Sunny – Jennyfer Hunter
Gilberto Gil – Realce
http://www.youtube.com/watch?v=WLGyrsHe0eg
Kid Abelha – Grand Hotel
http://www.youtube.com/watch?v=KKu9Ru45MXk
Você me ganhou de presente – Paula Toller
Acordar e perceber que uma nova fase da vida tinha se iniciado era no mínimo… animador. Sim! Digo animador porque, apesar de meu relacionamento com Camila não ter tido um desfecho juntas, eu podia ver claramente que agi da melhor forma possível. Não havia sido rude, ignorante ou dramática. Definitivamente essas atitudes não condizem com a pessoa que sou. Seria até contraditório da minha parte ficar chorando pelos cantos, quando na verdade, eu tinha conduzido toda a conversa de ontem. A imagem que passei foi a minha de sempre. Forte, decidida e bem resolvida com a vida. Não podia me permitir ficar na defensiva e fazer o papel da … ah coitadinha! Não mesmo! Cabia a mim então, hoje, dar mais um passo na trajetória da minha vida. E esse, com certeza, não seria um passo para trás.
Ao levantar, abri todas as janelas da casa, começando pela do meu quarto. O tempo lá fora só confirmava o que queria sentir aqui dentro. Sol, calor, energia latente correndo em minhas veias!
Sentir os raios solares penetrarem sua pele pela manhã era revigorante, energizante. De tal forma que eu precisava deles para sobreviver. Era a essência do meu ser.
Depois de deixar o sol entrar, deixei o som explodir alto, vibrante. A música? Melhor impossível! Realce, do Gil. Mais um elemento para me colocar para cima!
“Não se incomode O que a gente pode, pode O que a gente não pode explodirá
A força é bruta E a fonte da força é neutra
E de repente a gente poderá
Realce, realce Quanto mais purpurina melhor
Realce, realce Com a cor-do-veludo, com amor
Com tudo de Real teor de beleza
Realce, realce, realce, realce Realce, realce, realce, realce
Não se impaciente O que a gente sente, sente
Ainda que não se tente afetará
O afeto é fogo E o modo do fogo é quente
E de repente a gente queimará
Realce, realce Quanto mais parafina melhor
Realce, realce Com a cor-do-veludo, com amor
Com tudo de Real teor de beleza
Realce, realce, realce, realce Realce, realce, realce, realce
Não desespere Quando a vida fere, fere
E nenhum mágico interferirá
Se a vida fere Com a sensação do brilho
De repente a gente brilhará
Realce, realce Quanto mais serpentina melhor
Realce, realce Com a cor-do-veludo, com amor
Com tudo de Real teor de beleza
Realce, realce, realce, realce”
(Gilberto Gil – Realce)
Fui para a cozinha preparar meu breakfast e enquanto passava geléia no pão de forma, acompanhava os versos da canção.
Não estava feliz demais pro que aconteceu ontem?
Estava sim! E por quê eu teria que ficar pra baixo?
Vamos aos fatos. Ela apareceu pra mim enquanto ainda estava moribunda. Depois ficou toda se sentindo quando começamos a ficar e no fim, quem sabe, tenha encontrado o amor da vida dela, o verdadeiro amor. Se ela estava feliz, porque eu ficaria triste? Contribui para isso e só tenho que me sentir bem com o feito.
Entre as goladas no copo com suco de laranja e as mordidas no pão, lembrei das últimas vezes em que sentei com calma e fiz esse desjejum. Uma foi com Camila e outra com Gabriela. Engraçado como a situação em que me encontrava era totalmente diferente.
Para uma fiz café desejando que ela fosse logo embora para que eu não sucumbisse ao desejo extremo que estava de me entregar à ela. Para a outra tinha sido diferente. Foi sem pressa, com calma e com muita conversa. Havia sintonia. Tudo bem que eu não me lembrava da noite que não tivemos, mas mesmo assim tinha sido um momento super legal. Foi quase impossível não me lembrar da vez que ela fez café pra mim. Engraçado também é eu não ter parado para perceber certas coisas, pois achava que estava cega pela Camila. Sorri e balancei a cabeça negativamente.
Gabi era tão madura. Podia ver em suas atitudes e uma delas foi de ficar na dela no dia em que apaguei completamente bêbada. Apesar de ter pago aquele mico, ela não me cobrou nada. Não me pediu explicações, não foi egoista. Não. Ela foi completamente empática e divertida.
Dessa vez sorri ao mesmo tempo em que lembrava da carinha dela na cozinha enquanto me contava da minha, digamos, falha.
Outra música entrou no rádio… fazendo-me para e prestar atenção na letra.
“Se a gente não tivesse feito tanta coisa,
Se não tivesse dito tanta coisa,
Se não tivesse inventado tanto
Podia ter vivido um amor Grand’ Hotel.
Se a gente não fizesse tudo tão depressa,
Se não dissesse tudo tão depressa,
Se não tivesse exagerado a dose,
Podia ter vivido um grande amor.
Um dia um caminhão atropelou a paixão
Sem teus carinhos e tua atenção
O nosso amor se transformou em “Bom Dia”…
Qual o segredo da felicidade?
Será preciso ficar só pra se viver?
Qual o sentido da realidade?
Será preciso ficar só pra se viver?”
(Kid Abelha Grand’ Hotel)
Pensei. Na verdade, me perguntei: O que eu tinha visto em Camila?
Ah… ela era linda! Isso era fato! Aquele jeito tímido, fechado, medroso deve ter despertado meu interesse por descobrir mais sobre ela. Se me arrependo? Claro que não. Não podia negar que ela era uma pessoa interessante, atraente e … gostosa! Nossa! Como é! Cheguei a sentir um certo comichão entre as pernas. Mas o que mais? O que mais podia falar dela?
Não sabia se ela gostava de ler, qual seu gosto musical, manias, defeitos, sonhos, medos, nem se ela preferia dormir de barriga pra cima ou de bruços! Não sabia de nada. Das vezes que nos encontramos, a pele tinha falado mais alto que qualquer outro fator. Transávamos e só. Ela ia embora e eu ficava cheia de incertezas.
Pois é… ao pensar nisso, outra pergunta me veio à mente: Será que teria dado certo?
Não tenho como saber, mas não precisamos viver algo para saber se será bom ou ruim. Minha sensatez me dizia que eu tinha inúmeras e diversas razões para crer que não daria certo.
Camila não largaria a vida que lhe dá sustente e conforto. Eu? Meu conforto é justamente poder não ser de lugar algum. Podia se de alguém, um dia que sabe. Mas não nasci para ficar presa e morrer presa. Precisava de alguém que fosse como eu… gostasse de viajar, de conhecer pessoas, de aventuras. Não de alguém que tivesse medo de sair do seu mundinho.
É… definitivamente não.
O fato de ver e constatar que eu e Camila não daríamos certo não me dava o direito de ligar para Gabi. Ela não era a sobra, o resto. Não queria que ela pensasse isso de mim em momento algum.
O que eu tinha a fazer era continuar minha vida sem o desejo louco de arrumar alguém agora. O que tivesse de ser, aconteceria mais ou mais tarde.
O café acabou… a música mudou… e eu sai da cozinha. Tomei um banho gelado, coloquei uma roupa e fui dar um mergulho.
Cheguei na barraca das meninas. Quando Lú me viu veio logo querendo saber como eu estava.
– Estou ótima, Lú.
– Como assim? Não foi ontem que a Camila veio? Ah já sei!
Falou cheia de más intenções…
– Sabe é? Não sabe de nada. Nós terminamos sem ao menos termos começado.
– E você tá assim com essa cara? Nem um pouco chateada?
– Por quê ficaria, amiga? Conversamos civilizadamente e foi até bonito, sabe. Sem brigas, sem aquele dramalhão todo. Cada uma para o seu lado e pronto.
– Entendi… E ela disse porque não ficar com uma mulher como você?
– Sim. Para ficar com uma mulher como a Flávia.
Luciana simplesmente emudeceu. Os olhos dela me perguntavam como era possível. Dei um tapinha em seu ombro enquanto passava para o lado de dentro da barraca para pegar um copo d’água.
Ela continuou me olhando… somente depois que dei um gole e me diverti com a cara de perplexa dela, falei:
– Não sei porque a senhorita tá assim. Tava tão na cara… só as duas que não queriam enxergar.
– Sunny… to passada!
Dei um copo d’água pra ela e pedi pra deixar minha cartucheira lá enquanto iria dar um mergulho.
Quando estava saindo da água, preocupada com os cabelos desgrenhados, e acabei dando de cara com ela, que corria na orla.
– Oi, Sunny!
Parei e olhei para ela. Estava linda… suada… e com a respiração alterada. Sorri e respondi ao seu cumprimento.
– Desculpa… quase bati em você.
Falei enquanto tirava o excesso da água nos meus cabelos.
Ela ficou me olhando um tempo… acho que queria me dizer algo. E antes que eu dissesse qualquer coisa, ela retirou um cabelo que estava próximo à minha boca e disse:
– Vou sair hoje a noite. Quer… ir comigo?
Eu disse que não podia ligar pra ela ou procurá-la, mas acho que o tal do destino estava jogando a meu favor.
– É … pra onde?
– Importa saber?
Engoli em seco. Depois de uma direta dessa, realmente não importava.
– Importa sim. Desde que seja para algum lugar que possamos nos divertir.
Ela quase colou o corpo no meu… sua boca quase tocou a minha… passou a língua nos lábios… sorriu… e sussurrou:
– Você vai se divertir como nunca.
Aceitei o convite, que mudou minha vida.
Seis meses se passaram…
As roupas estavam jogadas no chão e nós lá… em cima da cama… ofegantes… completamente cansadas, exauridas… e ela, olhando pra mim com aquele sorriso bobo. Seus dedos acariciavam minha barriga, causando em mim uma tensão elétrica maior que 220volts. Cada vez que fazíamos amor, era uma nova descoberta… novo jeito de gozar para ela, de sorrir com ela, pra ela… de me permitir ser dela.
Minha vida tinha mudado completamente… ela me estimulava a criatividade para criar minhas artes. Passei a pintar telas depois que deixei ela entrar no meu cotidiano. Em pouco tempo, tínhamos viajado pelo menos duas vezes por mês e nos entendido muito bem.
Ela me deu um beijo no ombro e disse que ia ao banheiro.
Reclamei dizendo que ela não podia demorar….Virei para o lado da cama que ela ficava e justamente onde ficava o microsystem também. Pois é, ela tinha se apossado do meu brinquedinho. Liguei o som e fiquei ouvindo a canção… sorrindo e pensando na mulher perfeita pra mim…
“Você me ganhou de presente
Com laço e etiqueta de garantia
Foi num dia de alegria
Você fez bem o gesto que eu queria
Mas não deu mole
Não deu mole
Não deu mole
Você não deu mole
Nunca esteve numa de me alcançar
Nem estava no ‘mood’ de casar
Eu sempre estive à mão, que isso me console
Mas você não
Você não deu mole
Você me ganhou de presente
No laço e na promessa de guarita
Você me sorriu na galeria
E tinha bem o gosto que eu queria,
Mas não deu mole
Não deu mole
Não deu mole, meu bem
Você não deu mole … ”
(Você me ganhou de presente – Paula Toller)
– Não dou mesmo!
Disse Gabi pulando na cama e me cobrindo de beijos.
A puxei pra mim sendo completamente receptiva àquele carinho… e entre nossos beijos molhados e quentes, pude ter a certeza de uma coisa: Ah se todas fossem como ela!!!
Camila – Diedra Roiz
Músicas:
Camila, Camila – Nenhum de Nós
Agora só Falta Você – Rita Lee
A Cor – Teka Simon
That Thing You Do – The Wonders
Assim que o carro dobrou a esquina, foi involuntário… Um suspiro aliviado escapou de mim. Estava feito, eu tinha conseguido. Uma história fechada, com um final de verdade. Enfim.
Liguei o rádio e fiquei mudando de estação, procurando algo que eu quisesse escutar. Sorri quando encontrei:
“Depois da última noite de festa
Chorando e esperando amanhecer, amanhecer
As coisas aconteciam com alguma explicação
Com alguma explicação…”
A conversa com Sunny, na verdade um monólogo, só tinha servido para afastar toda e qualquer incerteza que eu ainda pudesse ter. Eu me obriguei a ouvir tudo o que ela me disse calada, me obriguei a concordar. E por quê?
“E eu que tinha apenas 17 anos
Baixava minha cabeça pra tudo
Era assim que as coisas aconteciam
Era assim que eu via tudo acontecer”
Depois de anos me anulando por e para Sandra, era quase um hábito. Seria fácil… Se não doesse tanto.
O que Sunny não sabia, o que ela jamais saberia, era que quando a olhei, uma vontade insana de pegá-la pelos cabelos, deixá-la nua e comê-la ali na sala mesmo me atingiu.
Coisa que me causou um leve desconforto, por ser assim que eu sempre pensava nela, de forma dura, seca, cruel. Quase cínica. Um efeito de catarse, como se descarregasse tudo, como se nela eu pudesse… Me vingar do mundo. Me vingar… De Sandra.
Uma transa de despedida. Eu sabia que ela não teria me negado.
E isso era péssimo, pior ainda, fazia eu me sentir… A mais podre das criaturas, porque… Não me agradava a ideia de ter usado uma pessoa, especialmente aquela que, de forma inegável, tinha me tirado do meu antigo estado de torpor. Mesmo que, ao contrário do que pudesse parecer, Sunny não tivesse me mostrado a luz. Na verdade o que ela despertava em mim era outra coisa: ela evidenciava a força que tinha a minha escuridão.
“Camila…
Camila, Camila…”
(Camila, Camila – Nenhum de Nós)
Não me lembrava de já ter sido tão escrota e filha da puta com alguém como tinha sido com ela. E Sunny não merecia. Claro que não. Ela tinha sido mais do que maravilhosa, tinha sido… Inacreditavelmente generosa ao facilitar com tanta dignidade aquele término… Do que sequer havia começado. Foi com um carinho quase culpado que peguei meu celular e digitei: “Ah… Se todas fossem como você!”, me incluindo na lista das que não a mereciam.
Só depois que enviei a mensagem temi ser mal interpretada. Afinal… Sunny não só não me conhecia, como não me compreendia, fazia uma leitura totalmente errônea de quem eu realmente era. Havia criado uma imagem de mim pela qual parecia estar apaixonada. Um sorriso amargo surgiu nos meus lábios… Eu sabia exatamente como era, já tinha passado por isso e mesmo estando do outro lado dessa vez, eu não queria nem pretendia repetir.
Se um dia eu voltasse a ficar com uma mulher, queria que ela dialogasse, que ouvisse o que eu tinha para dizer, e que, acima de tudo, realmente quisesse me escutar. Mais do que isso: que olhasse para mim e me enxergasse. Como eu sou. De verdade. E me amasse assim, sem querer me mudar. Alguém que não quisesse ser a minha luz do sol, mas com quem eu possa ver o brilho das estrelas. Nada demais. Apenas o que qualquer pessoa deseja… Ou não?
A música terminou e eu voltei a buscar uma que valesse a pena… Quando achei, não poderia ser mais perfeito…
“Um belo dia resolvi mudar
E fazer tudo o que eu queria fazer
Me libertei daquela vida vulgar
Que eu levava estando junto a você
E em tudo que eu faço
Existe um porquê…”
Inevitável que nesse momento meu pensamento se voltasse para Flávia. Era algo que eu precisava resolver. Só não sabia muito bem como. A noite passada com ela tinha me deixado… Não tinha palavras para descrever.
Tudo bem, ela sempre tinha sido… Quase parte de mim mesma. Mas jamais daquele jeito. Eu nem cogitava a hipótese de… Era minha melhor amiga, não queria perdê-la. No entanto, já tinha perdido. Nunca voltaria a ser igual. Eu não estava pronta para algo mais. Não naquele momento. E quando estivesse, talvez não fosse com ela. Afinal, ela tinha trepado com a minha mulher. Como eu poderia… Não esquecer, esquecer eu nem cogitava, mas… Perdoar? Não achava possível.
“E fui andando sem pensar em voltar
E sem ligar pro que me aconteceu
Um belo dia vou lhe telefonar
Pra lhe dizer que aquele sonho cresceu…”
Estava cansada, muito cansada de esperar, de adiar os meus momentos. Coloquei o celular no viva voz e liguei pra ela. A conversa foi simples e objetiva. Sem muitas palavras. Não havia necessidade:
– Flávia?
– Oi, Camila.
– Estou chegando em Blumenau e queria conversar com você, posso passar aí?
– Eu preferia que não fosse aqui em casa. Pode ser?
– Tudo bem. Aonde então?
– No lugar de sempre? Daqui a uma hora?
– Ok.
“No ar que eu respiro,
Eu sinto prazer
De ser quem eu sou
De estar onde estou
Agora só falta você, iê, iê
Agora só falta você…”
(Agora só falta você – Rita Lee)
Quando entrei no Centro de Blumenau já tinha escurecido. Estacionei na Curt Hering, quase em frente ao “HausBier Bar”, nosso barzinho preferido. Cenário de milhares de noites e conversas, algumas banhadas de choro, todas regadas à cerveja, muita cerveja importada, especialidade da casa. Assim que entrei reconheci a cantora: Teka Simon. Ela me acenou com a cabeça, sem parar de dedilhar o violão, sabia quem eu era porque tinha tocado algumas vezes com Sandra. Sentei em uma mesa colada na parede, o garçom veio só confirmar o que já sabia:
– Aquela alemã de trigo?
Assenti e completei:
– Dois copos e os bolinhos de feijoada.
A cerveja chegou, me servi e fui bebendo devagar… A primeira música terminou, veio uma segunda, uma terceira… Quando a quarta canção iniciou comecei a ficar impaciente, ansiosa, não estava acostumada a esperá-la, normalmente quando eu chegava Flávia já estava lá.
“E se ela não viesse?”
Estranho pensamento… Que não consegui evitar.
Levantei os olhos em direção à porta no mesmo instante em que Flávia a atravessava… De botas pretas de salto… Cano alto, subindo até os joelhos… Deixando um pedacinho da meia calça preta à mostra… Antes de começar a barra do vestido… Sobretudo pendurado no braço e a bolsa no ombro… O pescoço nu, deixado à mostra pelos cabelos presos para cima… Meus olhos encontraram os dela no exato momento em que a voz de Teka entrou:
“Quando fecho os olhos pra ver
Todo o sentimento que há
Quando olho ao céu e a cor que reina
E lá vem ela
Reluzindo a cor
A luz que vem de dentro dela
É a do seu amor…”
Caminhou em minha direção sorrindo. E eu… Sorri de volta… Apesar de já tê-la visto milhares de vezes assim, talvez até com aquela mesma roupa… Nunca a tinha enxergado de verdade, eu… Nunca tinha olhado para ela… Daquele jeito… Era a primeira vez.
“E lá vem ela
Reluzindo a cor
Da sua paz, do seu amor
E lá vem ela
Reluzir a cor
Da sua paz, do seu amor
E vinha ela reluzindo a cor
Da luz que vem de dentro dela
É a do seu amor…”
Parou na minha frente, mas não me tocou, sequer me beijou. Disse apenas:
– Oi.
Num tom que fez meu corpo inteiro ser percorrido por um leve tremor…
Pendurou o sobretudo e a bolsa na cadeira e sentou. Sorriu ao ver a cerveja que eu tinha escolhido e os dois copos. Peguei a garrafa para servi-la e só então percebi que estava vazia. O sorriso de Flávia aumentou:
– Demorei?
Estava lá, escrito nos olhos dela… O profundo significado daquela pergunta. Não fugi, nem menti:
– Talvez… Um pouco.
Ela se inclinou para frente, ficou mais próxima, praticamente sussurrou:
– Me desculpa?
Me deixando sem resposta.
Interrompi o silêncio que se seguiu fazendo sinal para o garçom trazer outra cerveja. Ele trouxe os bolinhos de feijoada recheados de couve junto. Os preferidos dela. Voltou a sorrir, pegou um, mordeu… Acompanhei o movimento dos lábios, da boca… O som de prazer que soltou… Meu coração acelerou…
“Me leva pra onde leva essa canção
Me mostra todas as cores da vida
Assim encontro paz na solidão
É dentro de nós
Aonde o amor ficar”
Achei graça quando percebi que estava daquele jeito… Por causa de Flávia! Ela riu comigo, mesmo sem entender:
– Quê?
Sacudi a cabeça negativamente, completei:
– Nada.
“De flor em flor em planto o meu jardim
De rosa em rosa eu colho o meu buquê
A cada passo sigo o meu caminho
E o destino leva até você…”
(A Cor – Teka Simon)
Estendi a mão para pegar a cerveja e, não sei como, a derrubei. O líquido virou todo na mesa, a teria molhado se Flávia não fosse rápida, levantou num reflexo quase felino, pegou alguns guardanapos de papel e começou a secar tudo, eu fiz o mesmo… Rimos juntas de novo, ela brincou:
– Quantas você já bebeu mesmo?
Retruquei no mesmo tom:
– Bem menos que você naquele Carnaval em Floripa…
A recordação veio… Quase que em outra versão… Na verdade uma releitura… Da forma que ela me agarrou e me puxou… Enquanto eu a colocava na cama… Tentando me fazer deitar com ela… Soprando dentro do meu ouvido… Palavras que agora finalmente faziam sentido…
Pensei alto, para mim mesma:
– Você não estava me confundindo com outra. Sabia que era eu.
Não precisava, mas mesmo assim, Flávia confirmou:
– Sim.
Fomos interrompidas pelo garçom. Tirou os guardanapos junto com a toalha molhada, secou tudo, colocou outra e se afastou. Voltamos a sentar. Lancei à queima roupa:
– Por que você nunca me disse nada?
O sorriso que ela me deu parecia conter… Uma coletânea de dor:
– Eu te disse. Várias vezes, de várias formas. Você é que nunca notou.
Recuei… Encostei as costas na cadeira… Fiquei muda, sem ter como contestar. Bastava parar um pouco. Comecei a lembrar… De uma infinidade de momentos…
Enquanto isso, Flávia chamou o garçom, pediu outra Weiss, comeu mais bolinhos, agora molhados de cerveja… Recebeu a garrafa cheia, serviu o copo dela… O meu… E só então me chamou:
– Camila?
– Ãh?
– Tudo bem?
Olhei para ela. Flávia. Com quem eu sempre dividia tudo. “Até a mulher…” Pensei morbidamente. Impossível não ser sincera:
– Não. Como poderia estar? A impressão que eu tenho é que a minha vida é um castelo de areia. – Fiz uma pausa. Tomei um gole de cerveja. Ela ficou me olhando e esperando, sem me interromper. – Hoje eu estive em Porto Belo, com a Sunny e…
Flávia se retraiu. Foi quase imperceptível, mas… Eu senti. E parei de falar. Teria me calado se ela não dissesse:
– Continua. Estamos aqui pra isso, precisamos conversar. Se bem que… Não sei se eu…
Interrompi, informando rapidamente:
– Não aconteceu nada. Fui lá e demos um ponto final. Só isso.
Ela foi absolutamente perspicaz:
– Você está se justificando pra mim. Por quê?
Sabia que não adiantava, mas mesmo assim… Neguei:
– Eu… Não estou.
Ela me olhou profundamente:
– Não? – Levou o copo aos lábios, bebeu… Acompanhou meu olhar… Dos olhos para a boca, da boca para os olhos… Sorriu… – Camila… Esqueceu que eu te conheço… E muito bem?
Involuntariamente, estremeci. Pisei nos freios do meu auto controle até o fim:
– Então eu não preciso responder.
– Pra eu saber não. Mas eu adoraria te ouvir dizer.
Cortei-a. Antes que perdesse o controle em definitivo:
– Me diz você.
– O quê?
Flávia voltou a levar o copo à boca, dessa vez eu mantive os olhos fixos nos dela:
– Sobre você e a Sandra. Eu preciso saber. Quando foi? Como foi? Quem foi que… De quem foi a… Iniciativa?
Ela não hesitou:
– Foi antes de eu conhecer a Lena. Fazia o quê? Menos de um mês que vocês estavam morando juntas. Encontrei a Sandra no “Butiquin Wollstein”. Ela estava sozinha, eu também. Sentamos juntas. E acabamos num motel. Não tenho como te dizer se foi ela ou se fui eu… Não é uma questão de encontrar uma culpada, porque… Quando uma não quer… Entende? Apenas aconteceu. De pleno acordo entre nós duas.
Aquilo me deixou… Numa efervescência por dentro… Um turbilhão que foi crescendo, até transbordar… De um jeito absolutamente incoerente, eu já não sabia de quem eu sentia mais ciúmes:
– Que amor é esse, Flávia? Que você diz que tem por mim? Nunca me disse nada, nunca me tocou, sequer tentou! Mas me trair com a Sandra foi fácil, né? Foi lá, trepou com a minha mulher e depois… Guardaram esse segredinho sujo… Só entre vocês duas…
Ela parou. Titubeou. Vi perfeitamente o quanto me contar a verdade foi difícil, mas ainda assim, Flávia respirou fundo e disse:
– Eu queria saber o que você via nela. – Fez outra pausa antes de finalmente completar: – Mas não consegui.
Aquilo me atingiu como uma implosão no estômago, abrindo um buraco, uma lacuna, um enorme vazio… Meu corpo todo se contraiu, tentei firmar a vista inutilmente, pequenas luzes piscaram me ofuscando, comecei a suar frio… Fechei os olhos, respirei fundo e fiquei alguns minutos ali encolhida, me acalmando e voltando aos poucos… Ciente de que não era nada além do último espinho sendo arrancado, o último grilhão sendo aberto, a última venda caindo…
Quando voltei a levantar o rosto, me deparei com Flávia absolutamente imóvel, me observando… Com cuidado, atenção, amor… Não havia nada de novo neste olhar. Era o mesmo de sempre. A diferença estava em mim.
Falei sem sentir:
– Eu também já não sei mais.
Os olhos dela adquiriram um novo brilho… Ia falar… Algo que fiquei sem ouvir, pois foi bruscamente interrompida pela loira que se aproximou da mesa como se eu não existisse:
– Oi Flávia…
Não bastando o tom de voz oferecido, ela se inclinou para beijá-la, mirando o canto dos lábios, mas Flávia habilmente virou o rosto e desviou. Manteve os olhos nos meus ao dizer:
– Ana, você conhece a Camila?
Ela virou o rosto em minha direção, mas não me olhou:
– Oi!
Nem me dei ao trabalho de responder, já que a loira rapidamente se voltou para Flávia. Normal, não era novidade. Ela sempre vivia cercada e assediada, dificilmente ficava sozinha. Só que antes, isso nunca tinha me incomodado. O olhar de Flávia continuou em mim, mesmo enquanto conversava e dispensava a loira de uma forma bastante delicada e sutil. E isso também não me pareceu estranho. Na verdade, me fez perceber que, mesmo quando ela estava com outras, mantinha a atenção em mim.
O resto da noite foi bem mais tranquilo. A conversa fluiu fácil, leve, divertida… Como sempre. No entanto, não era mais como antes, por mais que eu quisesse, seria impossível negar… Eu estava dolorosamente ciente… Da diferença…
Não conseguia evitar… A forma com que eu admirava cada movimento dela… Cada mudança de tom… Não só de voz, mas de expressão… O olhar dela me tocando… Me queimando… Por fora e por dentro…
Eu sabia… Flávia sabia… Nós duas queríamos… Estava ali, era palpável.
Minha vontade de ir para outro lugar com ela foi crescendo… Até se tornar insuportável:
– Vamos?
Ela concordou imediatamente. Enquanto esperávamos a conta, sugeri:
– Vamos chamar um taxi?
– E o seu carro?
Ela tinha visto parado do outro lado da calçada, óbvio…
– Amanhã eu pego.
Não estávamos bêbadas, mas também não estávamos inteiramente sóbrias. De qualquer forma, nós duas tínhamos bebido, nenhuma das duas ia dirigir…
– Então são dois.
Eu a corrigi:
– Não. Um só.
Morávamos em lados opostos da cidade. Minha intenção era clara e Flávia compreendeu de imediato. Mesmo assim, perguntou:
– O que você está me propondo?
– Você não sabe?
– Quero que você me fale, com todas as letras. Nada de joguinhos entre nós, Camila.
Agradeci mentalmente ao garçom que nos interrompeu, trazendo a conta. Como de hábito, a dividimos. Ele pegou o dinheiro, agradeceu, nos deu boa noite, nós também… Levantamos, vesti meu casaco e ela o sobretudo, pegamos as nossas bolsas, saímos… Flávia na frente, eu atrás dela, sem conseguir conter meus olhos, que a percorreram inteira…
Ela parou na calçada, longe o suficiente das pessoas sentadas nas mesinhas do lado de fora, para que só eu ouvisse:
– O que você quer? Trepar comigo?
Não hesitei:
– Sim.
Apesar da palavra “trepar”, naquele momento, me parecer incômoda, errônea, por demais agressiva…
– E depois? – A pergunta me deixou muda. Eu não sabia o que responder. Nem era preciso. Flávia leu nos meus olhos. E completou: – Na primeira vez você me mandou embora. Na segunda você me deixou. Se houver uma terceira eu quero que você saiba, que tenha certeza… Que não é só sexo. – Continuei em silêncio. Ela verbalizou o que eu pensei: – Dois táxis, então.
A primeira coisa que fiz no dia seguinte de manhã foi me livrar das coisas de Sandra, que continuavam amontoadas perto da porta do apartamento. Dei tudo sem pena alguma. Os instrumentos doei para a escola de música, onde tinha certeza de que seriam muito bem utilizados.
Deixei a aliança por último. Fazia dias que a tinha tirado do dedo, desde que Flávia tinha me contado sobre Sandra e ela. Racionalmente parecia besteira, era uma joia, eu poderia derreter e fazer outra, mas não era o que eu sentia. Muito menos o que eu queria, porque… Era o símbolo do meu sentimento por ela. A algema que tinha me aprisionado durante tanto tempo.
Sorri amargamente ao perceber que, com relação à Sandra, eu já não conseguia mais usar a palavra “amor”.
Olhei para o anel na palma da minha mão, pensando no quanto desejei aquilo, durante muitos anos. Como uma forma de reter, como se aquele anel pudesse prendê-la, juntar nossos destinos. Ironicamente, quando o tive nos dedos, não passou de uma alegoria vazia de sentido, acabei tendo um relacionamento com os meus sonhos. E depois, com o desaparecimento de Sandra, aquela aliança se tornou o peso da minha solidão, das fantasias que se reforçavam e me encarceravam através dele. Um grilhão que eu mesma enchi de força e de peso.
Seguindo não um impulso, mas o meu mais verdadeiro desejo, o lancei no vaso sanitário e dei a descarga. Despachei em água corrente. Enviei para o lugar onde minha relação com Sandra sempre havia estado: no esgoto, no lodo, nos dejetos mais abomináveis.
E assim enterrei Sandra. Junto com todas as minhas ilusões sobre ela.
A semana se arrastou… Beirou o intolerável… Por mais que eu tentasse me ocupar, meu pensamento tinha vontade própria? Não, era a própria vontade… A falta… A saudade… Que me traíam, me conduziam, sem que eu as conseguisse controlar… E eu me via inventando desculpas para ligar… E Flávia fazia o mesmo… Numa reciprocidade que me deixava…
Eu não tinha a palavra.
Era isso e só isso, que me impedia de algo mais. Porque ela tinha deixado claro que o que queria, o que precisava, era a única coisa que eu ainda não tinha para oferecer…
Na sexta feira, no meio de uma ligação feita por mim, ou por ela, para falar sobre algo que eu também não sabia mais, Flávia perguntou:
– Você vai na festa da Lena amanhã?
Nem precisei pensar:
– Claro.
Ela sorriu do outro lado… Sorri de volta… Eu ia falar, mas ela foi mais rápida:
– Nos vemos lá.
Assim que cruzei a porta do salão de festas, foi inevitável… Meus olhos esquadrinharam todo o perímetro, procurando não pela aniversariante, mas… Por Flávia. Avistei-a perto da churrasqueira, conversando com o ex cunhado. No mesmo instante, fui tomada por um desejo insano de que ela me olhasse, que sentisse a minha presença… Mas Lena surgiu do nada:
– Camila! Que bom que você veio!
Terminou a frase com um abraço caloroso. Olhei por cima do ombro dela e encontrei o que buscava… O olhar de Flávia… Durante um segundo. Breve. Até Lena me soltar. Entreguei o presente para ela, que o abriu e agradeceu, enquanto Mônica me cumprimentava. Durante esse tempo, que pareceu interminável, dividi minha atenção entre as duas – que falaram comigo, coisas que eu não conseguia ouvir direito e respondia de forma monossilábica – e o sorriso de Flávia para mim, enquanto caminhava na minha direção… Parou na minha frente, me olhando de um jeito que ninguém tinha feito antes: como se eu fosse a pessoa mais importante… Como se só eu existisse…
Provavelmente, meu olhar era parecido, porque Lena e Mônica balbuciaram algo que eu não entendi e… Sumiram.
Flávia deu um passo, se aproximando… Pensei que fosse me abraçar, ou quem sabe… Beijar… Mas não. Estranhei não o sentimento, e sim a força e rapidez com que veio: decepção.
Na mesma hora brotaram os questionamentos: “Como ela conseguiu, durante tanto tempo?”… “Será que eu aguentaria tanto sofrimento?” e a conclusão também surgiu, evidente: “Eu já aguentei… E suportei… E superei…”
Movida única e exclusivamente pela honestidade que devia a mim mesma, venci a distância entre nós. Passei meus braços ao redor do pescoço de Flávia e, puxando-a para mim, abracei-a com força. Ela correspondeu integralmente, me apertando contra o seu corpo como se tivesse… Medo de me perder…
Teria ficado ali, ou avançado ainda mais… Se… O irmão totalmente sem semancol de Lena não gritasse:
– Cadê a minha ajudante? Flávia, eu preciso de você!
Muito contra a vontade, nos separamos. Flávia se desculpando por ele:
– O Lúcio já tá bêbado… Melhor eu ir lá, ou vamos acabar comendo só arroz e maionese de batata…
Virou e se afastou. Acompanhei-a com o olhar, antes de me juntar à Lena, Mônica e outras conhecidas em uma das mesas.
Não participei muito da conversa, minha atenção estava… Nela. De vez em quando Flávia me olhava… Assim, de longe… Sorríamos uma para a outra… Num flerte suave, gostoso, bem humorado… Que me surpreendeu, pois não era muito o estilo dela… Mas eu também nunca a tinha visto ficar perto da churrasqueira… Normalmente, ao invés de ficar ali se enfumaçando ao lado do irmão de Lena, ela já estaria se agarrando, se esfregando ou beijando alguma das convidadas… O pensamento me fez ficar com raiva. Mais ainda quando uma ruiva se aproximou dela e puxou Flávia para dançar. Desviei o olhar, com medo de ver o desfecho… E percebi Lena me observando, com uma expressão que eu não soube definir.
“Será que ela também estava bêbada?”
Foi a primeira coisa que pensei ao ouvi-la me dizer:
– Sabe que eu já te odiei?
Não ousei perguntar: “Quê?”
Na verdade, não precisei…
– Quando eu amava a Flávia e ela só tinha olhos pra você.
Olhei para Lena ainda sem acreditar:
– A Flávia te amou.
Ela deu um grande sorriso antes de responder:
– Amou? Talvez. Mas ela sempre amou muito mais você.
“Todo mundo sabia? Menos eu?”
– Não faz essa cara, Camila. Eu sei que no fundo, você sempre soube. Só fingia que não. Ou melhor: mentia pra você mesma.
Neguei:
– Eu juro que nunca…
Lena me cortou com uma gargalhada… Antes de dizer:
– O pior é que eu acredito em você. Estava tão obcecada, não enxergava mais nada… Nem mais ninguém. Correndo atrás da Sandra durante anos até que finalmente conseguiu tê-la… Pelo menos pensou que teve. A ignorância até pode parecer uma benção… Mas não é. Olha quanto sofrimento teriam te poupado, quantos anos você não teria perdido, se tivessem te contado… Se bem que… Você jamais acreditaria… Se eu ou outra pessoa falasse. Tinha que ser a Flávia. E por quê?
Falei baixo, muito mais para mim mesma:
– Era a pessoa que eu mais confiava no mundo.
Mas ela ouviu:
– Era? Não é mais?
O que era aquilo? Que conversa era aquela? Misto de interrogatório e tortura… Fosse o que fosse, me fez confessar:
– Não sei… Eu não sei.
Mas nem assim Lena ficou satisfeita… Fez questão de enfiar mais agulhas… Lentamente… Uma a uma…
– Um único erro. Anula todo o resto? Todos os anos de fidelidade quase canina? Todas as vezes que você precisou e ela largou tudo que estava fazendo e saiu correndo pra te atender? – tentei protestar, mas ela não permitiu: – Ora, Camila… Sempre foi assim: você dizia “Pula!” e a Flávia só perguntava: “Que altura?”. E quanto à sua preciosa Sandra… Você não a conhecia. Não fazia ideia de quem ela era de verdade. Quer saber? A Flávia poderia ter trepado com ela quantas vezes quisesse, ela chegou a propor que nós fizéssemos a três. A Sandra te traiu com todas que conseguiu. Só eu conheço pelo menos umas cinco.
Foi instintivo. Meu olhar se desviou do de Lena… Procurando… Não pelas amantes de Sandra, isso não importava mais. Sandra era e sempre foi ela. Eu é que nunca quis ver.
Naquele momento, era outra coisa que eu precisava, queria saber. Logo encontrei. Flávia… Dançando, rodeada de mulheres. Mas aquilo não me aborreceu, porque os olhos dela estavam em mim… Sorri sem nem sentir… Na mesma hora, ela veio até a mesa:
– Posso saber o que vocês tanto conversam? – Lena ficou quieta, eu também. Flávia insistiu, de um jeito absolutamente bem humorado, e nem por isso menos certeiro: – Estavam falando de mim? Pra nenhuma das duas me responder…
Do outro lado do salão, Mônica chamou:
– Amor, vem aqui um instante?
E Lena obedeceu quase correndo.
Rimos juntas, sabendo perfeitamente… Que era para nos deixar a sós de novo… Ficamos apenas nos olhando… Por um tempo que pareceu ser curto e infinito ao mesmo tempo… Até que Flávia sorriu e me puxou:
– Vem… Essa eu preciso dançar com você.
Só então percebi a música que tocava. “That Thing You Do” (The Wonders). Fazia anos que não dançava no estilo “Rockabilly”. Desde os tempos de faculdade. Flávia adorava e tinha me ensinado os passos… Eu ri e tentei negar, sacudindo a cabeça:
– De jeito nenhum… Eu não sei mais…
Mas ela insistiu, sem me soltar:
– É igual a andar de bicicleta… Ah, Camila… Por favor… Por mim, vai? Vamos lá…
Até eu concordar:
– Tá…
Já estávamos no meio do salão… Ela pediu pra Lena:
– Volta a música pro começo?
Lena a atendeu. E realmente, foi fácil… Bastou parar de pensar… E me entregar… Começamos a rir… Juntas… Flávia cantando junto com a música:
“You doing that thing you do
(Você, fazendo aquilo que você faz)
Breaking my heart into a million pieces
(Partindo meu coração em milhões de pedaços)
Like you always do
(Como você sempre faz)
And you don’t mean to be cruel
(E você não pretende ser cruel)
You never even knew about the heartache
(Você nunca nem soube sobre a dor no coração)
I’ve been going through…”
(Pela qual venho passando)
A estrofe seguinte ela cantou olhando diretamente para mim:
“And I tried and tried to forget you, girl
(E eu tentei e tentei te esquecer, garota)
But it’s just so hard to do…
(Mas isto é tão difícil de fazer)
Everytime you do that thing you do…”
(Toda vez que você faz aquilo que você faz)
Eu não conseguia tirar os olhos dela…
“Como pude ser tão cega?”
Era só o que eu conseguia pensar.
Como se pudesse ler meus pensamentos, Flávia me puxou… Grudou nossos corpos… Continuamos a nos mover, como se a música fosse lenta… Ela sussurrou:
“I know all the games you play
(Eu conheço todos os seus jogos)
And I’m gonna find a way to let you know that
(E eu vou achar um caminho para fazer você saber que)
You’ll be mine someday
(Você vai ser minha um dia)
Cause we could be happy, can’t you see?
(Porque nós podemos ser felizes, você não vê?)
If you’d only let me be the one to hold you
(Se você apenas me deixar ser aquela que te abraça)
And keep you here with me…”
(E mantê-la aqui comigo)
Fiquei imóvel. Ela também. Quase podia ouvir minha pulsação… Ou seria a dela? No mesmo compasso da percussão da música…
“Cause I tried and tried to forget you, girl
(Porque eu tentei e tentei te esquecer, garota)
But it’s just so hard to do
(Mas isto é tão difícil de fazer)
Everytime you do that thing you do…”
(Toda vez que você faz aquilo que você faz)
Recuei… Apenas o suficiente para nossos olhos se encontrarem… Ela brilhava nos meus… Eu nos dela… Fazendo com que eu sentisse algo que me fez esquecer todo o resto… Segurei o rosto de Flávia entre as mãos… E então… Devagar… Lentamente… Quase em câmera lenta… Aproximei meu rosto… E a beijei…
Ela fechou os olhos… Estremeceu… Fechei os meus também… Escorreguei minhas mãos por baixo dos cabelos… Até chegar na nuca… Acariciei… Flávia gemeu baixinho… Me puxou pela cintura, colou meu corpo no dela… Nossas línguas se encontraram, se buscaram, se mesclaram… Embaçando meus pensamentos… Me agarrei mais e mais à ela, num arrepio sufocado… O ar que respirávamos era o mesmo… Quente… Ardente… Urgente…
Me afastei ofegante, em busca de ar… Me aninhei nela, um dos braços passado ao redor do pescoço, o outro nas costas, segurando o ombro, meu rosto colado no dela… Flávia me segurou contra ela com força, e o encaixe se tornou… Ainda mais perfeito…
Ficamos um tempo dançando juntinhas, sem nem saber se ainda tinha música… Me entreguei integralmente às sensações… Ao calor de Flávia… A coxa entre as minhas… Uma das mãos em minhas costas, a outra na minha cintura… Roçou os lábios no meu rosto, desceu pelo pescoço, me arrepiando inteira… Apertei-a num gesto involuntário… Suspirei… Deliciada com a descoberta de algo que não era novo, muito pelo contrário… Eu conhecia… Muito bem… A pele, as curvas, o toque, o abraço, o cheiro… Num outro tom… Bem diferente… E me pareceu lindo, absolutamente romântico, verdadeiro ao extremo… Reconhecê-la… Naquele novo jeito…
Flávia não voltou mais para a churrasqueira.
Sentadas juntas, conversando, rindo, de vez em quando cochichando… Éramos as Camila e Flávia de sempre. A novidade estava na necessidade física de contato… Mãos dadas, carícias, beijos… O tempo passando sem que percebêssemos… Só reparei que tinha anoitecido quando todos foram embora, só ficamos Lúcio, Lena, Mônica, Flávia e eu.
– Quer ajuda? – Perguntei para Lena.
– Não precisa, amanhã as faxineiras limpam tudo.
Virei para Flávia:
– Vamos?
Ela fez que sim, levantou, me estendeu a mão… Caminhamos com os dedos entrelaçados até Mônica e Lena, nos despedimos delas, não encontramos Lúcio, Flávia falou:
– Dá um beijo no seu irmão.
Caminhamos devagar pela estradinha de cimento no meio da grama que levava ao portão. Quando chegamos na calçada, fora do prédio, paramos… E nos olhamos.
Eu podia sentir a tensão de Flávia, não só na forma com que segurava a minha mão… Nos olhos, na expressão facial, no corpo inteiro…
Era um momento decisivo.
E nós duas estávamos plenamente cientes disso.
Ela me fez uma única pergunta:
– Táxis?
Respondi já erguendo o braço:
– Um só.
Puxei-a pela mão, para dentro do veículo que parou ao meu sinal, ambas sabendo perfeitamente o que significava.
Entramos no apartamento dela… Fiquei esperando Flávia trancar a porta, encostada na parede do corredor de entrada, o coração acelerado de pura antecipação… Quando ela se virou, puxei-a para mim… Minha boca buscando, desejando ter e ser cada inspiração dela… Gemi deliciada com a pressão do corpo de Flávia no meu… Meus dedos tremulando ao arrancarem-lhe as roupas… Peça por peça… As minhas caíram no chão com um pouco mais de pressa… Chegamos inteiramente despidas no quarto, deitamos juntas na cama… Ela encaixada, vibrando sobre mim… Ameaçou descer… Segurei-a, as duas mãos em seu rosto… Olhei bem dentro dos olhos… Sussurrei:
– Fica aqui…
Pedido que foi prontamente atendido… E mergulhamos juntas… Eu e ela… Unidas… Numa deliciosa asfixia… Onde ambas conduziam… Sons… Sem sentido… Arfados… Soluçados… Gemidos… As costas de Flávia em minhas unhas, a pele derretendo como a minha… Numa espiral de pulsação… Que subia e descia… Ela me chamava:
– Camila… Eu te amo… Camila… Camila…
Minha voz soou exatamente no mesmo tom da de Flávia: como um navio que não está mais à deriva:
– Olha pra mim… – Nossos olhos se encontraram… Os dela transbordavam… Uma certeza absoluta me atingiu: – Ah, Flávia… Eu também te amo… Eu te amo…
Beijei-a… Profundamente… Ela se entregou em meus braços… Deixando escapar um som que era… Impossível descrever…
Inevitável acompanhá-la na explosão que se seguiu… Caos… Eros… Tanatos… Nossas bocas, corpos e almas integralmente ligados… Num prazer tão insuportável que beirava a dor… Uma total ausência de espaço, tempo, gravidade… Sem mais saber quem era uma e quem era a outra… O infinito nos atingia, em todo o seu esplendor…
Poderia ter morrido naquele instante. Na verdade eu tinha. Quando abri os olhos foi como se tivesse queimado e renascido, qual Fênix no meio das cinzas… Flávia ainda estava largada sobre mim, o rosto enfiado em meu ombro… Deixou escapar um último som… Na verdade, uma respiração… Aos poucos foi virando… Beijando o meu rosto… Me arrepiando… Até chegar nos lábios… Nos beijamos… O som saiu de mim então… Um suspiro… Gemido… Quando afinal nos separamos, Flávia me olhou… Sorrindo… Linda… Tão linda… Havia um brilho nela que reconheci. Também estava em mim.
Flávia entreabriu os lábios, mas não conseguiu emitir um som. Camila também não disse nada, igualmente silenciada, porque… O sexo precisa de palavras, frases, sentido, direção. O amor, não.
FIM