Aléssia

Capítulo IX

POR ƉIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> IX <<<

— Volte, Aléssia! Volte, querida!

— NÃO!

O suor inundava meu rosto quando acordei ao som de meu próprio grito. Sentei na cama, aflita, e logo as mãos de meu pai me acalmavam.

— A febre abaixou, majestade, creio que ela esteja fora de perigo.

— Obrigada, Malvina, deixe que agora eu mesmo cuido de minha filha.

A porta fechou, ruidosamente, sem que eu visse o rosto de Malvina. A claridade que entrava pela janela ofuscava minha visão turva, aparentemente confusa. Levei quase um minuto para reconhecer meu quarto e perceber que estava tudo bem, apesar de meu coração acelerado.

— Fique tranquila, querida, está tudo bem. Você só precisa descansar um pouco.

— O que aconteceu?

— Nada demais. Apenas descanse. Irá se lembrar de tudo quando estiver melhor.

Com um beijo em minha testa, o Rei se afastou ordenando à criada que fechasse as cortinas de meu quarto e me deixasse só. Quando a penumbra me protegeu, tive a vaga sensação de ver minha mãe acenando desesperada, me mandando voltar.

Voltar para onde?

Não tive tempo de encontrar a resposta, caí novamente em um sono profundo e negro.

Disseram-me que dormi dois dias inteiros. As criadas, aliás, sempre tão alegres em transmitir informações — e mais ainda em aumentá-las — juravam que eu havia chegado praticamente morta nos braços de meu pai.

— O Rei estava que era um desespero só! Mandou buscar todos os curandeiros do reino e disse que os mataria, um a um, se não salvassem vossa vida, Alteza.

— Deixe de exagero, mulher! Desde quando meu pai ameaçaria alguém? — comentei com um risinho.

— Mas é a mais pura verdade, Alteza! Pergunte a quem quiser, todo mundo ouviu.

— Verdade, Princesa. Dava pra ouvir os gritos dele, ainda lá no bosque — completou outra, louca para acrescentar detalhes ao enredo.

— Bosque? Como assim, bosque?

— A princesinha não se lembra de ter passado mal no bosque, não?

Não, não lembrava. Até ela mencionar. Então a lembrança de andar pelo bosque, ao lado de meu pai, voltou nítida e, puxando por esse fio, lembrei de todo o terror: o bosque negro, a Pedra, a energia, o choque.

— Você sabe onde está meu pai, aia?

— No gabinete, Alteza.

— Ajude-me a vestir uma roupa descente, preciso falar com ele urgentemente.

— Mas…

— Sem balbucios, mulher, apenas me ajude. É uma ordem.

— Sim, alteza.

Cheguei ao gabinete no meio de uma reunião de conselheiros. Como de hábito, não esperei que abrissem a porta, apenas dei dois toques na madeira para anunciar minha presença e entrei.

— … a mulher com a espada nas costas… – Sir Alencar interrompeu suas palavras, assim que percebeu minha chegada. Fez-me uma reverência e todos se levantaram. Já não era mais a criança levada que invadia reuniões sem que ninguém se importasse. Era a Princesa Herdeira que entrava no salão.

— Pode continuar, Sir — respondi com uma mesura. Embora tivesse urgência em falar com meu pai, as palavras do conselheiro haviam me deixado curiosa.

— Você está melhor, minha filha? — Com as palavras de meu pai, Sir Alencar sentou em seu posto e deu por encerrada a explanação. Ninguém pareceu se importar com isso. Provavelmente, o assunto era fútil o bastante para ser interrompido.

– Sim, meu pai, e gostaria de lhe falar a sós, se fosse possível. Não é urgente, no entanto. O senhor se importaria de ir a meus aposentos ao fim da reunião?

— Vamos a meu escritório, posso lhe atender agora.

Fomos ao aposento contíguo e, no trajeto, meu pai deixou transparecer toda a sua preocupação, enchendo-me de perguntas sobre meu estado de saúde.

— Se não fosse urgente, você não teria ido pessoalmente a meu gabinete, minha filha — foram suas primeiras palavras assim que a porta se fechou.

— Pensei que estivesse sozinho, meu pai. Não queria interromper sua reunião e o assunto, realmente, pode esperar, embora eu esteja ansiosa por suas respostas.

— Você se lembrou, não foi?

— Sim, eu me lembrei. O que foi que aconteceu? Que pedra é aquela? Disseram que cheguei aqui praticamente morta! Como o senhor pode ter algo assim, tão perigoso, em nosso quintal?

— Vamos por partes. Sente-se, Aléssia.

Serviu dois copos de uísque, o que ainda não era hábito entre nós.

— Antes de mais nada, a Pedra não está em nosso quintal… não exatamente. É preciso ter permissão para encontrá-la. Você passou sua infância brincando nesse bosque e nada lhe aconteceu, não é? Em segundo lugar, você não chegou quase morta, a criadagem é que se assustou, ao me ver entrando com você desmaiada no colo. Eu temia que algo assim acontecesse, minha filha, mas não havia como evitar. Você precisava entrar em contato com o Poder e nunca é possível prever, exatamente, o que vai acontecer. Mas era a hora correta. Lamento pelo susto, porém saiba que é preferível isso a não acontecer nada.

— Como assim?

— A Pedra gostou de você, compartilhou sua energia com você. Mas você precisa preparar seu corpo para receber essa carga. Nenhum de nós está preparado. Você é mais forte do que aparenta ser, suportou uma carga realmente forte. Tenho certeza de que, em breve, você perceberá algumas mudanças em você mesma. Não se assuste, apenas venha falar comigo. Eu sei o que fazer, sou eu que comando a Pedra. E em breve será você.

— Você ainda não me explicou que pedra é aquela.

Rei Aran suspirou e olhou pela janela, enquanto tomava um gole. A tarde começava a adormecer e o calor do dia nos dava uma trégua.

— Confie em mim, Aléssia. Você saberá de tudo quando for o momento. Por enquanto, digo-lhe apenas que essa Pedra se uniu à nossa família há muitos, muitos anos.

— A pedra se uniu? Você fala como se ela fosse um ser vivo!

— De certa forma é. A Pedra tem vontades e personalidade própria. E antes de se entregar ao seu comando ela vai testar você. É por isso que precisa estar bem preparada, para não falhar e não quebrar a corrente.

— Corrente?

— A corrente de comando. Desde que nosso ancestral descobriu como comandar a Pedra, ela tem estado sob o domínio de nossa família. Mas basta um de nós não conseguir se impor, para perdemos o comando. E por consequência o reino…

Dei um longo gole em meu uísque. Decididamente eu precisava de combustível para entender aquele absurdo todo. Haviam me treinado, desde pequena, para pensar da forma mais lógica possível e, agora, queriam que eu acreditasse em contos da carochinha! Minha cabeça dava voltas, juntando minhas lembranças e as palavras de meu pai. Cheguei a conclusões tão cômicas, que foi impossível não rir.

— Uma pedra com personalidade própria e que é a responsável pelo poder de uma família real, que comanda com justiça um lindo reino! Ora, meu pai, isso é enredo de livro infantil!

Despejei todo o conteúdo do copo em minha boca e levantei. Mesmo que ele quisesse continuar falando, eu não me sentia mais em condições de ouvir. Já ia saindo, quando lembrei de algo que realmente me importava:

— A visita ao vilarejo, meu pai, quando será? Não se esqueceu de nosso trato, não é?

— De forma alguma. Tudo o que estou fazendo é para lhe preparar para as coisas que encontrará lá fora, minha filha. Você precisa saber o que irá encontrar para além dos nossos muros. Se amanhã se sentir melhor, faremos uma pequena cavalgada para que seu corpo se prepare. Depois do encontro com a Pedra creio que essa seja uma medida necessária.

— Vou descansar em meu quarto, creio que amanhã estarei bem melhor. Mas, antes de me retirar, será que você pode me esclarecer só mais uma coisa, meu Rei?

— Se estiver ao meu alcance…

— Quando entrei em seu gabinete, Sir Alencar falava sobre uma mulher com a espada nas costas… Quem é?

Meu pai soltou uma longa gargalhada e depois tomou o último gole de seu copo:

— Não leve Sir Alencar a sério, ele gosta de chamar atenção e normalmente faz isso do modo mais impróprio possível. É um homem muito inteligente e por isso o mantenho a meu lado, mas é orgulhoso e vaidoso.

— Mas… existe essa tal mulher?

— Provavelmente não. Metade do que Sir Alencar diz, existe apenas em sua cabeça. Ele estava começando a narrar uma história, que tinha ares de anedota. Mas como infelizmente não terminou, não sei, com certeza, do que se trata.

Fiz uma mesura e deixei-o em seu escritório. Ao passar pelo gabinete, sofri a tentação de encostar à porta e ouvir o que diziam, mas o cansaço falou mais alto e voltei para meu quarto.

O jantar foi servido em meus aposentos nessa noite. Salada de aspargos com cebolas fritas e queijo de cabra. Quiche de abóbora. Bolo de espinafre. E para finalizar um creme de batatas com tomate, que eu simplesmente venerava. Fiz minha refeição com calma, enquanto observava as estrelas alegrando o céu. O cheiro de jasmim me enchia com uma inexplicável alegria.

No dia seguinte, encontrei meu pai já em seus trajes de montaria. Fizemos nosso desjejum com tranquilidade, envolvidos em uma conversa amena. O dia estava bem outonal, um céu palidamente azul nos aguardava. Quando deixamos a casa principal, nossos cavalos já estavam devidamente selados. Amora recebeu meu peso com indisfarçável alegria e tive trabalho para mantê-la em rédea curta, controlando seu galope. Minha égua sentia minha falta, ressentia-se por passar tempo demais presa. Repreendi-me mentalmente, jurando que encontraria um jeito de lhe dar mais atenção. Talvez eu estivesse exagerando em minhas aventuras com Matilde.

Não houve nada de especial naquele passeio, a não ser a lembrança de quando fazíamos isso, com frequência, em minha infância. Como antigamente, apostamos corrida, disputamos comando dos cavalos, demonstramos os truques aprendidos por nossos animais. Desfrutamos da companhia um do outro e éramos, novamente, apenas pai e filha. E como ele parecia feliz por isso! Há quanto tempo não o via sorrir com tanta espontaneidade, com tanta genuína alegria. Estávamos tão felizes que, por uma fração de segundo, imaginei como seria se minha mãe estivesse viva e pudéssemos cavalgar os três unidos, uma família como outra qualquer.

O incidente com a Pedra me deixou alguns dias afastada do convívio de Matilde. Quando voltei a visitá-la, recebeu-me alegremente e curiosa por meu sumiço. Pela primeira vez, no entanto, eu não podia me abrir com minha amante. Por sorte, a saudade de nossos corpos ocupou o lugar das palavras e a noite passou rápida entre abraços e afagos.

Nos três dias que se seguiram, ajudei meu pai com os preparativos para nossa viagem. A ansiedade tomava conta de mim e meus sonhos tornaram-se turvos. Meus medos, os mais inconfessos deles, volteavam minha cama nas horas escuras, banhavam-me em suor, em delírios medonhos. Via soldados, ouvia gritos, via sangue do lado de fora de nossos muros. Em cada um desses sonhos, a sensação de que perdia algo insubstituível, azucrinava-me mais do que o medo da morte. O sangue, cada dia mais nítido em meus tormentos noturnos, tinha quase que um aroma conhecido. Como se eu pudesse tocá-lo e dizer de quem era.

Acordava sempre uma fração de segundos antes de reconhecer o corpo que jazia imóvel, morto, ao lado da muralha do castelo. E, com o despertar, vinha um choro profundo, como se eu o chorasse desde minha primeira aurora, como se eu – de certo modo – fosse o próprio choro.

Na penúltima noite antes da viagem, decidi me despedir de Matilde. Apesar das afirmações de meu pai de que a viagem seria curta, eu não sabia quanto tempo permaneceria fora. Meu intento foi frustrado, no entanto. As cercanias da casa vermelha estavam cobertas por soldados e, dessa vez, compreendi logo à primeira vista o que aquilo significava. Certo rancor se apoderou de mim, um pedaço de vaidade dolorida, por ser obrigada a dividir os carinhos que eu amava receber. E um desejo, quase infantil, de tê-la só para mim, me fez planejar desposá-la, quando finalmente fosse meu o poder sobre as leis e costumes do reino.

Apesar de meu desagrado, no entanto, talvez tenha sido providencial que meu encontro com Matilde tenha falhado. Por qualquer coisa mágica inexplicável, a frustração e a raiva me fizeram adormecer rapidamente e minha noite foi calma, sem sonhos. Acordei descansada como há muito não acontecia. E vivi com entusiasmo, o dia que antecedia minha escapada daqueles muros. Como seria a sensação de plenitude? Como era olhar em volta e não enxergar freios? Não ter descanso para os olhos doía muito?

Na infância fizera essas perguntas a meu pai um sem-número de vezes. Foi difícil me convencer de que não podia, mesmo, conhecer o mundo lá fora. E agora que o momento de vencer o tabu chegava, um medo impreciso e inexplicável vinha tentando me dominar.

Temendo uma noite realmente ruim, mandei um recado a Malvina, para que me enviasse algo que pudesse garantir uma boa noite de sono. Um chá com sabor suavemente floral me foi servido na hora de deitar. Desconheço o que pudesse ser, mas seu efeito foi divino.

A noite ainda estava presente no quarto quando Lara me acordou, por ordem de meu pai. Seu cheiro de menina acarinhou minhas narinas, enquanto ela tentava, a todo custo, trazer-me de volta à vida. Num gesto impensado e bastante irresponsável, tomei-a em meus braços e a coloquei deitada sobre meu corpo. Um desejo enorme de beijá-la comandava meus sonolentos gestos, mas me recompus com rapidez e a soltei, antes que o mal estivesse feito. Minha aia olhava-me com eto. Um pouco desconcertada com minhas ações, ordenei-lhe que buscasse minha roupa.

 



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