Aléxia acordou com uma horrível dor de cabeça. Seu estômago estava dividido entre uma incômoda azia e a vontade de pôr seu conteúdo para fora. Não tinha coragem de abrir os olhos, muito menos de se mexer e permaneceu imóvel por um longo tempo.
Gemeu alto, resistindo a vontade de vomitar.
Não se recordava como chegou em casa, mas a dor de cabeça lhe dava uma ideia do estado em que estava. Raras, eram as vezes em que exagerava na bebida, mas seu nervosismo com o casamento que se aproximava e o aparecimento repentino de Nicole, acabaram por fazê-la desejar tomar um porre. E foi isso que fez.
Finalmente, tomou coragem para abrir os olhos e a luz a cegou por alguns instantes. Sua cabeça latejou mais forte, como o badalar dos sinos de uma igreja, então percebeu que aquele não era seu quarto e, com certeza, não estava na casa de Vivian ou Mateus. Se encontrava cercada por paredes de um tom azul celeste e sem quadros. Os únicos móveis eram a cama em que estava e um criado mudo ao lado desta.
Havia alguém deitado ao seu lado. Uma mulher.
Seus cabelos loiros e longos, espalhavam-se sobre o lençol, imaculadamente, branco. Aléxia o ergueu e deparou-se com seu corpo nu. Tinha saído do bar com alguém e não se lembrava de nada. Remexeu-se, incomodamente, até que a voz da sua acompanhante lhe atingiu como uma bofetada.
— Quer parar de se mexer? Estou tentando dormir!
Assustada, saltou da cama, arrastando o lençol consigo. Nicole se voltou para fitá-la com expressão surpresa e olhos sonolentos, que logo adquiriram um brilho divertido.
— O quê… Onde eu… — mal conseguia pronunciar as palavras.
— Onde você está? — Nicole completou a frase e sorriu.
Aléxia balançou a cabeça, afirmativamente.
— No meu apartamento.
— Como assim, seu apartamento? — Franziu o cenho.
A moça riu com charme, uma risada baixa, suave. Então, levantou-se preguiçosamente. Bocejou algumas vezes antes de puxar uma cortina e abrir completamente a janela. Vestia um baby-doll preto que contrastava com a brancura da sua pele e deixava muito mais à mostra do que escondia.
Desconfortável com aquela visão, Aléxia desviou o olhar.
— Bem, nos divertimos tanto ontem à noite que resolvemos continuar a diversão em casa. E, nossa, você podia ter me contado o quanto é boa de cama antes! Acabou comigo! — Sorriu, maliciosa.
Aléxia voltou a encará-la, deixando o queixo cair.
— Nós… Nós trans…
A ideia a deixou aturdida por um instante, então a ficha caiu, recordando-a de com quem estava falando.
— Não, claro que não! Você é a pessoa mais preconceituosa da face da Terra e está fazendo piadas sobre transar com uma lésbica! Devo ter bebido o bar inteiro! — Levou a mão à cabeça na esperança de conter a tontura que assomava.
Nicole gargalhou, uma mão na cintura e outra nos cabelos, bagunçando-os charmosamente.
— Claro que estou brincando! Mas, confesse, você adorou a ideia — riu mais alto ao ver a cara de pânico dela. — Sempre soube que você tinha uma quedinha por mim.
Se não houvesse uma cama entre elas, Aléxia a teria estapeado pela piada de mal gosto. Imaginar-se na cama com ela, era quase um pesadelo.
— Acho que o seu cigarro é falso. Está começando a ter alucinações e falar barbaridades.
Não negava sua beleza, nem charme, mas a ideia de se entregar a alguém que tornou sua vida um inferno, lhe parecia um filme de terror. De qualquer forma, era um absurdo, já que Nicole era hétero e um poço de preconceito.
Passou a mão sobre os olhos, imaginando o que, além de vodca, tinham colocado no seu copo para estar com uma ressaca daquelas e ouvir piadas daquele tipo, vindas do seu pior pesadelo.
— A verdade é que vocês exageraram na bebida e, como era a única que estava sóbria, sobrou para mim leva-los para casa — Nicole explicou, finalmente, soltando um risinho.
— Se você nos “levou” para casa, por que não estou em casa? — Respirou pesadamente, sentindo um gosto amargo na boca. Tinha quase certeza de que devorou um pneu velho, talvez uma bota. E não duvidava que tinha sido ideia de Nicole.
A rival se empertigou.
— Agradeça ao Mateus por isso.
— O que aconteceu?
— Não se lembra de nada mesmo? — Ela sorriu, descrente.
— Se me lembrasse, não estaria perguntando! — Gritou, exasperada.
A moça ergueu as mãos, na defensiva.
— Ok, desculpe — sentou na cama. Abriu a gaveta do criado mudo, resgatando do seu interior uma carteira de cigarros e um isqueiro.
— Sério?! Você acabou de acordar — Aléxia olhou com descrença para o cigarro que ela havia acabado de acender.
Nicole deu um longo trago e soltou a fumaça lentamente com um sorriso a brincar em seus lábios, ignorando que isso fez o enjoo dela piorar.
— Meu único vício, aposto que também tem os seus.
— Não — respondeu, enfática, e a viu dar de ombros, vagando o olhar pelo teto durante alguns segundos.
— Voltando ao assunto, Mateus tomou um porre e, quando estávamos saindo, achou que um cara estava dando em cima da Vivian.
Um suspiro longo e irritado escapou entre os lábios de Aléxia.
— Droga!
Não precisava ouvir o resto para saber o que tinha acontecido.
— Pois é! O valentão se meteu numa briga. A polícia foi chamada e Vivian o acompanhou até a delegacia. Então, tive de ser sua babá — soprou a fumaça, enquanto abria um sorriso cínico.
Aléxia apertou o lençol, que envolvia seu corpo, com mais força. Lá estava ele! Aquele sorriso era como uma bofetada em seu rosto, a recordando das muitas vezes em que Nicole o exibiu após uma piada de mau gosto a seu respeito.
Respirou fundo algumas vezes, controlando a vontade de gritar uma série de insultos e, junto com eles, despejar todo o conteúdo do estômago no piso lustroso de madeira.
— Por que me trouxe para sua casa? — Conseguiu perguntar entredentes, a cabeça latejando com mais força.
Nicole suspirou, parecia entediada.
— Você estava tão bêbada que nem conseguiu me dizer onde morava. Tentei ligar para a Vivian, mas não consegui, então te trouxe para cá.
— Você estava drogada ou coisa parecida? Onde estão minhas roupas e por qual razão não me colocou para dormir no sofá? Ou, sei lá, na casinha do cachorro?! Se bem me lembro, você sempre me quis o mais longe possível, de preferência, fora deste planeta.
Nicole foi um pesadelo para ela durante a universidade. Mesmo morando sob o mesmo teto, mal conversaram durante quatro anos e a razão era o preconceito gritante dela. As colegas tentavam amenizar o clima entre as duas, mas ficava difícil, já que a moça não perdia a oportunidade de destilar seu veneno.
A loira se pôs de pé, foi até a porta e a escancarou. Não sorria mais e seus olhos eram duas esmeraldas turvas e sem brilho. De onde estava, Aléxia podia ver quase todo o outro cômodo. Era uma sala grande, com janelas altas e, absolutamente, nenhum móvel.
Nicole saiu do quarto e ela a acompanhou para constatar que o apartamento não tinha sequer uma cadeira.
— Estou me mudando. E, já que não tenho sofá, nem cachorro, imaginei que ficaria mais confortável na cama — explicou, com um sorriso sem graça.
Por alguns segundos, um silêncio incômodo reinou entre elas. Pela primeira vez, Nicole parecia estar desconfortável. Deu alguns passos lentos pelo cômodo, então se voltou para fita-la.
— Olha, sei que fui muito sacana com você…
— Sacana?! Você era uma vaca!
Ao contrário do que esperava, ela riu do comentário.
— Eu era mesmo uma vaca — deu de ombros e liberou uma pequena nuvem de fumaça. — Mas as pessoas mudam e eu aprendi algumas lições nos últimos anos…
Exasperada, Aléxia a interrompeu.
— Para ser sincera, não estou nenhum pouco a fim de saber o que você aprendeu ou deixou de aprender. Só quero saber o que aconteceu com as minhas roupas.
Nicole a observou por um longo segundo, enquanto terminava seu cigarro. Parecia analisar seus traços com atenção, causando-lhe ainda mais irritação. Por fim, ela deu de ombros, como se tivesse chegado à conclusão de que não valia a pena continuar aquela conversa.
— Estão na varanda. Tive de te jogar debaixo do chuveiro com roupa e tudo…
Aléxia não ouviu o resto, pois já estava se dirigindo para o local indicado. Suas roupas ainda estavam úmidas, mas as vestiu mesmo assim. Dobrou o lençol com cuidado, o depositou sobre a cama e se dirigiu para a porta da rua com passos duros e orgulhosos, apesar da vergonha que sentia, enquanto recebia um olhar enigmático da mulher que mais odiou na vida.
Encarou a porta aberta por alguns segundos, lutando contra o desejo de fechá-la com força e nunca mais olhar para trás. Mas, se voltou para fitar Nicole pelo que esperava, fosse a última vez.
— Obrigada pelo abrigo — agradeceu, engolindo seu orgulho. Então, partiu sem lhe dedicar outro olhar. Sequer viu o sorriso divertido, em seus lábios, se curvar e sumir lentamente em uma expressão de desgosto.
***
Vivian estava de péssimo humor. Passar a noite na delegacia com Mateus bêbado não era a sua ideia de diversão para o fim de semana e, como se não bastasse isso, tinha recebido uma ligação nada amigável de Aléxia.
Uma brisa afável de fim de tarde acariciou sua pele, suavizando a expressão zangada da face bronzeada dela.
— Nós precisamos ter uma conversinha! — Disse, abordando Nicole, na entrada do prédio em que morava e, esta, lhe sorriu, dizendo:
— Por que tenho a impressão de que vou levar uma bronca?
— Não sei! Você merece uma?
A loira lhe enviou um sorriso angelical. Escondia as olheiras da noite mal dormida debaixo de óculos de sol. Não tinha conseguido retornar ao sono após a saída de Aléxia, então se dedicou a embalar os últimos objetos que restavam no apartamento e os despachou para a nova casa.
— Não me lembro de ter feito nenhuma travessura, tia Vivian? — Fez um biquinho, deixando que ela admirasse a suavidade daquele gesto por alguns segundos. — Vem! Estava indo dar uma volta para arejar as ideias antes de ter que ir, de vez, para minha nova casa.
Enlaçou o braço dela, conduzindo-a pela calçada com passos lentos e seguiram em silêncio por algum tempo em que Vivian aproveitou para se acalmar um pouco, enquanto observava o semblante sério, muito distante do riso de minutos antes.
— Quer falar sobre Aléxia? — Nicole indagou, adivinhando o motivo de sua visita. Sabia que, cedo ou tarde, Vivian iria questioná-la sobre isso. A ruiva deixou um suspiro irritado escapar e livrou-se do braço dela, interrompendo a caminhada.
— Quero saber o que aconteceu entre vocês noite passada. Ela me ligou, mais cedo, insultando até a bisavó da minha mãe e, quando fui até a sua casa, me deixou falando com a porta.
Os lábios dela se abriram, revelando um sorriso divertido ao imaginar a cena. Era típico de Aléxia se recolher ao seu próprio mundo, lambendo suas feridas. Lembrava-se bem do isolamento dela na época da faculdade e sabia que era a maior culpada disso.
— Nada — respondeu, finalmente. Então, deu de ombros e retornou para a caminhada.
Vivian a seguiu, esforçando-se para acompanha-la, já que Nicole tinha aumentado o ritmo de seus passos e se distanciava rapidamente.
— Nada não é motivo para ela ficar tão zangada. Alê é um poço de gentileza, mas quando te viu, ontem à noite, mal a reconheci.
Os lábios rosados de Nicole, principiaram um sorriso que não chegou a se completar. Poderia dizer o mesmo. Mal reconheceu a Aléxia da noite passada, mas a daquela manhã era a mesma de que se recordava. O ódio em seu olhar era o mesmo que cativou.
— É verdade o que ela me disse?
— Depende — prendeu os cabelos, que o vento insistia em lhe atirar a face, atrás das orelhas. — O que ela disse?
— Que você infernizou a vida dela na faculdade por causa da sua homossexualidade. Não pude acreditar! Logo você!
Os lábios dela se comprimiram e buscou um cigarro na bolsa, enquanto convidava Vivian a sentar em um banco. Tinham alcançado uma pracinha, onde meia dúzia de crianças brincavam, supervisionadas pelos pais.
Ela liberou algumas nuvens de fumaça, enquanto recordava o passado. Ao seu lado, Vivian batia o pé, impaciente.
— Isso é algo que nem eu mesma sou capaz de perdoar, mas espero que ela seja, um dia.
A descrença tomou conta da face de Vivian para dar lugar, em seguida, a um profundo pesar. Aléxia lhe contou histórias sobre os anos de faculdade e a maioria delas envolviam Nicole e muita tristeza.
— Hoje cedo, tive uma boa ideia do quanto a machuquei — a moça continuou devolvendo, com um sorriso singelo, a bola que caiu aos seus pés, para um garotinho suado e ofegante. — O que fiz foi importante para ela tanto quanto foi para mim, já que ainda está muito fresco em nossas memórias.
Vivian se recostou no banco, apertando a bolsa no colo.
— Eu não entendo… — balançou a cabeça, confusa.
Conhecia Nicole há pouco tempo, mas de uma coisa tinha certeza, ela não era preconceituosa. Não fazia sentido.
A moça se colocou de pé, convidando:
— Venha, vamos tomar um café na esquina — apontou para a cafeteria do outro lado da rua. — Tenho uma história longa para te contar.