A Organização

Capítulo 14 – Dormindo com o inimigo

— E aí? Tudo bem com as armas?

Loren perguntou displicente.

— Sim. Três pistolas automáticas, uma semiautomática, duas metralhadoras leves de precisão, três fuzis ultracompactos e todos com cargas de raio direcional acopladas. Essas belezinhas devem ter custado uma fortuna! Com as leis de contingência de fabricação de armas, não é fácil encontrar isso no mercado.

— Fabricamos!

As duas agentes da Organização falaram ao mesmo tempo. Helen as olhou e elevou uma de suas sobrancelhas.

— Mmm. Suponho que a sociedade que criaram não permita dinheiro ou artigos vindos do “sangue”, e por isso fabricam. Bom, temos munição para todos, mas não consegui identificar alguns itens. Suponho também que seja de fabricação própria.

Renee se aproximou.

— Sim. Essa aqui é uma bomba de gás paralisante. Não mata, mas deixa o indivíduo “calminho”. Essa é uma bomba de feixe. Se acionar, garanta que esteja longe do ambiente pelo menos 20 m. Atinge qualquer coisa que se mova dentro deste raio.

— Disparo dirigido? Detecta pelo movimento?

— Até se respirar ou piscar seu olho. O bom é que os drones não pensam sobre parar diante de uma bomba. Tentam eliminá-la e ai “puff”, já era drone. O ruim é que você tem que ter um excelente braço para jogá-la à distância. Não aconselho contar com as pernas para correr. Ela leva apenas quatro segundos desde destravar até o disparo.

— Ok, entendi. Jogar em quartos fechados onde estejamos do outro lado da parede, ou ter força de lançador de basebol!

Renee a olhou rindo. Helen podia ser uma mulher divertida se gostasse de algo. Pensava que o problema é que ela gostava de coisas perigosas!

— Bom, voltando. Temos ração de campanha, gel para hidratar e muitos passaportes. Pena que nenhum tem os nossos rostos.

— Bem, essa é outra “coisinha” interessante da Organização. Temos material para impressão bioaderente e uma impressora 3D de material biológico portátil. Mesmo que no processo percamos esta impressora, podemos contar com qualquer loja que tenha uma, o que não é difícil de achar.

— Por isso você está com esse rosto? Eu pensei que esta tecnologia… esse material tivesse sido…

— Descartado por causar danos ao tecido epitelial natural? Sim, ela foi. Mas nós não descansamos até encontrarmos o equilíbrio da composição. Assim que, proteja aquele pack com a sua vida, pois se o perdermos, vamos ter mais dificuldade de fugir.

Loren falava apontando um pequeno pacote.

— Como vocês conseguem testar estas coisas?

— Você ainda tem muitas dúvidas sobre nós, não é Helen? Bom, não é novidade que tudo hoje em dia pode ser testado à partir da análise genética. Basta que tenhamos um banco de dados genético de cruzamentos étnicos.

— Mas é caro! – Helen falou enfática.

— É seguro. – Retrucou Renee contrariada. — Veja bem. Eu posso garantir que esse material não me fará mal ou a Loren, mas não posso garantir que não faça mal a você. Nosso banco de dados é de todos os membros que são da Organização ou que um dia foram. Se houver bastante gente na Organização que seja de sua etnia, provavelmente será compatível com você. O caro e o barato, dependem da visão que se tem. Para fazer um banco de dados genético, basta começarem. O nosso não se constituiu de uma hora para outra e está sempre sendo alimentado, mas para o mundo inteiro, é mais fácil utilizar animais ou mesmo cobaias humanas!

— Tá, desculpa! Eu só estou tentando entender vocês!

Helen e Renee falavam alteradas. Cada qual tentando alcançar o pensamento da outra.

— Parem, vocês duas! Renee, falei a bem pouco tempo para você, que a intolerância é o pior caminho para a compreensão e a tranquilidade. Helen não tem obrigação de entender como vivemos e pensamos. A experiência de vida dela, até o momento, foi bem diferente da minha ou da sua. E Helen – Loren virou-se para a outra agente. – Você tem que aprender a olhar além dos muros que sempre viu. Nem tudo é como o que já viveu.

Fez-se um breve silêncio no quarto e Loren avaliava as duas agentes à sua frente.

— Agora vão dormir que eu vou descansar um pouco também. Vou deitar aqui e ficar de vigia. Daqui a quatro horas sairemos e eu durmo no carro. Não entrarei mais em contato com a Organização. Não quero que sinais sejam rastreados, vindos de uma área remota como esta. Tentaremos contato quando chegarmos a uma área mais urbanizada.

— É melhor mesmo, Loren. Os sinais ficam mais difíceis de detectar pela quantidade de usuários próximos.

Renee falava com certa cautela. A repreensão que levara era mais que justificada. Perdia totalmente a coerência quando ouvia Helen falar coisas que a desagradavam, principalmente quando se colocava contrária a sua ideologia ou sua escolha de vida.

………..

As agentes entraram no quarto. A mobília era simples, mas não era o que importava. Tinha uma cama de casal e uma cômoda. As duas estavam de frente para a cama olhando dispersas.

— Qual o lado que você quer dormir? – Perguntou Helen displicente.

— Mmm? Não me importo com lado de dormir.

Respondeu Renee, sem entender muito bem onde Helen queria chegar.

— Ótimo! Eu durmo do lado direito, então.

Helen foi caminhando e tirando a blusa e o sutiã sem rodeios. Abriu a calça, retirou e se deitou ao lado direito, virada para o lado de fora da cama. Renee estreitou os olhos.

“Ela quer me provocar, não é? Que brincadeira mais sem graça… Ok. Vamos nessa então!” Pensou.

Renee retirou sua blusa, sutiã e calça permanecendo apenas de calcinha. Deitou-se ao lado da outra agente e se virou para outro lado, sem a olhar. Helen abriu um olho atrevido e um sorriso se fez em seus lábios.

………..

Ainda não tinha amanhecido. Loren estava colocando as coisas no carro, seguida das outras duas agentes. Helen entrou para pegar a última sacola.

— Noite mal dormida?

Perguntou Loren rindo ironicamente.

— Você ri? “Me” senti dormindo com o inimigo, literalmente.

Loren gargalhou.

— Eu imaginei. Quando fiz a ronda pela casa, vi que estavam nuas sobre a cama. Uma de cada lado.

A sua mentora continuou sorrindo.

— Assim que ela entrou, foi retirando a roupa toda, eu não podia me intimidar.

Nesta hora, Loren gargalhou mais alto.

— Eu não acredito que você aceitou a provocação!

— Não aceitei nada! Eu sabia que ela ficaria incomodada também. Eu não deixaria passar a noite tão tranquila assim. Aliás, ela realmente não passou. Não importa o que diga, sei que não passou.

Loren empurrava uma bolsa para dentro da parte traseira do carro, enquanto escutava Renee e, de repente, parou para olha-la.

— O que? Você… você a…

— Você disse para sondá-la!

— Eu disse para sondá-la para a missão!

— E como eu faço para separar isso, enquanto estamos nuas na mesma cama?

Loren deixou seus ombros caírem e pôs a mão na cabeça.

— Isto não vai dar certo, Re.

— Eu concordo. Então faça a sondagem você e me deixe suas impressões.

Helen se aproximava com a última bolsa. As armas e equipamentos já se encontravam no carro e ela, estava com as provisões de campanha para nutri-las, em caso de terem dificuldade para parar em algum lugar para se alimentarem.

— E agora?  Para onde vamos?

 — Ao oeste pela mata.

— Vamos na direção de São Paulo, então.

Helen falava calmamente.

— Sim. Até depois da serra, pelo menos. Depois não sei se é prudente continuarmos para São Paulo. Por outro lado… – Renee complementava.

— É. Pode até ser uma opção, se estivermos seguras que não estão nos seguindo.

— Acredita nisso, Loren?

— Não acreditaria, nem se estivesse com todo o território nacional mapeado online, Re.

— Então, vamos.

Helen abriu a porta do carona e se acomodou enquanto falava.

— Adoro gente desconfiada, me deixa mais relaxada.

Loren e Renee se olharam e começaram a rir. Renee abriu a porta do motorista, enquanto Loren entrava na parte de trás. A ex-agente da “Távola” pegava a bússola e o GPS e Loren ativava o programa de rastreamento no mobile.

— E eu amo pessoas que sabem exatamente seus papeis um uma missão. – Falou Loren.

— Adiantaria discutir? Renee não me deixaria dirigir, dizendo que a rota de fuga era dela e você não me deixaria com o mobile, pois não confia completamente em mim. Restava a navegação.

— Menina inteligente, essa.

Renee falou com sarcasmo.

— E por que você acha que tem uma agência inteira atrás de mim?

— E metida ainda por cima.

As três riram, enquanto o carro se colocava no caminho.

……

Após três horas de trilhas, Loren quebrou o grande silêncio que imperava no carro, vindo da grande concentração das três em suas funções.

— Um carro entrou no mapa do mobile vindo pela mesma trilha que nós. Não acho que sejam turistas ou aventureiros, pois estão em grande velocidade.

— Merda! Quantos quilômetros atrás? – Renee perguntou olhando pelo retrovisor.

— Vinte quilômetros, mas como falei, estão em uma grande velocidade. Estou me perguntando se não são flutuadores.

— Droga! Tem que haver mais alguma coisa nesta história. Estão utilizando tudo de mais caro, para capturar uma só pessoa.

— Eu mesma nunca vi um veículo desses sendo utilizado na agência. Os recursos estavam escassos, como em todo mundo. Tínhamos muitas restrições, mas parece que sou gostosa, pelo visto.

— Não me pergunte, isso. Tenho que me concentrar na direção.

Loren bufou e Helen a olhou sorrindo, mesmo estando apreensiva. Ela pensava que o jeito de Renee encarar as coisas, muitas vezes parecia até infantil, mas a verdade é que a atraía. Era outra faceta da agente que estava conhecendo. Na Organização, ela se apresentara muito mais séria, talvez pela situação de alguém ter entrado em seu mundo, mas ali, parecia que a adrenalina mexia com seu humor. Suas piadas eram próximas ao desafio a si mesma.

— Loren?

— Diminuíram a distância para dezessete quilômetros, Re.

— Apenas um veículo atrás de nós?

— Sim, Helen. O que me faz pensar que a nossa vantagem está…

— Quase no fim!

As duas outras agentes falaram ao mesmo tempo, concluindo o pensamento da mentora.

— Coloque o gps em 3D e tente achar um abrigo, Helen. Qualquer coisa a nossa frente que se pareça com uma caverna, uma encosta entre pedras, ou mata muito fechada.

— Você quer abatê-los, Renee?

— Não. Quero me esconder e fazer com que eles achem que foram tolos.

— Se o abatermos, Helen, chamará a atenção para cá, para esse veículo e saberão que estão no caminho certo.

Loren completou o raciocínio da amiga.

— Nós somos a caça, Hum?! E como caça…

— … Temos que fugir e saber a hora de atacar. Não gostaria de ser pega numa mata. Eles têm todas as vantagens. Seríamos cercadas como as presas de um bando de hienas. – Finalizou a motorista.

— Certo. Deixe-me ver. Mmm… Tem uma pequena cachoeira à frente. Por detrás do véu da água tem uma reentrância. Se tiver onde escondermos o carro…

— Veja se próximo tem alguma vegetação rasteira e densa. Samambaias, emaranhado de cipós…

— Vejo que conhece bem por aqui. Eu nunca tinha entrado numa floresta a não ser por livros holográficos.

— Não existem mais que um punhado delas por aí, não é mesmo?

— E estas para as bandas de cá, só existem, pois não temos mais o “grande pulmão do mundo”.

— Uma bela guerra aquela que destruiu a Amazônia.

Loren estava apreensiva, mas entendia que a interação de Helen e Renee nesse momento, poderia balizar o resto da fuga. Não chamou a atenção para que voltassem ao contexto. Faria, caso o limite de segurança de distancia para os perseguidores, começasse a estreitar demais.

— Ah! Renee… Seria tão bom que eu conseguisse ter esta esperança pelo futuro de um mundo melhor… O fato é que não consigo. Eles, — apontou com o polegar para trás — detêm o poder de construir e destruir.

— Se conseguirmos sair daqui, talvez você reestruture seus pensamentos, mas por enquanto, me contento se você achar rápido uma porcaria de emaranhado de vegetação, para que consigamos esconder essa meleca de carro!

— Ah, tá. Só um momento. Mmm… Tem vegetação fechada há uns duzentos metros da cachoeira. Pelo volume, acho que dá.

Renee estava intimamente satisfeita. Pela primeira vez, Helen estava com suas barreiras arriadas e numa curiosidade até pueril com relação ao que estava vendo ao seu redor.

— Eles pararam. Devem ter se perdido ou achar que estão enganados em nossa perseguição. Estão há quinze quilômetros de nós. Isso nos dará algum tempo.

Helen as conduziu mais dois quilômetros à frente, até onde a mata se fechava e Renee parou o carro a uns cem metros de distância.

— O que foi? – Perguntou Helen.

— Eu tenho que descobrir um jeito de levar esse carro até lá, sem que deixe um rastro de vegetação amassada.

— Renee, eles nos acharão se estiverem com rastreadores térmicos e não por amassados na vegetação. Pode ter certeza, que nenhum deles deve ter pisado em uma grama real ao longo de sua vida. Mata fechada então, nem se fala. Devem achar que estão perdidos, mesmo com o gps a pleno funcionamento.

Loren deu uma pequena risada.

— Embora eu concorde com você, Helen, também respeito a opinião de Renee. Se tivermos tempo, é melhor tentarmos fazer da forma correta.

— Ok. Então o que faremos?

Renee olhou a toda a sua volta e viu que mais a frente havia uma clareira. Os cascalhos da margem da lagoa que a cachoeira formava começavam ali.

— Tive uma ideia. Vou levar vocês mais a frente perto da cachoeira. Este carro é alto e 4×4. Andarei por dentro do rio até onde conseguir alcançar. Retornarei por ele também, alcançando a vegetação fechada através do rio e por trás dela. Assim não existirão os…

— … os rastros térmicos. A água não permitirá a emanação de calor dos pneus. – Loren completou.

— Mas o problema é que os rastros desaparecerão mais próximos de onde nos esconderemos. – Arrematou Renee.

— Vai dar certo. – falou Helen.

— Você está dizendo que seus amiguinhos agentes são estúpidos, Helen? Que maldade a sua…

Helen sorriu de lado.

— Eles não são estúpidos, mas estão completamente fora do elemento deles. Isto desnorteia. Nunca recebi um treinamento em local com vegetação… dentro da natureza. Essa prática não é mais utilizada em treinamentos, pois não havia mais a possibilidade de uma perseguição ou missão na América do Sul ou na parte da África que ainda tem alguma floresta. Esses povos foram “colonizados e pacificados” para que houvesse o apoio internacional. O petróleo é extraído por todas as grandes empresas internacionais e as poucas jazidas de minério que ainda existem também. Por que se preocupariam?

— Por causa de lindas agentes em fuga?

Renee provocou. Suas sobrancelhas se elevaram e um sorriso jocoso apareceu em seus lábios.

— Parem de se adular mutuamente e vamos logo. Eles começaram a se mover. Quando isso acabar, eu vou estar cheia de abelhas em volta, de tanta glicose que vocês produzem!

Loren falava enquanto voltava ao carro. Não estava chateada ou brava, apenas achava a forma que as duas se tratavam engraçada e amava provocar. As duas agentes se sentiram estranhas, pois demostravam tanta cumplicidade que não perceberam em qual ponto isso ocorreu. Aprumaram-se, seguindo a mentora.



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