XV <<<

Ficamos, os quatro, reunidos em silêncio, meu pai andando nervoso de um lado para o outro.

— Essa mulher de novo! Ela não perde por esperar… quando puser minhas mãos nela…

Interrompeu sua frase repentinamente e, como se lembrasse de minha presença, olhou fixamente e, pela primeira vez em toda a minha vida, falou-me com sinceridade sobre os assuntos políticos.

— Eu me esforcei ao máximo, Aléssia, para que você crescesse com uma sensação de conforto. Nos últimos anos consegui manter as batalhas territoriais longe de nossos muros, e evitei que notícias de combates chegassem a seus ouvidos. Você era uma criança e tais notícias serviriam somente para lhe assustar, crescer com medo.

Fez uma longa pausa e permaneceu um tempo tão grande encarando nossos conselheiros, que dava para supor que conversavam mentalmente. Depois, continuou com um tom de voz mais cansado e aparentando alguma tristeza.

— A verdade, no entanto, Aléssia, não é esse mundo calmo com o qual você está habituada. E está na hora de você saber a verdade, conhecer todos os nossos problemas e, com sua inteligência e preparo, nos ajudar a encontrar soluções. Juntos, eu e você, minha filha, vamos governar Âmina com mão de ferro, e retomar as rédeas de nosso reino! E tenho certeza de que, quando chegar minha hora, vou lhe deixar como herança um país harmonizado para que você governe tranquilamente, usufruindo de todos os benefícios do Poder consolidado!

Suas últimas frases soaram forte no ambiente, a voz enfática vibrando alto, o olhar brilhando com raiva, transparecendo uma obstinação quase maníaca.

Nas horas seguintes, ouvi longos relatos sobre os rebeldes que tentavam usurpar nosso trono, comandados por uma mulher que, segundo a crença popular, era dotada de estranhos poderes.

— Os imbecis acreditam nessas superstições e se deixam convencer pela bruxa! Alexandra e seu bando já conseguiram a fidelidade de cerca de três vilarejos, e tenho informações seguras de que existem homens seus trabalhando em pelo menos outra meia dúzia de localidades.

— Eu não entendo, meu pai… como alguém ousa desafiar seu poderio? Nossa família governa Âmina há tantos anos, que os nomes dos primeiros governantes já sumiram na bruma do tempo. Nosso exército é o maior de toda a região, e nunca ninguém conseguiu tomar nem uma légua de nosso território. Agora essa mulher arma um exército e quer conseguir nada mais, nada menos que o trono? Que tipo de louca ela é?

— Uma fanática religiosa, Princesa – explicou Don Otto — Apela para as superstições populares, faz o povo acreditar que ela é capaz de espiar seus pecados e dar-lhes uma vida sem penúrias. Como se alguém pudesse subverter as leis divinas. Como se fosse possível que todo homem sobre a face da terra vivesse como um Rei!

— A estratégia dessa mulher é reunir o povo contra nós. — completou meu pai — Por maior que seja um exército, ele com certeza será ineficaz contra milhares de pessoas ensandecidas. Ela arma as pessoas comuns do povo, homens sem preparo, mulheres, crianças. Não lhe interessa quem controla as armas, desde que as mãos a obedeçam cegamente. Quer usar nossa própria gente contra nós, marchar com nosso povo contra o castelo e tomar o poder. O plano é ingênuo, mas ela tem conseguido recrutar pessoas de forma muito rápida e poderá, com certeza, nos causar prejuízos. É por isso que precisamos neutralizá-la rapidamente. Quanto antes essa mulher estiver morta, mais rapidamente a paz estará estabelecida em nosso território. E se formos suficientemente firmes em nossa manifestação de Poder, creio que serão necessários séculos até que algum outro infeliz ouse se levantar contra nossa Casa novamente.

Os meses seguintes foram de estudo e adaptação. Apenas o calor de Lara servia de alívio para o ambiente de guerra em que eu estava vivendo. As atitudes de meu pai me surpreendiam muitas vezes, e o mundo à minha volta tornava-se profundamente instável e fugidio.

Mestre Renan observava calmamente minhas reações. Nossas aulas já não eram diárias, mas a cada encontro eu observava seu modo de me estudar, o jeito como me olhava profundamente a cada questão, a maneira como analisava meus gestos, minhas atitudes, sempre que eu falava. Causava-me espécie o fato de ele não se importar exclusivamente com minhas palavras, como é costume fazer. Às vezes eu tinha a sensação de que ele nem ouvia o que eu dizia, mas interpretava o gestual, o brilho dos olhos e, talvez, até as roupas que usava.

Em uma manhã de janeiro especialmente fria, as notícias de um ataque a tropas no Monte Vermelho me deixou atordoada. O relato de homens feridos agonizando na montanha gelada me fez devolver o café da manhã. Meu semblante não era dos melhores quando encontrei Mestre Renan em nossa sala de estudos. Como de hábito, meu mestre estava entretido com suas anotações quando entrei. Habituado à minha presença cotidiana, meu tutor há muito não utilizava de nenhuma cerimônia comigo. Só em eventos sociais se dava ao trabalho de me fazer reverências. De certa forma, dispensava a mim o mesmo tratamento que dava a Amaryllis.

Minha forma de tratá-lo é que havia mudado nos últimos anos. A conversa suspeita que flagrei com um soldado da guarda de meu pai, e depois a briga com Amaryllis, me deixaram em eterno estado de prontidão, muito embora nunca tenha tomado a iniciativa de comentar o caso com meu pai. E, estando agora próxima do centro de decisões, a cada dia me parecia mais acertado não levantar suspeitas vãs. Meu pai se mostrava bastante rígido em seus castigos e nem sempre estava disposto a verificar a veracidade dos fatos, antes.

Naquela manhã, entretanto, cheguei à sala de estudos com meu espírito profundamente atormentado, a boca com gosto ácido, o estômago embrulhado. Mal percebeu minha presença e Mestre Renan fez sinal para que me sentasse à sua frente e começou a depositar papéis, pilhas e pilhas, pedindo-me uma análise jurídica com base nos grandes autores. Ouvi suas instruções por alto, as palavras morrendo ao longe, como se ditas por alguém muito distante.

— Você está bem, Aléssia?

Não, eu não estava. Na verdade, sentia-me tão miserável que o simples interesse de meu tutor me fez desabar — não era comum alguém me perguntar como eu estava me sentindo. Na verdade, ninguém parecia se importar.

Como se fosse uma convulsão, meu corpo inteiro começou a tremer ao sabor das lágrimas. Acho que, pela primeira vez, eu tivesse um vislumbre real de onde eu realmente estava, quem eu realmente era e a que estava, tragicamente, fadada.

Mestre Renan me acolheu em um abraço paterno. Não disse nada, pacientemente acolhendo minha confusão mental. Quando serenei, meu tutor beijou minha testa e, rosto colado no meu, falou como se pudesse ler minha alma:

— Você está, finalmente, saindo do cofre em que lhe trancaram por todos esses anos, não é, minha menina? Sim, a realidade é dura e cruel, mas eu confio no seu espírito, na sua capacidade de discernimento. Você saberá fazer o certo, na hora correta. Saberá ser justa, por mais difícil que seja. Acredite em você, Aléssia. Não importa quem lhe critica, não importa quem se oponha a seu caminho, acredite em você. Confie no seu coração. E quando não souber com clareza quem é o inimigo, quando estiver em dúvida sobre onde desferir o golpe de sua espada, feche os olhos e sinta. Seu coração nunca vai errar.

A pele levemente rugosa dos dedos de Mestre Renan apertavam ternamente meu rosto na altura do maxilar. Seu hálito rescendia a rum, os dentes escurecidos pelo uso constante de losna, um olhar azul como céu sem nuvens que me mirava calmo, mas com agônica intensidade.

— Do que você está falando, Mestre Renan?

— Da vida, Aléssia. Da sua vida. Mas não se assuste com isso agora. Apenas lembre-se, sempre, de confiar em você mesma. E quando precisar de um amigo, lembre-se de seu mestre. Sempre estarei do seu lado, seu mais fiel súdito, minha Princesa amada.

Com os olhos fechados, e sua costumeira expressão serena, carinhosamente secou meus olhos e só então perguntou o que estava me afligindo tanto naquele dia.

Não esperava a pergunta e, quando ela veio, junto com todo aquele ritual de carinho, conseguiu me deixar em um estado mental vazio. E desse não-pensar foram surgindo, peneiradas, todas as horrendas informações dos últimos dias, As atitudes contraditórias de meu pai. E os homens morrendo abandonados na montanha gelada.

— Não sei mais em que mundo estou vivendo… — as palavras escorreram pelos meus lábios sem que eu as sentisse e, a partir delas, o relato do meu tormento interno, das minhas dúvidas dos últimos meses. Preservei toda e qualquer informação pertinente ao reino, ao governo, pois entre todas as minhas dúvidas ainda existia a outra, mais antiga, sobre a fidelidade de Mestre Renan. Mas apesar disso, e guiada por sua atitude compreensiva, receptiva, entreguei todas as sombras que nos últimos tempos atormentavam minhas noites, levando-me perdida aos braços de Lara ou, o que era pior, tirando-me deles para pesadelos medonhos.

Como um pai zeloso, meu tutor acariciou levemente meus cabelos e depois me abraçou.

— Sempre me esforcei para lhe dar todo o conteúdo necessário para o dia em que levantassem as cortinas de sua redoma, e lhe deixassem ver o mundo como ele realmente é. Sei que você está assustada, minha querida, mas digo duas coisas importantes: primeiro, a verdade é ainda pior do que você imagina. E segundo, você tem todo o conhecimento necessário para encontrar as respostas e soluções. Ao longo de todos esses anos, todos os dias, eu me angustiava em saber que você vivia, inocentemente, em um cativeiro. Justo eu, um amante do conhecimento e da verdade, era obrigado a lhe manter na ignorância. Sinto-me tão culpado, minha querida! Mesmo sabendo que alterar seu destino nunca esteve em meu alcance, mesmo tendo lhe dado todas as ferramentas para que pudesse pensar, ainda assim me culpo por ser covarde, por não desafiar seu pai, não impedir que ele lhe escondesse do mundo por tanto tempo.

Sua alma olhava diretamente na minha enquanto ele falava. Não havia como não acreditar na sinceridade daquelas palavras. Por pouco, muito pouco, não contei a conversa que ouvi no estábulo, mas as coisas estavam tão instáveis a minha volta que um pouco de cautela não me pareceu demais. Penso agora no que teria acontecido se eu tivesse lhe dito. Era provável que os acontecimentos futuros tomassem outro rumo.

Das coisas que me disse naquele momento, no entanto, uma ficou martelando em meu ouvido e precisei retomá-la tão logo ele se calou:

— Mestre, você disse que… as coisas são ainda piores do que penso?

— Gostaria de poder lhe dizer outra coisa, Aléssia. Sei o quanto está confusa, o quanto está sofrendo, mas é preciso que se prepare para uma realidade ainda mais sofrida, ainda mais dura. Mas guarde uma coisa em sua cabeça: por pior que sejam as coisas, você — e apenas você — pode mudá-las. Guarde isso com você como uma verdade e uma esperança. E que esse desejo de mudança possa ser seu fio condutor, Aléssia, para que você cumpra o destino grandioso que tem pela frente.

Precisei de uns minutos de silêncio para digerir o que ele dissera. Meu destino não me parecia em nada grandioso. Ele não riu quando eu disse isso, ao contrário, olhou-me sério.

— Olhando a partir de seu ponto de vista, então provavelmente seu destino é trágico e doloroso. Mas seu povo honrará seu nome por toda a eternidade. Desde que você tenha sabedoria e coragem para conduzir seu reinado. E eu aposto que terá.

Não me senti muito comovida com suas palavras, mas não tive tempo de comentar. Com uma expressão mais séria do que o normal meu tutor continuou falando:

— E mais uma coisa, Aléssia, aprenda a desconfiar de tudo e de todos.

— Como assim?

— Assim, exatamente assim como lhe passou pela cabeça agora, por mais terrível que possa ser. Não confie em mim, não confie em Lara, não confie em Amaryllis ou Douglas, ou Pri. Não confie em seu pai. Não confie nas pessoas que encontrará em seu caminho, não importa o quanto lhe pareçam confiáveis, e nem há quanto tempo as conhece. Confie em você, e apenas em você.

— Está me dizendo que devo levar minha vida sem confiar em ninguém?

— Não. Estou lhe dizendo para neste momento não confiar em ninguém. É profundamente solitário passar a vida inteira sem confiar em alguém. Mas existem certas ocasiões em nossas vidas que apenas nós podemos nos ajudar. E todos os outros podem nos atrapalhar, ainda que não queiram.

As notícias de confrontos em regiões fronteiriças continuaram chegando todos os dias. Alexandra dos Olhos Cinzentos, fosse quem fosse, já havia garantido meu ódio eterno. A maneira cruel como matava nossos soldados, e o jeito espúrio com que incitava pobres camponeses contra nossa família, faziam-me jurá-la de morte noite após a noite. Ainda que eu não fizesse a menor ideia de como poderia cumprir essas promessas.

Algo profundamente infantil em mim, no entanto, apegava-se à profecia de Mestre Renan, de que apenas eu seria capaz de mudar as coisas, e ganhei o hábito de pensar estratégias de ataque. Como nossas tropas poderiam se defender dessa mulher? Como poderíamos surpreendê-la? Como poderíamos pará-la? Como poderíamos liquidá-la? Meu pensamento perseguia Alexandra dos Olhos Cinzentos com tal empenho, que muitas de minhas noites foram a cavalo, em florestas obscuras, procurando a líder do bando rebelde. Noites e noites de pesadelos e em todos, sempre, o mesmo par de olhos frios, cinzentos, encarando-me na escuridão.

Foi com o espírito atormentado e o corpo cansado das muitas noites mal dormidas, que cheguei à festa de meu vigésimo primeiro aniversário. Como de costume, foram organizados torneios em todos os cantos do reino. No castelo, a noite do dia treze de março foi tomada por fogueiras nos três círculos, cada um me dando vivas e salves a seu modo. Eu, no entanto, estava presente apenas na pequena festa íntima oferecida no jardim da casa principal, na companhia de meu pai, meus instrutores e alguns oficiais do exército, meus colegas de estudo. Lara, a única pessoa que me interessava naquela noite, ficou reclusa na cozinha, junto com os empregados. Ao longe ouvia os gritos, os fogos, a música, a festa. Todos felizes, me comemorando, enquanto eu olhava tudo e não via sentido em nada.

Sendo impossível escapar da tortura, no entanto, refugiava-me no vinho e nas brincadeiras com os meninos, esperando que a noite passasse rápido e eu pudesse, finalmente, fazer minha festa particular.

— Vamos lá, Aléssia, mostre-me sua boa forma!

Duane era um jovem obstinado, aproximadamente dois anos mais velho do que eu, nunca se conformou em ser pior nas armas do que uma garota. Cresci manejando armas, aprendendo táticas. Sabia que, mais do força física, o que vence uma luta é agilidade e inteligência, e eu era muito bem dotada das duas coisas. Exibia-me nas aulas com facilidade, e servia de referência até para soldados experientes: muitos me consideravam a melhor espadachim do reino.

Isso poderia ser motivo de orgulho para meu pai, para meu instrutor e, talvez, para a população de Âmina. Para meu colegas de treinamento, no entanto, eu era uma espinha de peixe cravada na garganta. Foi por isso que, ao me ver bêbada, Duane me atirou uma espada convidando para um desafio.

 



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