A Organização

Capítulo 3 – O Desconhecido

Ao acordar, Renee preparou um café leve para ela e Helen. Sua intenção era induzir a doutora a malhar, enquanto ela averiguaria a vida da convidada, junto ao Circulo da Irmandade. Muitas coisas martelaram sua cabeça durante a noite. Procurava entender as sensações que havia percebido no dia anterior. Queria ter certeza que ela era apta realmente a estar na Organização.

— Bom dia, dormiu bem?

Fez a pergunta acompanhada de um sorriso gostoso, para que a doutora se sentisse à vontade novamente.

— Dormi sim, mas em alguns momentos me incomodei um pouco, pois aqui não tem barulho e o ar da noite é fresco, não estou muito acostumada com isso.

As duas sorriram da situação.

— Como é o lugar aonde você mora?

— Moro num apartamento nas cercanias da universidade em Londres. Ele é bem espaçoso, mas a vizinhança é barulhenta, tem muita agitação na rua. É uma típica cidade grande, você deve saber como elas são!

A afirmativa da doutora estava carregada de interesse e intenção, de saber se ela, Renee, costumava viajar e sair da Organização. Renee resolveu ser evasiva na resposta.

— Meus interesses no mundo lá fora, são apenas para saber se a sociedade está tomando juízo.

— Acho difícil isso que acontece aqui, ser desdobrado para o mundo lá fora. Aqui vocês têm um interesse em viver bem, lá as coisas borbulham o tempo inteiro. Os governos querem progredir, descobrir coisas novas, crescer dentro do contexto mundial…

— Pisar uns nos outros, conquistarem a terra dos outros, fazer ruir a sociedade dos outros.

Renee se descontrolou por alguns momentos e percebeu que assustara Helen e se conteve novamente.

— Não estou falando que isso ocorra por livre consciência, porém a forma como ocorre é prejudicial para todos. Veja por você mesma. Está tão acostumada as coisas que acontecem, que seu corpo nem percebe que dormir em um lugar silencioso é bom!  E isso é um exemplo simples. Você consegue responder ao certo quantas guerras estão ocorrendo nesse momento no planeta? Ou quantos ecossistemas estão sendo destruídos, em prol da suposta humanidade, porém para enriquecimento de determinados países e miséria dos outros? Você, como estudiosa, consegue me responder desde o início da civilização, quantas sociedades desapareceram, quantas vidas foram perdidas, quantos animais se extinguiram, quantos ecossistemas acabaram e qual a influência disso para o planeta? Desculpe se estou sendo incisiva. Eu só gostaria que você entendesse que, longe da intenção da Organização interferir nas questões econômicas mundiais, porém estimular as pessoas a pensar no planeta como um lar, o tornando habitável por mais alguns milênios talvez.

— Eu que peço desculpas, é que para mim isso que é vivido aqui, está muito além da realidade do mundo para ser inserido. Os estudos, as pesquisas, o livre comercio não ocorrem aqui. Vocês vivem à parte, na tranquilidade.

Renee mais uma vez percebeu que a doutora estava querendo investigar as operações da Organização e em sua percepção viu que os sentimentos da outra, não eram amigáveis. O sorriso de Helen não era sincero e então resolveu desconversar e falar de coisas banais.

— E então? Quer conhecer o nosso espaço de lazer?

— Ah… Gostaria muito!

— Já terminou seu café? Então coloque uma malha e eu te levo lá.

— Ok.

Renee levou Helen e deixou-a malhando, deu uma desculpa para poder ir ao núcleo e combinou que voltaria para pegá-la em duas horas. Chegando lá, procurou Loren.

— Tudo bem, Irina? Eu gostaria de falar com Loren, você sabe onde ela está?

— Sei sim e queria falar com você também, acabou de pedir para te localizar e não está com cara muito boa. Vai lá, ela está na sala dela.

— Obrigada, Irina.

Dirigiu-se a sala de Loren e bateu na porta. Ouviu a voz da amiga dizendo para entrar.

— Sabia que eu viria? Está ficando boa nessa coisa de contato telepático.

Renee tentou mexer com a amiga para descontraí-la, pois sentia a tensão que a envolvia. Loren apenas a olhou com desânimo.

— Nisso eu sempre fui boa. Não foi à toa que me colocaram como sua mentora, afinal, você era teimosa e rebelde como uma peste! – Sorriu levemente. — Sabia que viria, pois do jeito que te conheço, você provavelmente sondou a doutora ontem. Já sei de suas preocupações. Ficamos preocupados também, principalmente, depois de que Roger nos contatou logo cedo. Ele levou muito tempo para tomar a decisão de indicar a doutora Helen, mas com o período que teve com ela e percebendo o seu caráter no trabalho, fez um levantamento sobre a vida da doutora. Na verdade, averiguou o seu passado, sua vida pessoal e profissional. Estava tudo limpo e nada que havia visto atestava contra a idoneidade dela. Parecia uma boa aquisição para o corpo da Organização, porém quando ela embarcou para cá, ele ficou preocupado se havia realmente tomado a decisão correta. Pediu para os nossos investigadores fazerem levantamentos mais cuidadosos, minuciosos. Parece que a doutora realmente tem algo a esconder. Ela fez parte de programas do governo inglês, trabalhou com a Agência de Inteligência e depois foi realocada na universidade, onde conheceu Roger, mas tentaram apagar seu passado.

— É muito estranho, principalmente pela doutora ser irlandesa, estar em programas do governo inglês.

— Nós sabemos que a Organização já não está tão segura, quanto a alguns anos. Muitas suspeitas e boatos já surgiram. Em outras épocas a dispensaríamos normalmente, pois sabíamos que além de não nos encontrarem, não acreditariam em quem quer que fosse, falando de uma sociedade “escondida”. Mas agora… estamos tendo que melhorar cada vez mais o nosso sistema de segurança, pois a tecnologia lá fora está melhorando também, os satélites estão mais avançados e os nossos sinais estão tendo que passar por mudanças constantes. O fato é que ela está aqui e não sabemos como proceder, vamos nos reunir hoje para discutirmos qual o rumo tomar e contamos com seu bom senso, para lidar com ela durante esses dias. Agora ela se tornou sua missão, Re, e você nos trará relatórios diários do comportamento dela. Utilizará suas percepções para avaliá-la e nos ajudará a decidir qual passo nós devemos tomar.

— Creio que a melhor forma de controlá-la, é dando corda para ela. Se está aqui por algum motivo específico seria um contrassenso nós coibirmos a ação dela. Não sabemos quem está por trás disso tudo e qual o motivo. Devemos continuar com o que nos propusemos, com restrições é claro, e deixar que ela pense que não percebemos nada. Assim ficará mais fácil descobrir o que quer e modificar a situação.

— Está certo, Re, mas aja com cautela. Provavelmente amanhã, já teremos um panorama melhor e nos reuniremos com você. Onde ela está agora?

— No centro de lazer, mas não se preocupe, pedi para que o pessoal que trabalha no centro, me avisasse se ela saísse de lá, porém não acredito que faça isso. Ela deve querer angariar minha confiança, antes de tomar qualquer atitude.

— Tudo bem, mas enrole-a até amanhã.

— Pode deixar, Loren, eu me viro. Até amanhã.

— Até amanhã, Re.

“Vou ter que traçar um perfil dela e uma estratégia para conquistar sua confiança”. Enquanto voltava para o centro de lazer, Renee pensava no que faria, mas seus sentimentos estavam se misturando aos seus pensamentos. Tentava se controlar, mas uma revolta crescente estava surgindo, pois havia a ameaça à segurança da Organização e resvalava para a sua própria segurança. Gostava de onde vivia e nunca quis pensar no dia, em que a Organização fosse diretamente ameaçada e, justo por alguém que havia mexido com os seus sentimentos, ou melhor, sua libido. Via algo de muito bom na doutora, mas também observava um lado, não exatamente ruim, mas um lado com outros interesses. Não percebia em Helen alguém pernicioso, egoísta, egocêntrico, mas alguém que simplesmente estava do outro lado dos seus interesses, apenas por circunstâncias.

Chegou ao centro de lazer para pegá-la. Concentrou-se e se mostrou descontraída e simpática.

— Que tal se eu chamar uns amigos meus para almoçarmos juntos e depois, começo a lhe mostrar uns lugares interessantes na Organização?

— Interessantes como o que, por exemplo?

— Nosso centro de pesquisas arqueológicas. Imaginei que você gostaria de conhecer?

— Com tão pouco tempo aqui? Vocês não se incomodam que pessoas de fora vejam o que fazem?

Renee percebeu que foi solícita demais despertando desconfiança. A doutora era esperta e pelo visto, bem treinada.

— Se você se encontra aqui, é porque merece estar aqui; se não merecesse, não estaria.

— Se eu mereço estar aqui então, porque não tira, “o doutora” e me chama apenas pelo nome?

 A doutora deu um largo sorriso fitando nos olhos de Renee, fazendo-a pensar que Helen sabia mesmo o que fazia e sabia mesmo ser bonita a danada.

— Porque você ainda não estava completamente à vontade comigo, agora podemos nos tornar mais íntimas.

Renee se vingou jogando malícia nas palavras. Estava começando a gostar do jogo. Lembrou que já havia pego um ponto fraco na Helen, do qual poderia explorar… A sua sexualidade por ela oculta.

— O quanto mais íntimo? Eu não quero me empolgar.

Falou sorrindo para dar continuidade à brincadeira tentando transparecer natural.

Ela era boa, mas Renee percebeu que lá no fundo, isso a incomodava. Deixou a sua “sensibilidade” aflorar entrando em contato com a outra, bem lá no fundo de sua alma. Novamente levou um choque com os sentimentos percebidos e rompeu o laço. “Será isso? Ela se sente atraída por mim? Ela é bem treinada, mas ela nutre afeição por mim e está em conflito consigo mesma”. Renee voltou ao assunto, pois agora tinha um trunfo e até gostava da possibilidade de explorar isso.

— Depende de você. Só não gosto de me iludir.

“Dessa vez consegui desconcertá-la! Ela está sem graça e com raiva, por estar tão suscetível a este sentimento”.

— Desculpe, eu não estou acostumada com esse tipo de brincadeira. Talvez aqui, vocês não tenham preconceito, mas onde eu vivo ele existe.

— Eu que peço desculpas, eu sou homossexual e você me atrai, mas não quer dizer que aqui todos sejam. As pessoas só não se importam, quer dizer, elas só se importam com seu caráter e não com sua sexualidade. Não tive tato para perceber, quando você começou com a brincadeira. Perdoe-me.

“Estou conseguindo colocar as coisas nos meus moldes. Vamos lá, doutora, ou me enfrente ou pule fora da brincadeira!”

— Eu queria apenas te descontrair, fazer com que se sentisse à vontade comigo, mas não queria ter despertado nada em você com relação a mim.

Era mentira! Renee percebeu em seus olhos que ela gostara da revelação. Muito mais pelo lado pessoal, do que pelo próprio interesse de sua missão. Não daria o braço a torcer. Uma hora qualquer Renee usaria isso.

— Ok. Vamos passar em casa para que eu possa tomar um banho?

Renee sugeriu, mas não se intimidou ou recuou.

Após terem passado em casa para tomar banho, foram caminhando até um restaurante próximo. Era uma espécie de bistrô com uma decoração aconchegante. Já se encontrava no local, um casal de amigos de Renee, que foram contatados por ela de antemão, pois esses eram agentes também e a ajudariam a tomar conta da “hospede”.

— Doutora Helen, esses são Vermond e Anne, são neurologistas da nossa clínica.

— Boa tarde.

Todos se cumprimentaram em um clima de descontração. Almoçaram e passaram a tarde conversando sobre suas atividades. Visitaram um parque e quando se deram conta, a noite já havia caído. Resolveram retornar ao bistrô para jantar e após horas se despediram de Vermond e Anne. Renee e Helen voltaram para casa caminhando novamente.

— Qual o seu sobrenome, Renee?

— Marquez.

A doutora fez uma expressão de incompreensão, pois supostamente a origem do primeiro nome, não casava com o sobrenome. Renee sorriu, pois seu primeiro nome era verdadeiro, mas seu sobrenome, não. Ela adotava o nome de família de seu bisavô materno para confundir curiosos. Sorriu e explicou calmamente, porém dando uma versão fantasiosa.

— Minha mãe era americana, mas a família de meu pai era de origem hispânica.  E o seu é Mclorn, não é isso?

— Sim. Por que resolveu entrar para a Organização?

— Porque achava um lugar justo e onde gostaria de viver. Mas gostaria que o mundo fosse assim e não apenas esse pequeno lugar. Você não gostaria que o mundo fosse melhor para se viver? Não gostaria de estar bem em sua profissão, morar em um lugar decente, com pessoas dignas, íntegras e viver com tranquilidade?

— Gostaria, mas o mundo não é assim e temos que nos adaptar!

Renee deu de ombros, como se dissesse, “que pena que pensa assim; não posso fazer nada!” Helen sentiu um leve desconforto, como se tivesse agido como tola e permaneceu calada o restante do percurso. Renee sentiu que estava começando a deixar a consciência de Helen confusa. Sabia que no fundo, ela não imaginava que encontraria um lugar como aquele, talvez no seu imaginário, o inimigo fosse outro.

Quando chegaram, logo foram dormir, porém quando Renee se virou para entrar em seu quarto, percebeu que Helen a olhava intensamente. Deu uma pequena parada, mas não retornou…

**************

Helen tomou um banho e estava pensando em tudo que havia escutado aquela tarde. Sua mente estava um turbilhão, nunca havia ficado em um lugar completamente isolado, sem qualquer possibilidade de comunicação. Como iria fazer? Mas também estava pensando em como a Renee mexia com ela, como a forma de falar, o jeito de andar, a delicadeza e atenção… Ela não poderia de forma nenhuma deixar que isso interferisse…



Notas:



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Uma resposta para Capítulo 3 – O Desconhecido

  1. Eu quero fazer parte desta Organização! Mesmo sem nenhum “poder” extrassensorial, quem sabe. E lá vem você me prendendo às suas histórias novamente, fazer o que. Seguir até o final né? Bjs

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