ALÉM DAS PALAVRAS

14. HÁ ESPERANÇA?

Vivian lhe empurrou um suco verde e Aléxia juntou as sobrancelhas julgando que, provavelmente, tinha um sabor horrível. 

— Você está querendo me assassinar com grama? — Perguntou e recebeu uma careta como resposta. Mesmo assim, rejeitou o suco, como fez com todas as outras tentativas dela de a alimentar. 

Tinham voltado para casa ainda pela manhã e, desde então, não saiu do quarto. 

— Uma hora você terá que se alimentar. 

Exalou fortemente. Não queria preocupar a amiga, mas não tinha ânimo para mais nada. Não conseguia se desvencilhar da dor da decepção que lhe consumia a cada segundo do dia. Sempre que fechava os olhos, revivia aquela descoberta cruel. 

— Não agora. Por favor, só me deixe só — pediu e virou-se na cama para que a amiga não visse as lágrimas que começavam a brotar em seus olhos. 

Vivian permaneceu no quarto por mais alguns minutos. A fitava em silêncio, sentindo-se impotente, pois jamais a viu daquele jeito. Atormentada com suas dores do passado, sim, quando se permitia falar sobre isso durante alguma conversa mais profunda ou bebedeira, mas nunca tão triste e com olhar tão perdido. Era como estar diante de uma estranha. 

Mateus e Nicole conversavam, sentados à mesa da cozinha e se voltaram para a porta quando a viram entrar com o copo intocado. A loira suspirou e afastou alguns fios de cabelo que lhe caiam sobre os olhos. 

O universo conspirava contra ela. Assim pensava. 

Justo quando as coisas pareciam correr a seu favor, aquela confusão aconteceu. Por um lado, achava que tinha sido bom. Por outro, o tocante a sua “relação” com Aléxia, considerava um desastre. Conhecendo a ex-colega, sabia que ela se fecharia e afundaria nas suas dores. Era preciso lhe dar algum espaço. O problema era que não queria se afastar dela, mas sabia que era necessário. 

— Eu tentei, mas ela se recusa a comer. 

— Não tomou nem água hoje — pontuou Mateus, também preocupado. 

Normalmente, não se importava com esse tipo de coisa. Sabia que não tinha jeito para ser o tipo de amigo que Vivian era, mas estava verdadeiramente preocupado com Aléxia e, também, com Nicole. Conhecia o suficiente da amiga da sua namorada, para saber que aquela confusão poderia refletir nos planos dela de tentar conquistar a moça, mesmo acreditando que uma relação entre as duas jamais seria possível e, se o destino resolvesse brincar e uni-las, duraria muito pouco. 

Vivian enfiou o copo na geladeira e colocou as mãos na cintura. 

— Preciso trabalhar. Infelizmente, ninguém deixa pra ficar doente depois do carnaval. Mas não quero deixá-la sozinha. 

— Eu fico com ela. — Nicole se prontificou, acendendo um cigarro. Sorriu, apagando o isqueiro. Tamborilou os dedos no tampo de madeira da mesa e liberou uma lufada de fumaça, pensativa. — Podem ir. Juro que só vou ficar de olho nela. Sem brigas, sem provocações. Apenas companhia. 

— Tem certeza? — Vivian arqueou uma sobrancelha em dúvida. Não por Nicole, pois estava certa de que ela faria exatamente o que disse, mas por Aléxia que tendia a transferir sua raiva para outras pessoas quando se encontrava perdida, como naquele momento. 

Não era comum, mas já tinha visto acontecer e temeu que a frágil relação entre as duas se tornasse, novamente, uma confusão de mal-entendidos, verdades não reveladas e ódio sem sentido. 

— Posso tentar trocar com alguém… — insistiu. 

— É carnaval, duvido que consiga trocar o plantão. — Jogou o isqueiro sobre a mesa, displicente. — Relaxe. Ficaremos bem. 

*** 

Aléxia sofria por ter vivido anos amando alguém que tinha vergonha do que sentia por ela e do que era. Sofria por descobrir que o irmão a quem tanto amava e pelo qual havia sacrificado sua felicidade e o convívio de sua família era, na verdade, um traidor. 

Estava de coração partido por dois tipos de amor. Seus sentimentos haviam sido esmagados pela dupla decepção e, mesmo querendo, não conseguia afastar de si a dor que lhe corroía por dentro. 

Como desejava nunca ter conhecido Lis. Ansiava expurgar as lembranças dela, de seus beijos, de suas mentiras e dos laços que destruiu. Enxugou uma lágrima com as costas da mão, ouvindo o som de passos e o ranger do portão ao ser aberto e depois fechado. 

Finalmente, estava só. 

Contudo, um minuto depois, a porta do quarto foi aberta e o perfume de Nicole invadiu o ambiente, lhe trazendo recordações da noite passada entre os braços dela. 

Estava de costas para a porta, enroscada entre os lençóis, apesar do calor intenso daquele fim de tarde. Podia sentir o olhar esmeralda e enigmático sobre si e desejou voltar no tempo para reviver aqueles momentos de luxúria e, ao mesmo tempo, serenidade. Entretanto, falou ácida: 

— Vá embora. Quero ficar sozinha! 

Nicole permaneceu em silêncio por alguns instantes. Fechou a porta atrás de si com um leve ruído e deslizou o olhar pelo cômodo. Não se surpreendeu ao descobrir que não havia nada fora do lugar. O jeito “largado” de Aléxia, só se aplicava ao modo como se vestia e, assim como o resto da casa, tudo estava exageradamente limpo e arrumado. 

Caminhou pelo cômodo, espiando tudo com interesse desmedido; ciente de que ela acompanhava cada um dos seus passos através do espelho na porta do guarda-roupas, para o qual estava voltada. Parou ao lado da cama, deslizando o olhar pelas curvas nas quais tinha se aventurado na noite anterior e piscou algumas vezes afastando a imagem daquele corpo nu. 

Um sorriso se formou em seus lábios, então deitou ao lado dela e enlaçou sua cintura, grudando-se às suas costas; a respiração lhe acarinhava a nuca e Aléxia tremeu, ligeiramente. 

— O que está fazendo? Eu disse que quero ficar sozinha. 

O corpo de Nicole agitou-se quando riu. 

— Querer e poder são coisas bem distintas, Alê. 

A noite se iniciava e o quarto estava envolto em uma agradável penumbra. 

— Você quer, mas não pode ficar sozinha agora. Gosta de “lamber” suas feridas escondida, mas eu não vou te deixar. Pelo menos, não agora; não está bem para isso. Então, chore. Grite. Durma, se precisar. Estarei ao seu lado, enquanto sente pena de si mesma. 

O corpo entre seus braços enrijeceu. 

— Você é uma pessoa horrível — acusou, enervada. 

Ela riu de novo, puxando-a para mais perto. Encaixavam-se com perfeição e como ansiava que fosse assim por todas as noites a partir dali. 

— Você não tem ideia do quanto isso é verdade — beijou-lhe a nuca. Sabia que não devia fazê-lo, mas o desejo de dar um pouco do carinho que lhe dedicava era mais forte que o seu bom senso. 

Um arrepio bom percorreu o corpo de Aléxia, mas a decepção que a consumia afastou a sensação, assim como as lembranças do cuidado com que ela lhe tratou após a saída de Lis e companhia daquele quarto, pela manhã. Foi nos braços dela que encontrou abrigo e conforto para suas lágrimas. 

— Foi só uma transa, Nicole! — Não, não tinha sido, mas a raiva dominava suas palavras e sabia que chegaria o momento em que se arrependeria por tê-las proferido. — Não nos casamos, sabia? 

Desvencilhou-se do abraço dela, mas não se afastou. 

— Mesmo que não tivesse sido só isso, você ainda é a Nicole de que recordo — a dor acrescentava fel e meias verdades ao que dizia — e me pergunto qual o tamanho do caminhão que deve ter te atropelado para você beijar e dormir com uma mulher! 

Queria magoá-la. Precisava expulsar aquela tempestade de sentimentos negativos que devastava seu interior e Nicole se tornou o alvo perfeito naquele momento. Se voltou para fitá-la e encontrou um olhar sombrio e ligeiramente marejado. Mesmo assim, Nicole inspirou e abriu um sorriso largo, ainda que não tivesse o brilho costumeiro, e perguntou: 

— E agora, quem está sendo uma pessoa horrível? 

Aléxia engoliu em seco, mas continuou a mirá-la com raiva, ainda que abalada pela voz calma e suave que projetava. Estava mesmo sendo malvada com ela por uma necessidade desprezível de fazê-la se sentir tão infeliz quanto estava, mas não podia e não sabia como se controlar. 

— Ah, eu conheço os estágios da dor, Alê. Não vai conseguir me magoar como deseja. Pelo menos, não pode fazer isso com a verdade. Não mais. — Expulsou o ar dos pulmões com pesar. — Alguém já tentou antes de você e me fez perceber que a verdade não machuca. Ela liberta. 

Aléxia encolheu-se, envergonhada por desejar feri-la quando, na verdade, só desejava que ela continuasse a abraçá-la. 

— Eu sei que sabe o que sinto — Nicole revelou. 

Não foi muito difícil chegar a essa conclusão. Quando Aléxia saiu do quarto com o irmão, pegou-se a recordar a noite que passaram juntas. O modo como ela agiu depois de retornar da conversa com Lis foi muito diferente do seu normal. Juntou essa impressão com o fato de que apareceu logo depois da conversa que teve com Vivian e Mateus, debaixo da jaqueira. Aliás, foi de lá que Aléxia veio e lhe ocorreu que tivesse ouvido sua declaração. 

Fazia todo o sentido. 

Como confirmação final, Mateus deixou escapar que Vivian e ela conversaram sobre o seu envolvimento com outras mulheres. Aléxia a provocou e se insinuou sem reservas, pois tinha certeza de que não seria rejeitada. 

— Você se aproveitou disso na noite passada — acusou e os olhos de um azul cristalino fugiram dos seus e pousaram no branco do teto. 

Deslizou a mão pela face bronzeada e beijou-lhe a testa. 

— Eu devia me sentir magoada e revoltada, assim como você está se sentindo agora, mas entendi, há muito tempo, que devemos aproveitar cada momento, bom ou ruim, que a vida nos oferece — arqueou os lábios e Aléxia a fitou novamente. — E você não me deu apenas um momento, me deu um sonho realizado. 

Enxugou as lágrimas dela com as pontas dos dedos. 

— O “caminhão” que me atropelou, não era tão grande assim, mas é muito poderoso, embora nem imagine o quanto. Esse “caminhão” se chama Aléxia — riu e a puxou para si, deixando que abafasse seu choro entre os cabelos dela. — Se um dia você quiser ouvir essa história, é só pedir e não se surpreenda por ela ser triste. 

Beijou-lhe o topo da cabeça de novo e Aléxia deixou-se embalar até as lágrimas secarem e o sono chegar. Quando acordou na manhã seguinte, Nicole já havia partido. Apenas seu perfume, nos travesseiros, confirmava que tinha passado outra noite entre seus braços. 

Por um breve momento, sorriu achando isso engraçado e irônico. Mas voltou a se entregar a melancolia e a lembrança dela foi apagada pelo amargor dos acontecimentos do dia anterior. 

*** 

O sol de fim de tarde refletiu nas gotículas de água que se acumulavam sobre as pétalas das flores. O vento a envolveu com uma carícia suave. Largou o regador e sentou no batente da porta. Era a primeira vez, em uma semana, que se animava a cuidar do jardim. 

Duas semanas tinham se passado desde o carnaval e ainda se sentia devastada com tudo o que aconteceu. Retornou para sua rotina, mas cada dia exigia um grande esforço de sua parte. Trabalhava furiosamente a fim de ocupar a mente; falava apenas quando questionada e fingia achar graça quando lhe contavam uma piada. Mas as coisas de que gostava, já não tinham graça. 

Vivia no automático e questionava-se quando aquela melancolia iria passar. Temia que jamais a deixasse e que aquele reflexo pálido e doentio continuasse a encarando todos os dias, a partir dali, no espelho. 

Para os colegas de trabalho, afirmava ter pego uma virose durante o feriado e, assim, ninguém insistia em lhe questionar mais profundamente sobre o que se passava consigo, apesar da magreza e introspecção evidentes. 

Pelo que soube, no fim das contas, o casamento acabou acontecendo e chegou à conclusão de que Lis e Alberto realmente se mereciam. No fundo, sentia pena deles. Ambos se enganando, maltratando seus corações, destruindo-se aos poucos. 

Fez uma careta, se pôs de pé e entrou em casa. 

Vivian logo chegaria. A amiga a visitava sempre que possível e, quando não podia, ligava. Curiosamente, Mateus fazia o mesmo. Mas no caso dele, suspeitava que era uma exigência da namorada ou, talvez, de Nicole. 

A última vez que viu a ex-colega, foi o resultado de um acaso, quase uma semana antes. Estava saindo da casa de Mateus, onde tinha ido jantar após muita insistência de Vivian, quando se encontraram na saída. Mal conversaram e todo o diálogo se resumiu a um “Oi, tudo bem?” e alguns inclinares de cabeça afirmativos. 

Foi um momento estranho. 

As duas se encararam longamente, mas não havia palavras mudas como as tantas que houveram naquele fim de semana na chácara; como as muitas que seus olhos e sorrisos desenharam durante aquela noite de paixão desenfreada. Só existia o silêncio e ele cresceu tanto que se tornou desconfortável. Quando conseguiu pensar em algo aceitável para dizer e que não lhe soou idiota na cabeça, Nicole já tinha dado as costas e entrado no apartamento do amigo. 

Foi com pesar que viu a porta se fechar, mas aquela vozinha em sua cabeça disse, aliviada: “melhor assim”. Contudo, sentiu que algo se partia dentro de si. 

Não se apegou muito a essa impressão, já que se encontrava agastada, pois naquela tarde recebeu a visita dos pais. Tiveram uma conversa longa e muito desgastante; eles insistiam que tentasse perdoar o irmão. Ela compreendia o desejo deles de unir a família novamente, mas sabia que, mesmo que encontrasse forças para perdoar Alberto, nada voltaria a ser como antes. 

Mesmo assim, reencontrar a “namorada” foi como receber uma lufada de ar puro de uma manhã ensolarada e alegre. Pensou em voltar para a casa do amigo e puxar conversa, descobrir como estava passando… Em vez disso, seus pés a guiaram para a direção contrária, para cada vez mais longe dela. 

Ouviu o portão ranger quando foi aberto e a porta da sala bater ao ser fechada. Vivian tinha chegado. A amiga possuía as chaves e, obviamente, não se deu ao trabalho de anunciar sua chegada tocando a campainha. Não se apressou em ir recebê-la, já que tinha acabado de sair do banho. Vestiu-se com calma. 

Aguardou as três batidinhas na porta do quarto, como de hábito, mas elas não soaram. Em vez disso, o cheiro de cigarro lhe chegou. Saiu para deparar-se com Nicole a investigar sua estante de CD’s com uma concentração exagerada. Ela deslizou um dedo longo sobre as capas e escolheu um. O colocou no aparelho, ainda sem se voltar para a porta do quarto. 

Parecia tão natural em sua casa, como se tivesse estado ali a vida inteira; como se aquele também fosse seu lar. E um estranho pensamento lhe passou, rápido como um raio anunciando uma tempestade ao longe. Imaginá-la ali, todas as noites, não a desagradava. 

Reparou que estava muito confortável, usando short e camiseta; os pés estavam descalços. 

— O que você fazendo aqui? Como entrou? 

Ela se voltou com um sorriso tão cristalino, que seu coração palpitou sob o efeito dele. “Uma transa e você já fica assim, seu bobo?”

— Oi, “amor”! Hoje sou sua babá! 

— Como é que é? 

Ela apertou o play no aparelho e uma música suave se espalhou pelo ambiente. Então, se aproximou; a cintura subindo e descendo, as mãos enfiadas nos bolsos, os lábios arqueados deixando os dentes perfeitos à mostra. Curvou-se e lhe sapecou um beijo no rosto, muito próximo aos lábios, lhe causando um arrepio de satisfação. 

Por fim, deslocou-se até o sofá e pegou uma das cervejas sobre a mesa de centro antes de sentar-se. Ofereceu-lhe a outra e deu um gole farto na sua, explicando: 

— Vivian está de plantão hoje e me ofereci para dar uma “olhada” em você. — Deu uma tapinha no bolso e as chaves que a amiga lhe deu tilintaram como se fosse uma provocação ao bom humor de Aléxia, que aceitou a cerveja e tomou um gole longo, jogando-se sobre a poltrona ao lado do sofá. 

— Aff! Não sou criança! 

— Mas está se comportando como uma, pelo que soube — puxou as pernas para o sofá. 

Estava tão à vontade que Aléxia se sentiu uma intrusa em sua própria casa. Mas não lhe passou despercebido que também parecia um pouco abatida e ligeiramente mais magra. Revirou os olhos, a música invadindo seus sentidos e confessou para si mesma que tinha sentido falta dela e de seus sorrisos irônicos. Mas havia passado aquelas semanas tentando não pensar no que aconteceu naquele fim de semana fatídico; tanto os momentos ruins, quanto os bons. 

— Pensei que não bebesse mais — comentou, vendo-a tomar mais um gole da cerveja. 

Nicole balançou a garrafa com ar de zombaria. 

— É refrigerante. Coloquei um pouco na garrafa. Pensei que se sentiria mais confortável se aparentasse que bebia com você. 

— Você é muito esquisita! — Fez uma careta, deliciando-se com o sorriso jocoso que tomou a face dela. 

Realmente, tinha sentido falta daquilo. Dava-se conta de que tinha sentido muito mais saudade do que era capaz de reconhecer. 

 — Se eu concordar, você come um pedaço de pizza? — Nicole apontou para a caixa sobre a mesinha de centro com um jeitinho provocante. 

Aléxia admirou, sentindo um pouco de inveja da calmaria que aparentava. Ela conduzia a conversa com uma tranquilidade assustadora, enquanto se sentia cada vez mais desconfortável e até sufocada, pois sabia que o assunto logo descambaria para os sentimentos dela. Sentimentos que ainda a surpreendiam, assustavam e confundiam. 

— Quatro queijos? 

— Napolitana. — Abriu a caixa. 

Aléxia deu de ombros e pegou uma fatia. Não tinha um pingo de fome, mas algo no olhar dela fez com que se movesse. 

— Temos cerveja e pizza. Uma noite de amigas, então! Está mesmo querendo bancar a minha babá. — Riu e perguntou: — Não vai me perguntar se estou bem? 

— Não. 

— Por quê? 

Nicole inclinou a cabeça loira, admirando sua figura. Os fios se derramaram sobre o ombro, espalhando o perfume deles pela sala. 

— Porque você me parece ótima. E com isso quero dizer que adorei esse shortinho folgado que está usando — sorriu maliciosa. 

Aléxia corou. Como não esperava ninguém além de Vivian, vestiu-se de forma largada após o banho. Mesmo assim, o olhar lascivo dela fez com que se recostasse na poltrona e abrisse mais as pernas em desafio. Deixava claro que responderia à altura e divertiu-se ao vê-la expulsar o ar dos pulmões e desviar os olhos. 

A loira deixou o sorriso de lado e dedicou atenção ao refrigerante, fingindo não ouvir o clamor do seu corpo, que implorava para que fosse até ela e a tomasse como naquela noite na chácara. E como desejava isso! Tinha passado noites inteiras a relembrar aqueles momentos ou sonhando em revivê-los. 

A mirou novamente, fazendo questão de se fixar nos seus olhos, travando uma batalha com seu desejo. Embora aparentasse calma, sentia-se uma pilha de nervos. 

Foi paciente e lhe deu o espaço que precisava para curar suas feridas e imaginou que estar longe dela lhe permitiria reencontrar seu equilíbrio. Afinal, todos aqueles sentimentos estavam retornando muito rápido e tomou decisões impulsivas, alheias à sua natureza, geralmente, calculista no quesito romance. 

Vivian lhe dava notícias dela sempre que possível. Mesmo assim, percebeu em poucos dias que Aléxia havia retornado a sua vida com força total e aqueles sentimentos tinham vindo para ficar 

Lutar contra a vontade de procurá-la foi um tormento. Mas naquele dia, não resistiu mais. E quando Vivian disse que iria passar a noite com ela, pediu que lhe deixasse ir em seu lugar. Aléxia e ela tinham um assunto inacabado. Pelo menos ela, Nicole, tinha. 

— Você está decepcionada. É natural que queira um pouco de solidão, mas a vida continua e não vou ficar te passando sermões ou bancando sua psicóloga. O máximo que vai ouvir de mim é o mesmo que já lhe disse em outro momento: “cresça” e viva sua vida sem depender dos outros. 

Pela primeira vez, em dias, Aléxia sorriu de verdade.  

— Você é uma cretina, Nicole, mas admito que é a coisa mais sensata que alguém me disse em relação a isso e concordo com cada palavra — voltou a depositar a fatia de pizza na caixa, sem dar sequer uma mordida. 

A loira riu. 

— Ótimo! 

— Ótimo! Agora, me fala o que está fazendo aqui, de verdade. 

Algum tempo se passou, até que ouvisse a resposta. Nicole fitava a parede intensamente, como se ali estivesse a solução para os problemas do mundo. De repente, perdeu o jeito faceiro. 

— Só queria te ver, saber como está e fugir um pouquinho da minha vida, indo a um lugar onde me sinto bem. 

Os olhos verdes exibiam uma expressão melancólica. 

— Sente-se bem na minha casa? 

— Não. — Balançou a cabeça e escorregou os dedos entre os fios longos. — O que quis dizer é que me sinto bem onde você estiver. — Encolheu as pernas e as abraçou, mudando de assunto. — Então, o que tem feito ultimamente? 

Aléxia limpou a garganta, tentando se recuperar daquela declaração tão direta e tocante. Novamente, Nicole arranhava a superfície daquele sentimento enterrado em seu peito. 

— Só trabalhando muito. 

Não sabia o que sentia por Nicole, mas tinha certeza de que já não era ódio. Rancor sempre haveria e a raiva também, mas desconfiava de que eles seriam tão pequenos que sequer lembraria deles caso continuassem a se ver. 

A grande questão era: Queria continuar vendo Nicole? 

Tinha sentido falta dela, era uma grande verdade. Estava curiosa sobre sua pessoa e seus sentimentos. Ousou se entregar a ela como nunca tinha feito com ninguém antes, mas não sabia se queria tê-la por perto; se seria capaz de arriscar-se a ter uma amizade com ela ou algo mais. 

— Você não parece muito bem — observou, abandonando suas divagações. 

De fato, Nicole aparentava estar mais abatida que a própria Aléxia. Tinha olheiras profundas e olhar ligeiramente distante. 

— Hmm… Devia ter prestado mais atenção ao meu reflexo, hoje cedo, e posto uma maquiagem leve. — Brincou, mas era verdade. 

Além das dúvidas sobre o futuro do seu relacionamento com Aléxia, sua convivência familiar não andava bem desde que regressou do carnaval. O principal motivo disso era o fato de ter assumido sua sexualidade para a família antes do feriado e enfrentava uma forte resistência do pai. 

Não era algo que tivesse se empenhado em esconder, mas, também, nunca se esforçou para revelar. Apenas vivia sua vida sem se preocupar em dar satisfações a alguém, afinal, era uma mulher adulta e dona de seus passos. Porém, naquela tarde, uma discussão acalorada encerrou um almoço de família, deixando um grande desgosto atravessado em sua garganta. 

Não tinha mentido para Aléxia quando disse que queria fugir um pouco da sua vida ao ir visitá-la. 

— Você não é a primeira que observa isso hoje — comentou e abanou a cabeça para afastar as lembranças das palavras duras que trocou com o pai. 

— Do que está se escondendo? 

Ela se remexeu, inquieta. Parecia tão frágil que, por um instante, Aléxia imaginou estar conversando com uma estranha. 

— Só estou cansada. 

Era verdade e, embora fossem situações ligeiramente diferentes, finalmente, tinha uma ideia do quanto suas atitudes e palavras magoaram Aléxia. O que o pai lhe disse naquela tarde, não chegava nem perto do que um dia falou para a ex-colega, mas lhe machucou como se houvesse milhares de facas a rasgar sua carne. 

— Trabalhando muito? 

— Não é esse tipo de cansaço — colocou os pés no chão e sentou-se apoiando os cotovelos nas coxas. Uniu as mãos e descansou o queixo nelas. — Posso te fazer uma pergunta pessoal? 

Aléxia deu de ombros e fez um gesto afirmativo, dizendo: 

— Só se eu puder fazer o mesmo. 

Ela concordou e prosseguiu: 

— Quando descobriu que gostava de mulheres? 

A colega não evitou o riso. Nunca pensou sobre isso, mas não hesitou em responder rapidamente: 

— Desde que me lembro, sempre me interessei por garotas. Meu primeiro amor se chamava Sofia e eu tinha apenas sete anos. — Tomou um farto gole de cerveja, enquanto rememorava seu passado. — Aos doze, beijei uma garota pela primeira vez. Aos dezesseis, tive minha primeira experiência sexual. — Coçou o queixo, relaxada. — Nunca tive dúvidas de quem era e o que queria, como tantas mulheres que conheço. Apenas era, sou e sempre serei. 

Nicole sorriu, ligeiramente contrariada. 

— Você é engraçada — comentou, por fim. Os olhos fixos em um ponto qualquer do chão. 

— Por quê? 

— Em alguns momentos e situações, é tão dona de si. Mas no tocante a romance, você é insegura. — E ela própria não era assim? Pelo menos, em relação a Aléxia era. Diante dela vestia aquela máscara de sorrisos zombeteiros e gestos firmes, enquanto seu interior se desmanchava em medos e incertezas. — Quando passamos aquela noite juntas, você parecia outra pessoa. Sabia o que queria e buscava aquilo, mas na manhã antes disso, mal sabia o que fazer quando “ela” te atacou na cozinha. 

Desconcertada, Aléxia depositou a garrafa que segurava na mesinha de centro. 

— Também posso dizer que você é “engraçada”, Nicole. Sempre encheu a boca para dizer que jamais ficaria com uma mulher e outras baboseiras, mas naquela noite se derreteu entre meus braços e pediu bis. 

— Fiz muitas coisas naquela noite, Alê, e todas elas foram carregadas de sinceridade. 

— Então, me responda: Quando você deixou de ser “aquela” Nicole e se tornou esta? 

Era uma pergunta justa e Nicole fitou o teto por alguns segundos, girando a garrafa nas mãos e imaginando se saberia se explicar direito. Inspirou fundo. 

— O dia em que descobri que te amava foi um divisor de águas — confessou e assistiu a transformação no olhar de Aléxia. Era a primeira vez, de fato, que ousava dizer com todas as letras o que sentia por ela olhando em seus olhos. 

Apertou mais a garrafa para esconder o tremor nas mãos. No entanto, não conseguiu oprimir a sensação de desconforto no estômago. 

— Mas “esta” Nicole demorou muito tempo para vir à tona. Você odiava a mulher que eu era quando estudamos juntas. Acredite em mim quando digo que odiaria muito mais conhecer a mulher que me tornei depois dela. Eu odeio. — Afirmou baixinho. 

Passou a mão na cabeça; finalmente, dando voz a pergunta que a levou até ali: 

— Alê, existe alguma chance para mim, para nós? 

O silêncio ganhou espaço no ambiente, desconfortavelmente. Se pôs de pé, encarando-a com olhar marejado, enquanto gesticulava e falava. 

— Quando te procurei, queria apenas te mostrar que mudei e pedir seu perdão. Não imaginava que ainda me sentia assim, mas foi só te ver naquele bar que tudo voltou tão forte e assustador quanto antes. Quando me pediu para fingir ser sua namorada, achei que essa proximidade poderia tornar as coisas mais fáceis, mas foi justo o contrário. Então, ousei sonhar em conquistar o seu amor. 

— Nicole… 

— Eu sei que fui má e estúpida. Sei que fui horrível contigo. Mas a verdade, Alê, é que eu nunca “te” odiei. Pelo contrário, eu “me” odiava. Só transferi esse ódio para você porque não compreendia o que se passava comigo e, quando finalmente percebi que estava apaixonada por você, fugi e me atirei no fundo do poço. 

Abraçou-se, deixando uma lágrima escapar. 

— Eu te amo! Eu te amo há muito tempo. Te amo desde a primeira vez que te vi, mas fui covarde demais, cega demais para abraçar esse sentimento e me entregar a ele. 

Deu um passo à frente, chegando mais perto dela. 

— Você afirmou, naquele dia, que a noite que passamos juntas foi apenas sexo. Talvez, tenha sido para você. Mas para mim, foi amor e quero acreditar que, pelo menos um pouco, foi para você também. 

Inspirou fundo e sorriu, vacilante. 

— Me obriguei a te dar um tempo e me afastar para que, quando viesse até aqui, você pudesse me dar uma resposta sincera e amadurecida depois dessa ausência. Eu te amo, Alê! Essa é a minha verdade. Então, volto a perguntar: existe alguma chance para nós? 



Notas:



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2 Respostas para 14. HÁ ESPERANÇA?

  1. Chegou chegando!

    Torcendo para a Aléxia responder que SIM, mas algo me diz que ela ainda não está preparada.

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