Aléssia

Capítulo XLIX

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina
>>> XLIX<<<

Por que vi essas coisas em meus sonhos? Naquele instante eu também não sabia. Compreendia que eram importantes, embora ainda não pudesse interpretá-las corretamente. Parecia ser a história de como a Pedra criou seu domínio sobre Âmina, mas eu não sabia dizer se tudo o que vi era verdade, ou se minha imaginação criara parte daquilo. Como poderia a Pedra ser a morada da alma de um jovem assassinado como criminoso por seu povo? Mas, se fosse possível, parecia indicar que toda aquela terra era devastada pela vingança de um espírito.
Tentava etar o calafrio que a ideia me dava, quando Irina trouxe meu café da manhã. O sol iluminava minha janela há bastante tempo, mas estávamos no meio do verão e os dias eram longos. A menina colocou a bandeja na mesa e, antes que começasse a me servir, fiz um gesto indicando que iria até a mesa. Desde o ritual da Pedra, eu havia me levantado menos de meia dúzia de vezes. Já era hora de caminhar, me fortalecer.
Irina vestia uma túnica longa com uma generosa abertura na frente. Era possível observar mais de metade de seus seios firmes e fartos. A túnica era amarrada com um cordão de corda crua e evidenciava a cintura fina, as ancas generosas, as curvas bem delineadas que minha nova serviçal possuía. A garota havia sido escolhida a dedo, e eu imaginava se meu pai testara pessoalmente as candidatas. Rei Aran parecia sentir um prazer extraordinário em dividir mulheres comigo. Será que sabia de meu envolvimento com Matilde?
Concentrei minha atenção na comida para evitar que minha imaginação fosse além. Nenhum daqueles pensamentos era agradável. E meus olhos caíram sobre algo que era fartamente agradável. Melhor do que qualquer um dos meus angustiados pensamentos: as pernas de Irina. Eram grossas, bem torneadas e com uma pelugem loura, que lhes dava um aspecto sedoso. Irina tinha um tom de pele acobreado, que eu nunca vira antes, e esse aspecto exótico lhe tornava ainda mais apetitosa. A jovem percebeu meus olhares e retribuiu com um lindo sorriso. Seus dentes eram perfeitos e pareciam mais brancos do que os de nossa gente. Quando os elogiei, explicou que todos os dias esfregava sal neles.
— Sal bom ossos, Mhuire. Esfregar dentes manhã. Bom.
Nos primeiros dias mal ouvi sua voz, mas agora parecia mais confiante em se comunicar, apesar de inserir palavras do seu idioma nativo, vez por outra.
— Como era sua vida antes de ser capturada pelas tropas de meu pai?
Pela primeira vez desde que a conheci, vi Irina encabular. Era sempre segura de si e um tanto altiva. Não parecia uma escrava, e talvez minha pergunta tenha tido o inconveniente de lembrar-lhe desta condição. Por alguns momentos pareceu procurar as palavras. Depois sorriu e disse que gostava de estar aqui.
— Gosta do Castelo? — Achei que talvez estivesse gostando da companhia das outras aias e criadas. A vida no círculo interno não era ruim. Se comparada à vida dos povoados, era um lugar de sonho, um paraíso.
— Gosto de você — disse com um sorriso ainda mais branco que o anterior.
Aquela provavelmente foi sua primeira frase correta em meu idioma. Sorri sem jeito, pois não esperava aquela resposta. Pensei em tudo o que Irina teria passado recentemente. Não era difícil imaginar os martírios, e me servir seria, com certeza, uma trégua no pesadelo. Mas quanto tempo duraria?
Talvez eu pudesse protegê-la, comecei a pensar, e então me lembrei de Lara e senti uma pontada no peito.
Mais tarde, naquele dia, meu pai veio me visitar. Olhou o pequeno corte em meu pulso e me perguntou por meus sonhos. Menti dizendo que não os tinha, notícia que ele recebeu consternado. Estava bem-humorado e carinhoso. Parecia-se com o pai zeloso que eu conhecera na infância. Mandou chamar Malvina e as criadas e fez perguntas sobre minha saúde e alimentação. Ficou satisfeito em ouvir que eu estava saudável e que me alimentava normalmente. Gostou também de saber que não causava problemas às criadas.
Dispensou todo mundo, deu um beijo em minha testa e se levantou.
— Quando os sonhos vierem será o sinal de que tudo transcorreu normalmente. Até lá, descanse e… relaxe!
Olhou Irina com indisfarçável apetite, depois sorriu para mim. Não sei se realmente acreditava que eu estava usufruindo de seu presente, mas penso que sim. Meu pai era arrogante o bastante para acreditar que algo em seus planos pudesse falhar, mesmo quando eu já havia lhe imposto algumas falhas grotescas.
Não pude deixar de observar que a garota sentia-se desconfortável na presença de meu pai. Era fácil imaginar o motivo, mas pensar nisso me incomodou. Pedi para que saísse e fiquei sozinha. Estava resistindo bravamente aos encantos da escrava. Ainda havia um pouco decência em mim.
Mas por quanto tempo? Fiz a questão a mim mesma assim que a escuridão invadiu o ambiente. Logo em seguida uma das criadas entrou para acender a luz, mas a enxotei antes que pudesse sequer iniciar sua tarefa. Ultimamente o escuro me era agradável.
Desde quando eu havia aprendido a evitar o controle que a Pedra tinha sobre mim?
A nova pergunta me ocorreu, porque lembrei do quanto o escuro me torturava nos meus dias de cativeiro em Líath. Contudo, agora o poder que a Pedra exercia sobre mim diminuiu até o ponto de desaparecer. Por quê?
Essa é sua benção, minha filha, o que lhe salva da maldição.
Mas qual benção, minha mãe? Por que não me disse tudo por completo?
E qual o sonho que meu pai aguardava como confirmação? Aquele sonho? A história da Pedra e de Leon? Então ele também conhecia? Era assim, pelo sonho de iniciação, que essa história era transmitida, sem jamais ser contada?
E por que eu ainda pensava em fugir?
Teria o ritual falhado? Isso poderia acontecer?
Senti uma súbita esperança de retornar para Alex e o exército revolucionário. Havia suportado o ritual há dias e, até o momento, ainda havia em mim a centelha da discórdia e da revolta. Ainda ansiava pelo momento em que tiraria meu povo da penúria, que meu pai lhe impunha. E, principalmente, sonhava vividamente com o instante em que vingaria a morte de Lara.
Sua cabeça rolando a meus pés era a primeira imagem que me ocorria, sempre que via meu pai. E minha maior dificuldade era disfarçar esse sentimento e agir com naturalidade. Uma vez que estava nas garras do rei, o melhor que podia fazer era convencê-lo de que havia me tornado sua aliada. Precisava de sua confiança para ter a liberdade de ação que me permitiria sair do Castelo.
E, claro, correr para os braços de Alex!
Naquela época eu ainda era jovem demais para levar a vida muito a sério. Mesmo quando havia um reino a ser salvo e uma vida a ser vingada, eram as alegrias do coração que me motivavam… Do coração e da carne…
Naquela noite, em minha cama de infância, no Castelo dos Três Círculos, as mãos de Alexandra dos Olhos Cinzentos deslizaram novamente por minhas costas, como na primeira vez. Senti outra vez a toalha caindo a meus pés e Alex abraçando minha nudez. Daquela vez sucumbimos ao desejo e abrimos as portas da paixão. E a paixão, gentilmente alimentada, rapidamente revelou-se um amor capaz de lutar contra o mundo. Senti minha pele esquentar com as lembranças. Cada pedaço de meu corpo ansiava pelo toque de Alex. Eu adorava a sensação de ter uma mulher em meus braços, mas Alex sabia como me domar. Matilde havia me ensinado as delícias do amor, mas Alexandra havia despertado em mim uma alma feminina, que eu mesma não sabia que existia. E era essa fêmea que agora sonhava com Alex. De uma hora para outra o quarto me pareceu sufocante e as roupas incômodas. Arranquei minha camisola de dormir e toquei meu corpo, como se pudesse reproduzir as sensações carnais que só minha mulher sabia provocar em mim. Não demorou para senti-la montada em meu corpo, e por alguns minutos fui a pessoa mais feliz de Âmina.
O silêncio, o escuro e a serenidade da noite deram-me a sensação de uma privacidade que uma Princesa nunca tem de verdade. Como eu poderia me esquecer disso? Acontece que Irina era tão discreta e silenciosa, que me esqueci de sua presença. Dormia em um cubículo anexo a meu quarto, pronta para servir-me em qualquer eventualidade. E os ruídos de meu desejo demonstraram-lhe que eu precisava de algo.
Não percebi sua aproximação. Estava de olhos fechados e estremeci quando senti lábios roçando meus mamilos e, por um instante único, julguei estar nos braços de meu amor. Os dentes brancos da escrava desfizeram o engano. Mas sentia-me tão ardente que simplesmente a puxei contra meu corpo. Deixei que fosse para mim o que eu já havia sido para tantas mulheres. E descobri que Irina tinha dedos e língua ágeis, uma pele quente e sedosa cujo toque era, por si só, uma carícia refinada.
Sentia tanta necessidade, que a satisfação veio rápida e desesperada. Mordi as cobertas, para que meu grito não vazasse na noite, e senti meus músculos se agitarem num espasmo frenético. Minha jovem escrava não desperdiçou uma única gota e só parou de sorver quando a puxei pelos cabelos.
Beijei-a demoradamente. O desejo satisfeito me nutriu de uma profunda gratidão pela jovem escravizada por meu pai.
— Vou devolvê-la a seu povo assim que estiver com o poder em minhas mãos, minha pequena. Até lá nenhum mal lhe acontecerá, eu juro.
Falei com sinceridade, mas engasguei nas últimas palavras. Quantas vezes jurara o mesmo à Lara? E o que fora feito dela?
Irina lambeu as lágrimas ainda em meus olhos. Depois se deixou abraçar com força e compartilhamos algum tipo de dor próxima da nostalgia. Ela não me disse nada sobre seu sofrimento ou sua vida pregressa. Mas deixou-se conduzir lentamente quando a virei sobre a cama e me deitei sobre ela. Meu próximo beijo era lascivo, provocante. Sussurrei em seus ouvidos que agora ela experimentaria os motivos pelos quais eu tinha fama entre as mulheres. Não sei se compreendeu uma única palavra do que eu disse, mas sua pele se arrepiou deliciosamente.
Irina era uma iguaria, uma refeição para privilegiados. Poderia tê-la como escrava para sempre e ser feliz só por dormir com ela. Mas minha vida não era assim tão simples. Por isso procurei lhe dar, em uma única dose, todo o prazer que podia proporcionar. Presunçosamente, desejava que Aléssia O’Liath se tornasse inesquecível para aquela pequena forasteira sequestrada.
Acordar em meu quarto no castelo, nua e com uma linda mulher nos braços foi uma dolorosa volta ao passado. Por um segundo tudo pareceu perfeito e a morte de Lara seria apenas um sonho ruim. Mas a pele acobreada de Irina quebrou o encanto e a angústia novamente me invadiu. O sol despontava na janela e, antes que uma das criadas viesse repreender a escrava, acordei Irina e ordenei que fosse buscar meu desjejum.
Tive o cuidado de ser fria para que jamais acontecesse a ela o que aconteceu com Lara. Se partilhava minha cama, era apenas por obrigação, e não por amor. Não queria jamais ser amada de novo.
Quebrei a rotina dos últimos dias com um banho e roupas civis. Pela primeira vez ousei ultrapassar a porta de meu quarto e, para minha surpresa, não havia guardas. Desci correndo as escadas para o salão e sentia-me leve revendo a casa depois de um longo período de ausência.
— É uma alegria ver que acordou disposta, Aléssia.
Meu pai tomava seu desjejum logo após a escada. Sorri como se me alegrasse ao vê-lo.
— Tive um sonho, meu pai. Achei que gostaria de saber.
Seus olhos faiscaram, ansiosos, mas ao invés de me instigar, pediu que guardasse o silêncio até termos privacidade. Solicitou minha companhia em sua refeição e, embora já tivesse comido, mastiguei alguns nacos do bolo de mel, que Agripina fazia tão bem. Depois, com a fome satisfeita, fomos para seu aposento particular.
O escritório de meu pai permanecia idêntico. Havia algumas anotações nos mapas de Âmina, mas evitei olhá-las, temendo que meu interesse despertasse qualquer suspeita.
— Na verdade não sei ao certo se foi um sonho, disse assim que ele me fez sinal para começar. A Pedra veio falar comigo… bem, não exatamente a Pedra, mas um homem calvo como uma pedra… De algum modo sei, contudo, que era Ela…
A maneira como meu pai sorriu indicou que eu havia tomado o rumo certo. Naquela madrugada, depois de ter levado Irina à exaustão de tanto prazer, lembrei a visão que tive no momento do ritual, e intuí o que deveria contar a meu pai. Agora ele engolia a isca com facilidade e gesticulava para que prosseguisse.
— Ele… Ela me fez algumas propostas… — Sorri cinicamente, para lhe indicar que ele devia ter passado pelo mesmo. Rei Aran assentiu com a cabeça, e perguntou o que a Pedra oferecera. — Poder e mulheres — respondi com enorme contentamento. Meu pai me deu dois tapas no ombro, como se falasse com um filho homem.
— E você terá tudo isso, Alê! — Qual a última vez em que me chamara pelo apelido? — Tudo isso e muito mais. E só há mais uma coisa que você precisa fazer, para que a transmissão esteja completa.
— Qual?
— Ter um herdeiro..

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Notas:



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6 Respostas para Capítulo XLIX

  1. Olá Diana Rocco, tudo bem com você? Parabéns pelo maravilhoso capítulo! Aléssia esclarecendo com sutileza a origem da pedra, foi sensacional! Arrisco a dizer que esta aparentemente tranquilidade está com os dias contados! Aguardando ansiosamente o novo capítulo. Tenha um ótimo final de semana!!!

    • Olá Carol,
      desculpe (e isso é extensivo a todas as que comentaram o capítulo) pela demora na resposta, mas o trabalho me manteve meio afastada da internet nos últimos dias.
      Estamos vivendo tempos sombrios, minha amiga, as coisas se precipitam para fora do controle da Princesa. Será que ela vai mesmo conseguir vencer o pai? Ou mais cedo, mais tarde, a Pedra encontrará um meio de dominá-la, e Aléssia seguirá a tradição dos Amaranto?
      Beijo bem carinhoso pra você, obrigada por acompanhar a história

  2. Aléssia desfruta de todas as aventuras amorosas próprias da sua idade.Entretanto, acredito que esse desejo à flor da pele, que deságua num certo descontrole, a levará para um equilíbrio a medida que ela for amadurecendo emocionalmente. No final, Aléssia irá aquietar-se com seu único e verdadeiro amor.

    Estou amando essa aventura!

    Parabéns, Diana Rocco!


    • Olá Vania, adorei sua sensibilidade e seu ponto de vista. Aléssia está amadurecendo. Vejamos em que mulher há de se tornar. Um beijo carinhoso, e muito obrigada pelo comentário

  3. Aléssia é uma safada isso sim, já perdi as contas de quantos pares de chifres Alex tem kkk tadinha…
    Herdeiro? E agora bonitinha?

    • A Alex também não é tão santa assim, Letty Acho que as duas vão se entender bem… se Aléssia encontrar uma forma de não ter um herdeiro
      Beijos, querida, e muito obrigada pelos comentários

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